quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Índice de torcimento de nariz

Alison Entrekin*
O impacto na tradução das características estruturais e culturais de um idioma

Algumas traduções saem como se fossem cópias do original. São poucas. E tem outras em que é preciso trair para ser fiel. São a maioria. Não digo que é o caso de trair o autor, mas de trair um pouco o que está na página. É complexo, eu sei, porque teoricamente um livro já publicado na língua original deveria ser tratado como algo fechado, sem precisar de intervenções estilísticas de tradutores e editores em outras línguas. Mas na realidade não é bem assim.

Às vezes parece que há um hiato entre as línguas e culturas. Eu diria que o brasileiro, de forma geral, se sente mais à vontade com as emoções fortes do que nós da língua inglesa – e a maneira de colocá-las no papel diverge. Assim, sem nenhum ajuste, nenhuma intervenção, o que é poético em português pode parecer meio piegas em inglês, enquanto o nosso poético pode parecer um tanto seco transposto para o português. Um texto analítico e espirituoso em português às vezes soa prolixo ou pedante em inglês, ao passo que um texto claro e objetivo em inglês pode parecer simplista demais em português.

Acho fascinante esse impacto da cultura na recepção de uma tradução. Isto é, mesmo que exista uma tradução fiel para determinada coisa, a maneira com que é recebida depende do condicionamento cultural e das expectativas estéticas e estilísticas do leitor.

Mas as diferenças não são apenas culturais, também têm a ver com as características estruturais dos idiomas. Via de regra, as frases em português se organizam em torno dos substantivos, enquanto as mesmas em inglês se estruturam melhor em torno dos verbos. E já falei da pontuação em outra coluna.

Essas coisas todas influenciam o jeito que se lê uma tradução e, portanto, são as coisas com as quais mais me preocupo no meu trabalho. Com freqüência, eu me encontro invertendo, quebrando ou juntando frases, trocando substantivos por verbos e fazendo pequenos – mas significativos – ajustes à pontuação. Cometo essas traições numa tentativa de recriar o tom e a atmosfera do original, porque acredito que uma obra literária é maior que a soma de suas partes. Não é apenas uma história, não são apenas as palavras escritas no papel. É toda uma viagem metafísica que o leitor empreende, e quero que o leitor da minha tradução faça uma viagem parecida com a do leitor do original.

As cenas eróticas são das mais encrencadas. O assunto é um campo minado de possíveis faux pas e constrangimentos, e qualquer deslize pode produzir um efeito chulo ou cômico. Num livro que traduzi recentemente, a autora usa a palavra “sexo” para falar dos órgãos genitais. Cabe perfeitamente no texto original e ela conseguiu escrever cenas sensuais sem pender para o vulgar. Temos a mesma palavra em inglês, com a mesma acepção, mas ela soava pudica demais na tradução. As outras opções não eram nada animadoras. De um lado, tinha as mais pornográficas (do tipo pau e boceta), e do outro, as mais clínicas (pênis e vagina). A esta altura, alguns dos meus leitores devem estar rindo, enquanto outros estão se perguntando se é necessário usar palavras tão fortes num ensaio sobre tradução. Mas é justamente aonde quero chegar: se o tradutor errar a mão, se a palavra não couber no contexto, ela salta da página e cria um efeito engraçado ou constrangedor. Na tradução em questão, acabei tirando quase todas as palavras que se referem às partes íntimas. “Como?” você pergunta. Dei voltas, usei referências vagas (“lá em baixo”, “entre as pernas”, etc.) e até deixei “sex” em dois lugares onde eu achava menos estranho (mas a editora achou esquisito e pediu para tirar).

Tive a mesma dificuldade com as menções de calcinhas, que, por algum motivo, são um tanto controversas entre os leitores de língua inglesa. A palavra “panties”, usada nos Estados Unidos, provoca certo mal-estar entre outros falantes da língua inglesa, ao passo que “knickers”, usado no Reino Unido e Austrália, produz efeito semelhante em alguns americanos. Mas o problema não era só o fato de pertencerem a variantes diferentes do inglês. Na minha cabeça, elas traíam o tom do texto que eu estava traduzindo – e quando mostrei para algumas amigas veio a confirmação: também as incomodavam. Acabei usando “underwear” (roupas íntimas) em algumas partes da tradução, e cortando a palavra em outras.

Calcinhas molhadas, então, nem se fala! Há uma linha tênue entre o erótico e o pornográfico – e a posição desta linha varia de língua para língua, de cultura para cultura. A verdade é que têm coisas que você pode falar numa língua, e não têm nada demais, enquanto na outra são gatilhos para toda uma série de reações indesejadas. Sempre que estou na dúvida, pergunto para amigos gringos se estão tendo a mesma reação que eu. Chamo isso de “cringe factor” em inglês – algo como “índice de torcimento de nariz”.

O humor é outra coisa complicada, porque depende muitas vezes de um profundo conhecimento da cultura em questão. Quando eu era pequena, uns amigos americanos vieram nos visitar na Austrália, e um dia assistimos ao seriado inglês Fawlty Towers juntos. Enquanto a minha família rolava no chão de rir, nossos amigos davam sorrisinhos amarelos, decerto se perguntando qual era a graça daquilo.[i]
E isto é, para mim, o cerne da questão: a graça. Eu me pergunto: “Qual é a graça (beleza/sedução/poder) deste livro? O que ele me provoca?” e depois tento reproduzir aquilo. É uma estrela guia, muito acima das palavras no papel, que me ajuda a ir além dos detalhes e pensar no livro como um todo. E é por isso que gosto de ler o livro antes de começar a tradução, porque preciso ter a experiência da leitura como ponto de partida.


[i] Não sei se isso aconteceria hoje em dia, devido ao maior grau de intercâmbio cultural entre os Estados Unidos e a Inglaterra.

Alison Entrekin é tradutora literária australiana radicada no Brasil. Verteu para o inglês Cidade de Deus, do Paulo Lins, O filho eterno, do Cristovão Tezza, Perto do coração selvagem, da Clarice Lispector e Budapeste, do Chico Buarque, entre outros.
Fonte:  http://www.revistapessoa.com/2015/02/

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