terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Para quadrinista francês, slogan ‘Je suis Charlie’ escondeu discriminação a muçulmanos


Protegidos pela polícia, desenhistas gritam: ‘Nós não temos medo’. Charge do quadrinista francês Halim Mahmoudi -
Divulgação / Halim Mahmoudi
 
De origem argelina, Halim Mahmoudi afirma que desenhistas não têm liberdade de expressão nas redações francesas

RIO - O quadrinista e cartunista Halim Mahmoudi é uma voz destoante no debate que se seguiu aos atentados terroristas à sede do jornal satírico “Charlie Hebdo”, em Paris. Francês de origem argelina, ele cresceu nos subúrbios pobres da cidade francesa de Rouen, em uma cultura muçulmana — experiência retratada em duas de suas graphic novels, o premiado “Arabico” e “Un monde libre” —, e sempre condenou as caricaturas de Maomé feitas pela semanário.

Embora também esteja arrasado com o massacre, que matou oito membros da equipe do jornal, Mahmoudi critica a comoção que tomou conta do país nas últimas semanas. Para o quadrinista, as manifestações que levaram milhões de pessoas às ruas e transformaram o slogan “Je suis Charlie” em símbolo da liberdade acabaram escondendo outras questões importantes, como a discriminação contra os muçulmanos. Em entrevista ao GLOBO, ele afirma que o desenho de imprensa é uma “indústria corrompida" e acusa as redações dos jornais de censurar os seus chargistas. “Não existe liberdade de expressão na França, nenhum desenhista está livre para desenhar o que quer”.

Como reagiu ao saber dos atentados?
Fiquei perplexo, devastado pela dor. Conhecia alguns dos cartunistas, especialmente Tignous. Nos dias seguintes, sofri duplamente: sofri como desenhista de imprensa satírica, devastado pela morte de colegas, mas também senti raiva frente à violência do tratamento midiático contra os muçulmanos, os árabes e os negros que, como eu, vivem na França. Em um primeiro momento, recusei todos os pedidos de desenhos sobre o assunto. Me senti em uma armadilha. A maioria dos desenhistas usou o lápis como uma arma, e não um meio de comunicação. Parece que todo mundo perdeu a cabeça.

O cartunismo está hoje no centro do debate da liberdade de expressão na França. Como isso influencia o seu trabalho?
Na verdade, a profissão de desenhista nunca esteve no centro do debate. Houve apenas discussões inúteis para se assegurar de que são os outros que não sabem nada de humor. É mais uma terapia de grupo do que um debate de fato... No fundo, somos mais ameaçados pelas linhas editoriais e contingências econômicas do que por fundamentalistas religiosos. Não há fatwas contra cada desenhista do país, isso é paranoia!

Suas duas graphic novels, ‘Arabico’ e ‘Un monde libre’ abordam a discriminação contra imigrantes na França. Existe tabu sobre esse assunto na França?
Falei sobre discriminação de maneira frontal, direta. Na França, pode-se falar sobre discriminação, mas de forma gentil. Só se for para fazer chorar e dizer que não é culpa de ninguém. Ou então que é culpa dos pais imigrantes que não souberam educar seus filhos, ou das crianças que não quiseram se integrar. O debate sobre a discriminação é quase inexistente.

Como vê o movimento ‘Je suis Charlie’? Acredita que levantou questões importantes?
Ao contrário, o “Je suis Charlie” foi muito útil para mascarar as boas questões. O movimento foi muito violento ao tentar impedir que quem pensasse diferente se expressasse. Sob o pretexto de que nada justifica um assassinato, e estamos todos de acordo nesse ponto, não temos mais o direito de pensar diferente, de matizar o assunto. Ficou muito difícil criticar o “Charlie”, questionar a validade das charges deles, sem passar por conservador, covarde ou traidor.

Você é contra o estilo do ‘Charlie Hebdo’?
É um jornal anticlerical, mas não se ataca os terroristas insultando a fé de milhões de pessoas, isso não serve para nada. Eles tinham se refugiado no mito coletivo do guerreiro contra o estrangeiro, contra um religião que eles não compreendem, contra um mundo árabe que eles infantilizam.
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Mas não há liberdade de expressão no país?
Não existe liberdade de expressão na França, nenhum desenhista está livre para desenhar o que quer. Sempre tem um comitê de redação, um chefe, uma linha editorial, tabus absolutos, uma censura, um medo dos anunciantes que financiam o jornal ou dos recursos jurídicos implacáveis. Muitos cartunistas se autocensuram para serem publicados. A tal liberdade de expressão custou caro à Placid, um antigo cartunista do “Charlie Hebdo” que, em janeiro de 2005, foi condenado pela justiça francesa por ter feito a caricatura de um policial com um nariz de porco. Placid não foi defendido por nenhum dos seus colegas do “Charlie”.

Como vê as condições de trabalho para os cartunistas?
O desenho de imprensa é uma indústria corrompida, um meio congestionado, com um punhado de desenhistas sendo tratados como estrelas de cinema. Eles trabalham em quase todos jornais do país. Há pouco espaço para os jovens, ou para um tipo diferente de desenho. Esses poucos desenhistas são produtos comerciais, eles expõem, fazem livros, publicam em todos os lugares e mantêm a ilusão de que o desenho satírico é um baluarte contra o obscurantismo. Na verdade, é o contrário, pois vivemos o reinado dos desenhos que não dizem nada.

Acredita que os atentados podem mudar para sempre o desenho satírico na França e na Europa?
Não, acredito que nada vai mudar. Vai continuar com pequenos jornais engajados, sem anunciantes, onde se verá mais desenhos satíricos do que na grande mídia. Mas, globalmente, o desenho vai continuar o que ele sempre foi: politicamente correto. Somos meros papagaios. O abismo vai aumentar entre uma Europa que acredita ter o monopólio do humor e da liberdade, e o resto do mundo, que será acusado de não ser “livre”.
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Fonte: Jornal O Globo online, 10/02/2015

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