domingo, 1 de fevereiro de 2015

Gregório Duvivier: "A fé dos outros não pode ser intocável"

Gregório Duvivier: "A fé dos outros não pode ser intocável" Lauro Alves/Agencia RBS

O ator, escritor, roteirista e empresário fala sobre humor, política e religião

Gregório Duvivier sabe que o humor não é apenas capaz de fazer rir, mas também de pautar debates e provocar iras desmedidas, como o recente atentado à revista francesa Charlie Hebdo tragicamente comprovou. Com apenas 28 anos, o ator, escritor, roteirista e empresário carioca já produziu vídeos que irritaram setores mais conservadores da sociedade, renderam processos judiciais e, ao mesmo tempo, arrebataram milhões de fãs: o Porta dos Fundos, canal de humor que ele ajudou a fundar na internet, já conta com mais de 1 bilhão de acessos e colocou o grupo na programação televisiva da Fox. Em novembro, o artista esteve na Feira do Livro de Porto Alegre, onde começou uma conversa com ZH que continou por e-mail nos meses seguintes.

Nas últimas eleições, você abriu voto e foi figura atuante, comentando publicamente o processo. Como você avalia a divisão do eleitorado?
Muita gente que não se interessava por política passou a se interessar. É claro que tem um clima de raiva desnecessário. É ruim, mas penso: "Que bom que estão brigando por política! É claro que não é bom que estejam brigando, mas é bom que o motivo seja algo que pode mudar o destino do país".

O legado então é positivo?
As pessoas estão aprendendo a lidar melhor com a democracia. Não é fácil: a maioria vence, e quem perde tem que se dobrar. O importante é continuarmos críticos, levarmos o mesmo espírito questionador que se tinha nas eleições para os quatro anos de mandato. E digo isso para os que votaram e para os que não votaram na Dilma. Não dá para desistir do país. Mas também não dá para pedir golpe militar, como teve gente fazendo em passeatas. Temos que respeitar o voto e cobrar, encher o saco. Não dá para ser conformista.

Em uma de suas colunas no jornal Folha de S. Paulo, você afirmou apoio à Dilma Rousseff por não ter alternativa. Mantém a opinião?
Estou achando a Dilma muito corajosa. Aprendi a admirá-la, pois no começo não sentia admiração por ela. A Dilma compra briga contra a corrupção, e isto é muito importante. Dentro do PT, ela é um bastião da honestidade, acredito que não compactua e não tolera a corrupção. Inclusive, um dos problemas da governabilidade dela vem do fato de não negociar com a corrupção. Ela é dura em relação a este tema, espero que leve esta dureza até o final e consiga dobrar o sistema político brasileiro, que é muito ruim.

Por que nosso sistema político é tão ruim?
Porque quem manda não é ela (Dilma). Quem manda é gente como Eduardo Cunha (deputado federal pelo PMDB do Rio), esses sujeitos nojentos que o povo elege porque não sabe nem qual é a função de um deputado. Aí, quando vemos, ele é o líder da bancada evangélica e, ao mesmo tempo, da bancada ruralista, joga em todos os setores mais reacionários da sociedade. Em resumo, joga contra a Dilma. Então, temos uma presidente que tem que lutar contra o Congresso que a gente elegeu. Há tempos não tínhamos um Congresso tão reacionário, com tão poucas mulheres, tão poucos progressistas e tão poucos homossexuais.

De onde vem sua convicção de que Dilma está lutando contra esse grupo? Ela não é aliada política de muitos desses deputados?
Uma pessoa se define também pelos inimigos. O próprio Eduardo Cunha é um cara que a odeia e declara publicamente que é contra ela. O Bolsonaro, o Feliciano e o Malafaia: todos estão tão violentamente contra a Dilma que penso que ela deve estar fazendo alguma coisa certa. Assim como nós do Porta dos Fundos ficamos felizes de sermos processados pelo Feliciano, porque quer dizer que a gente está do lado certo. O contrário também ocorre: quando o Rodrigo Constantino (colunista da Veja) me critica e diz algo como "Vamos boicotar Duvivier e Chico Buarque", olha que delícia, ele está me colocando do lado do Chico. É claro que tem um monte de gente junto com a Dilma que não deveria estar, mas ela comprou uma briga que acho que ainda não haviam comprado, que é a briga contra o PMDB. Nas próximas eleições, uma chapa PT/PSDB seria melhor que uma PT/PMDB, porque o PMDB sempre governa. Isso é horrível para o Brasil. Por isso há tantos ministérios, porque tem que dar para o PMDB. Isso é péssimo, um partido sem ideologia, sem a gente saber direito o que quer, a não ser se perpetuar no poder. 

Como você avalia as manifestações agressivas que sofreu ao longo das eleições?
As eleições acenderam uma divisão que existe há muito tempo no Brasil, o velho esquema "casa grande e senzala". É redutor dizer que todo eleitor do Aécio é elitista, e que todo eleitor da Dilma é populista. Mas, de fato, existiu de certo modo uma luta de classes. Há pessoas que não querem perder privilégios, que se incomodam com o povo no aeroporto, que se abalam com a entrada das classes populares na sociedade de consumo; e, do outro lado, existem aqueles que querem mais participação destas classes. Muita gente acha que o Aécio lidaria com a questão econômica de forma melhor, com uma equipe melhor preparada. Se existe alguma divisão, é de um projeto de poder mais distributivo de renda, inclusivo de minorias, e outro mais liberal, de livre mercado e da perpetuação do poder nas mesmas mãos. É por isso que esse papo de alternância de poder, usado contra Dilma, me incomodava tanto. Era justamente o contrário.

No Porta dos Fundos, há piadas sobre diferentes temas, muitas delas politizadas e críticas. Você acredita que seus espectadores captam a profundidade dos quadros?
Sim, o público está muito interessado em um humor crítico e diferente. Quando a gente tentou emplacar o Porta dos Fundos nas TVs abertas, as pessoas diziam que não havia espaço, que o público brasileiro gosta de um humor mais rasgado, de estereótipo ou de bordão. Nunca acreditamos nisso. De certa forma, também fazemos parte do público brasileiro e, sim, gostamos de outro tipo de humor. Assim como nós, um monte de outros brasileiros costuma buscar esse humor fora da TV aberta, como em séries americanas. O sucesso delas no Brasil é a prova de que os brasileiros gostam de um humor diferente. Acreditando nisso, largamos tudo, abandonamos nossos empregos nas TVs abertas e apostamos em algo que era um projeto de vida. 

Acredita então que o público também tem mudado, aceitando novos formatos?
O público mudou muito, sem dúvida. A internet trouxe um tipo de entretenimento que ele não costumava ter. Foi muito ruim para a TV brasileira porque mostrou como é gritante o descompasso entre o que se fazia lá fora e aqui. Lá fora, faz-se uma TV que não precisa ficar se repetindo, enquanto as novelas daqui são feitas para que se possa assisti-las em qualquer dia e entender tudo. Se uma personagem é cleptomaníaca, ela todo dia vai roubar alguma coisa. Acaba-se assistindo ao mesmo episódio todos os dias porque sempre se quer pegar aquele telespectador que não sabe o que está ocorrendo. A TV americana é o oposto: cada capítulo é uma reviravolta, se você não viu o anterior, não entenderá mais nada. É outro conceito, que exige um pouco mais do espectador, mas, ao mesmo tempo, é muito recompensador. 

É esse tipo de TV que vocês querem fazer?
Exatamente. Queremos fazer algo que tenha humor, mas que não seja só comédia, e que conte uma história sem ser redundante, sem ser óbvio, para que o espectador tenha vontade de ver o próximo capítulo.

Quais são os próximos planos?
Queremos fazer uma série de animação e um filme, que será um épico medieval e também a história de nós fazendo este longa. Enfim, será um filme sobre um filme. 

Algum tema que ainda não foi abordado no Porta dos Fundos poderá ser no cinema?
Ainda quero fazer um filme sobre a religião evangélica, sobre a questão do exorcismo, que acho muito doida. Quero falar da história de um pastor e um demônio que começam a conversar e passam a trabalhar juntos. É importante tratar desse tema porque é uma coisa muito brasileira e ainda pouco abordada na ficção. Nunca vi um bom filme sobre evangélicos no Brasil. 

A religião também está no centro do atentado à revista de humor Charlie Hebdo, na França.
O atentado foi um ataque à liberdade. Não à França, pois poderia ter acontecido em qualquer lugar. O fanatismo é uma doença onipresente e muito nociva. É importante continuar combatendo-o com nossa arma mais forte: o riso. 

O atentado levantou a questão sobre os limites do humor. Na sua opinião, haveria mesmo limites? E quais seriam?
O limite do humor é o mesmo da imprensa: a calúnia, a difamação, a incitação ao ódio, os crimes já previstos por lei. A Charlie Hebdo não cometeu nenhum desses crimes. O único crime foi ridicularizar o sagrado, o que não é um crime previsto na lei francesa, apenas na lei islâmica. A fé dos outros não pode ser intocável. Se as charges são de bom ou mau gosto, não vem ao caso. É importante louvar a coragem dos cartunistas que não estremeceram frente ao ódio. 

Você também teme um dia ser vítima de alguma represália de ordem religiosa?
Sim. O fanatismo no Brasil também mata. Somos o país mais cristão do mundo e também o que mais mata travestis. A homofobia e a transfobia no Brasil são gigantes, e as religiões não fazem nada para frear isso. Ao contrário, fazem declarações que incitam o ódio com embasamento religioso.

Como você avalia a relação entre televisão e internet?
Acho que cada vez mais essa diferença vai cair. A internet é on demand, você clica para assistir e acessa na hora. Mas a TV também é assim hoje em dia, este recurso já existe para muitos telespectadores. Ao logo do tempo, tudo vai ser considerado audiovisual, não vejo como uma grande diferença de linguagem. No fundo, tudo é muito parecido.

Essa mudança constante não traz angústia?
Não, gosto muito disso. Não podemos negar o progresso, gosto muito de novidades e acredito que elas podem mudar a forma de contarmos histórias. São novas linguagens que transformam o modo de se fazer arte. Na televisão, você não tinha vídeo de três minutos, com a internet isso foi criado. Cada tecnologia nova cria linguagens novas. Isso é muito bom, e precisamos usar a nosso favor.

Como você encara a diferença entre escrever um roteiro, uma coluna ou um poema?
Quando escrevo para o jornal ou para outro meio que precisa ser engraçado, imagino uma pessoa falando. Sou ator antes de escritor, então gosto de imaginar as vozes. Em ambos os casos, escrevo como se fosse para alguém interpretar. Na poesia, é parecido, gosto de uma poesia polifônica, que parece ter várias vozes, diálogos... É algo que tem relação com o teatro, que foi onde comecei.

O que lhe faz continuar trabalhando com teatro?
Quero fazer teatro para sempre, porque é o lugar onde você encontra seu público ao vivo e em 3D (risos). É ótimo para testar seu próprio humor, pois, quando você está gravando, não há uma resposta imediata. Quando você está escrevendo, nunca terá acesso ao que as pessoas realmente acham. Mas o teatro não mente, você sobe em um palco e sabe na hora se uma piada funciona ou não. É muito prazeroso quando dá certo, e muito doloroso quando dá errado. Nenhuma outra mídia me dará esse prazer do teatro.

Qual é a vantagem de trabalhar com amigos?
O Porta dos Fundos é um caso de amigos, assim como todas as peças de teatro que fiz. Estou cercado de pessoas das quais eu gosto. Minha arte é quase uma consequência disso.

Mas também deve haver tensão no Porta dos Fundos?
Uma das melhores coisas do Porta é esta tensão. A gente diverge muito, o tempo todo. Isso é muito bom, porque sei que nunca aprovarão um texto meu que não seja bom. Tenho essa segurança. É bom que a gente bata de frente, porque isto nos protege do pior de nós mesmos.

As pessoas costumam achar que trabalhar com humor é pura diversão o tempo todo.
Sim, acho que as pessoas têm essa ideia, mas o Porta hoje está grande, tem 40 funcionários, é uma empresa enorme e meio séria. As discussões de roteiro são seriíssimas, a gente ri muito pouco. Batemos muito de frente um com o outro, mas depois saímos para tomar chope. É assim quase todo dia. É muito divertido, mas, ao mesmo tempo, muito exaustivo. Nunca imaginei que eu me tornaria um empresário, mas hoje somos sócios e cuidamos de uma empresa cheia de burocracias e tarefas administrativas a cumprir, como qualquer outra. 

Encarar o humor como um trabalho não é frustrante?
Para mim, é um aprendizado, embora eu seja o que menos participa disso tudo por ser o mais avoado. Sou distraído e muito pouco hábil para questões práticas. Quando vejo como é preciso resolver problemas em uma empresa, acho surreal. São questões tributárias, financeiras, jurídicas. Ao mesmo tempo, é muito prazeroso, porque o Porta jamais teria tamanha liberdade se não fôssemos os donos da nossa própria empresa. O problema da televisão, por exemplo, é que quem manda no lado artístico é muitas vezes um cara do administrativo. Isso é uma pena, porque o que faz uma televisão ser boa ou ruim não é a maneira como ela é administrada, mas o trabalho de seus criadores e artistas. Há algum tempo, as emissoras tinham mais ingerência sobre os artistas, o próprio Boni, na Rede Globo, era um diretor artístico, e caiu sei lá por quê... De um modo geral, havia um cuidado artístico maior nas emissoras, hoje se tornou business.

Você não teme que trabalhar para a TV acabe fazendo com que a liberdade seja podada?
Nunca vamos aceitar um acordo que não preze por nossa liberdade total. Todas as TVs quiseram comprar e mudar a gente. Nunca aceitamos, nem olhávamos a proposta financeira porque a proposta artística não interessava. Sempre queriam mudar, refilmar uma esquete com outros atores, cortar partes... Nunca concordamos com a visão de que tínhamos que nos transformar para entrar na TV. Só fomos para dentro quando nos aceitaram como somos, sem nenhuma frase editada.

Quais são suas principais referências artísticas?
Acho a Fernanda Torres incrível como atriz e autora; o Selton Melo, como ator e diretor. Da mesma forma, admiro muito o Pedro Cardoso e o Marco Nanini. São todos artistas que criam o próprio texto. Também admiro meus colegas de geração. Comecei com o Marcelo Adnet, o Fernando Caruso e o Rafael Queiroga, embora eles sejam um pouco mais velhos. É uma geração que pensa o próprio texto, que entende que o ator não é uma marionete, mas alguém que tem coisas a dizer. Acho que essa geração tem muito disso por conta do stand up, que, em essência, é o ator falando seu próprio texto para a plateia sem muitos recursos cênicos. É uma arte do texto e da inteligência, gera comediantes espertos e afiados. 

Na posição de alguém que alcançou sucesso na internet, como avalia o conteúdo da rede? A busca por cliques não pode fazer com que decaia a qualidade do que é veiculado?
Com certeza, este é um dos medos que a internet traz. A busca pelo clique é um câncer. É muito fácil conseguir cliques, difícil é conseguir conscientizar, politizar, informar. Se eu, por hipótese, escrevesse um artigo dizendo que toda mulher é estúpida e que só não é pior que os judeus, conseguiria uma infinidade de cliques. Isso é fácil, mas conseguir cliques inteligentes é outra história. Estou falando isso no âmbito da opinião, mas, no âmbito da informação, funciona do mesmo jeito. Informações falsas e irrelevantes rendem muitos cliques, isso gera um jornalismo muito irresponsável, não apenas no sentido de mentir como também de publicar matérias irrelevantes, incentivar a fofoca e a invasão da vida alheia. Há uma noção errada de que a vida do artista é pública, mas, na verdade, é privada. O artista não é um participante do BBB, ele tem direito à reclusão. A opção pela arte não é a opção pela exposição total da intimidade.

E como o Porta dos Fundos lida com essa pressão?
Nunca nos dobramos a isso. Não queremos essa escravidão. Há vídeos que lançamos sabendo que não irão viralizar. O que mais queremos é acervo, é isto que gera mais cliques a longo prazo. Aí é que entra a burrice do jornalismo que quer o clique barato: a longo prazo, é muito mais interessante construir um público fiel. Se você começar a falar bobagem, perderá a fidelidade ao longo do tempo. Um bom vídeo de humor pode não viralizar de imediato, mas daqui a dois anos continuará engraçado, então a vida dele será mais longa. Ou seja, a longo prazo, o vídeo terá muito mais visualizações e, quando alguém estiver assistindo aos vídeos do Porta ou vendermos alguns para a TV, ele não será queimado. Uma maneira fácil de gerar visualizações seria fazer humor de atualidade, é algo quente, e o público da internet ama. Mas não fazemos. Gostamos de esperar um pouco, deixar amornar, para não fazer a primeira piada que vier à mente. Não nos interessa fazer vídeos no calor dos acontecimentos. 

O que o humor ainda tem a ensinar para a democracia brasileira?
O Brasil ainda tem muito fundamentalismo religioso, homofobia, racismo e machismo. Acho que o humor bem feito vai contra isso tudo porque relativiza as grandes certezas. Gosto do humor que dá uma rasteira nas certezas. Rir mais de si mesmo faria muito bem para o Brasil. 

Vitória do Porta
Na semana que passou, um processo iniciado pelo deputado federal Marco Feliciano (PSC-SP) contra o grupo de humor Porta dos Fundos foi arquivado pelo Ministério Público de São Paulo. Os humoristas eram acusados de cometer "ultraje a culto" após divulgarem, no final do ano passado, uma série de vídeos parodiando passagens da Bíblia. Representado pelo advogado Alexandre Fidalgo, o grupo alegou que o humor constitui exercício do direito constitucional de liberdade de expressão. O juiz José Zoéga Coelho decidiu que não era possível "extrair das cenas e frases dos personagens a intenção de ofender a Igreja ou culto religioso", arquivando o caso.
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Reportagem por Alexandre Lucchese
Fonte: ZH online, 31/01/2015 | 16h01
Foto: Lauro Alves / Agencia RBS

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