segunda-feira, 30 de março de 2015

"ASSISTIMOS O COMEÇO DO FIM. O PT TENDE A VIRAR UM ARREMEDO DO PMDB"

Frei Betto (Foto: Iara Morselli/Estadão)
 
Ícone do PT , Frei Betto diz que a única saída para o partido que governa o País há 12 anos é voltar às origens e buscar a governabilidade com os movimentos sociais.

Um mês depois de ser reeleita, a presidente Dilma Rousseff recebeu Frei Betto e o Grupo Emaús, da Teologia da Libertação, no Palácio do Planalto. Durante uma hora e vinte minutos, também na presença do chefe da Casa Civil, Aloizio Mercadante, ouviu uma série de críticas e sugestões para que o governo continuasse “implementando o projeto que tanto beneficia a sociedade brasileira, principalmente os mais vulneráveis”.

A conversa, de acordo com ele, foi ótima. “Só que, de repente, vem o Joaquim Levy com um ajuste fiscal penalizando, sobretudo, os mais pobres. Quem assistiu ao filme Adeus, Lenin! pode fazer o seguinte paralelo: se um cidadão brasileiro, disposto a votar na reeleição da Dilma, tivesse entrado em agonia no início de agosto de 2014 e despertasse agora, neste mês de março, no hospital e visse o noticiário, certamente estaria convencido de que o Aécio havia vencido a eleição”.

Frei Betto – que, com as comunidades eclesiais de base, ajudou a fundar o PT e, como assessor especial do ex-presidente Lula, coordenou o programa Fome Zero – diz que o que falta ao governo, desde 2003, é “planejamento estratégico”. Segundo ele, que é amigo do ex-presidente Lula há mais de 30 anos e conhece a presidente Dilma desde a infância – “somos da mesma rua em Belo Horizonte” –, em doze anos de governo, o PT não conseguiu tirar do papel nenhuma reforma de estrutura prometida em seus documentos originais e, ao chegar ao governo, “trocou um projeto de Brasil por um projeto de poder, escanteou os movimentos sociais” e ficou “refém desse Congresso, dependendo de alianças espúrias”.

“Agora, seu grande aliado, o PMDB, se rebela e cria – com o perdão da expressão – uma cunha renana para asfixiar o Poder Executivo”.

Qual a saída? “O PT ser fiel às suas origens. Buscar a governabilidade pelo estreitamento de seus vínculos com os movimentos sociais. Fora disso, tenho a impressão de que estamos começando a assistir ao começo do fim. Pode até perdurar, mas o PT tende a virar um arremedo do PMDB”, sentencia ele, que é autor de 60 livros, entre eles A Mosca Azul (“uma reflexão sobre a história do poder e a história do PT no poder”) e Calendário do Poder (“um diário do Planalto”), ambos editados pela Rocco.

A seguir, os principais trechos da conversa com Frei Betto, que recebeu a coluna no Convento Santo Alberto Magno, no bairro de Perdizes, onde mora.

Como o senhor avalia o atual momento do País?
O Brasil está vivendo um momento de crise política e econômica. Prevejo quatro anos de governo Dilma com muita turbulência, manifestações, greves, impasses. E me pergunto se, em 2018, o PMDB apoiará o candidato do PT. Como bom mineiro, desconfio que não e não me surpreenderei se o PMDB lançar um candidato próprio, com apoio do PSB e outros pequenos partidos. A questão é que tivemos 12 anos de governo do PT que, na minha avaliação, apesar de todos os pesares – e põe pesares nisso –, foram os melhores da nossa história republicana, sobretudo no quesito social. Efetivamente, 36 milhões de pessoas deixaram a miséria. Hoje, os aeroportos deixaram de ser um espaço elitista. Se vamos em um barraco de favela, lá dentro tem TV a cores, micro-ondas, máquina de lavar, fogão, geladeira, telefones celulares, talvez um computador e, possivelmente, no pé do morro, um carrinho que está sendo comprado em 60, 90 prestações mensais. Porém, essa família continua no barraco, sem saneamento, em um emprego precário, sem acesso a saúde, educação, transporte público e segurança de qualidade. O governo facilitou o acesso dos brasileiros aos bens pessoais, mas não aos bens sociais.

O que faltou?
Não tivemos, em doze anos, nenhuma reforma de estrutura, nenhuma daquelas prometidas nos documentos originais do PT. Nem a agrária, nem a tributária, nem a política. E aí poderíamos acrescentar nem a da educação, nem a urbana. Em suma, o que falta ao governo – e desde 2003 – é planejamento estratégico.

Como assim?
Governa-se na base dos efeitos pontuais, da administração de crises ocasionais, porque o PT trocou um projeto de Brasil por um projeto de poder. Permanecer no poder se tornou mais importante do que fazer o Brasil deslanchar para uma nação justa, livre, soberana e igualitária. Como é que um governo que pretende desenvolver a nação brasileira cria um ministério que eu qualifico de coral desafinado? O que tem a ver Joaquim Levy com Miguel Rossetto? Kátia Abreu com Patrus Ananias? José Eduardo Cardozo com George Hilton?

Em artigo publicado pouco antes das eleições, o senhor listou 13 razões para votar na Dilma. Agora, escreveu novo artigo, A Farra Acabou, com críticas ao governo. O que mudou?
O que mudou é que, infelizmente, aquelas 13 razões não foram abraçadas no segundo mandato de Dilma. A presidente montou um ministério esdrúxulo, que não conseguiu nem sequer ter um projeto de Brasil minimamente emancipatório, como era o Fome Zero. Aliás, o próprio governo que o criou o matou, substituindo-o por um programa compensatório chamado Bolsa Família – que é bom, mas não tem caráter emancipatório. Todo o governo opera agora em função de um detalhe, não de um projeto histórico, que é o ajuste fiscal. E penalizando os mais pobres, não o capital. Todas as bases desse ajuste estão em cima da redução do seguro-desemprego, do abono salarial, do imposto sobre o consumo. E nada em termos das grandes heranças, dos royalties que saem do País, das grandes transferências de dinheiro, dos brasileiros que têm dinheiro nos paraísos fiscais. A conta vai ser paga por aqueles que já lutam com dificuldade.

O senhor quer dizer que estamos em um caminho sem volta?
O grave do governo do PT – tendo sido construído e consolidado pelos movimentos sociais – foi, ao chegar ao Planalto, ter preferido assegurar sua governabilidade com o mercado e com o Congresso e escantear os movimentos sociais. Hoje, eles são tolerados ou, como no caso da UNE e da CUT, manipulados, invertendo o seu papel. Com isso, o PT ficou refém desse Congresso, dependendo de alianças espúrias. Agora, o seu grande aliado, o PMDB, se rebela, cria – com o perdão da expressão – uma cunha renana para asfixiar o Executivo. Se alguém me pergunta “qual é a saída”? É o PT ser fiel às suas origens. Buscar a governabilidade pelo estreitamento de seus vínculos com os movimentos sociais. Ou seja, o segmento organizado, consciente e politizado da nação brasileira. Fora disso, tenho a impressão de que estamos começando a assistir ao começo do fim. Pode até perdurar, mas o PT tende a virar um arremedo do PMDB. Creio que cabe hoje, ao governo, fazer uma autocrítica séria.

Por meio dos movimentos sociais é que seria possível recuperar a imagem do partido?
Exatamente. O PT precisa sair da posição de bicho acuado em que se colocou. O partido, até hoje, não declarou se os envolvidos no mensalão são inocentes ou culpados; o partido, até hoje, não declarou se ele, que governa o Brasil e, portanto, a Petrobrás, tem ou não responsabilidade na devassa que está sendo feita na maior empresa brasileira. O partido se afastou das bases sociais. Onde estão os núcleos populares que, nos anos 80, encantavam todas as pessoas que chegavam na zona leste de São Paulo, em uma favela, e a dona Maria, orgulhosamente, mostrava um barracão que era a sede do núcleo do PT? Onde está o trabalho de base, de formação política? Embora não tenha sido militante do PT, mas como ajudei a construir o partido por meio do trabalho pastoral, hoje me pergunto: onde estão os líderes do PT que, aos fins de semana, voltam para as favelas e periferias? Onde estão os líderes do PT que não tiveram um assombroso aumento de seu patrimônio familiar durante esses anos, a ponto de não se sentirem mais à vontade em uma assembleia de sem-teto, em uma aldeia indígena, em um fim de semana em um quilombola? Onde estão eles? Existem. São raros. Não vou citar nomes, mas tenho profundo respeito por militantes e dirigentes do PT que são muito coerentes com aquele PT originário. Mas, infelizmente, eles são exceção.

Como disse recentemente a senadora Marta Suplicy, “ou o PT muda ou acaba”.
É como já disse, o PT tem de mudar no sentido de voltar às suas origens e às suas bases sociais. Acabar não vai, porque tem tantos oportunistas que ingressaram no PT como rampa de acesso às benesses do poder, que o partido tende, inclusive, a inchar de gente que não tem nada a ver com as suas origens. Dou um exemplo: curiosamente, coincidindo com o dia em que a presidente entrega à nação um pacote anticorrupção, no estado do Rio um prefeito é flagrado na corrupção. O que esse cidadão tem a ver com a história de um partido que, ao nascer, se afirmou por três capitais: ser o partido ético na política brasileira, ser o partido dos pobres e ser o partido que, a longo prazo, construiria uma alternativa ao País, com uma sociedade socialista? O PT abandonou os três capitais. Esse pessoal que não tem a ver com o PT viu que, sendo do partido, o maná cai do céu. Fico me perguntando quantos outros exemplos não devem existir por esse Brasil afora?

Poderíamos apontar um culpado por esse rumo diferente que o partido tomou? O ex-presidente Lula?
Jamais, na minha análise – isso é um princípio – personalizo os acontecimentos. Porque não acredito que a história humana seja feita por meio de salvadores da pátria. É feita de movimentos e processos sociais. É preciso que haja uma luta interna no PT muito acirrada para que o partido seja minimamente coerente com suas origens e propostas.

O senhor é a favor do “volta, Lula”? Ele poderia “salvar” o governo desta atual crise?
Minha avaliação é que Lula só não será candidato à presidência em 2018 se morrer. Fora isso, tenho absoluta segurança de que ele será candidato. Não foi ele que me disse isso, é apenas da minha cabeça. Mas a questão não é “com o Lula voltando, as coisas vão se resolver”. O problema é o rumo que o partido tomou e imprimiu ao governo do Brasil. Há coisas extremamente positivas, mas a expectativa era muito maior. Governo se faz com luta interna, aprendi isso nos dois anos em que estive lá. Governo é como feijão, só funciona na panela de pressão. Aquilo é um caldeirão em fervura permanente. Mas é preciso que haja alguns segmentos dentro do governo capazes de elaborar uma proposta estratégica a longo prazo, que sirva de norte para as políticas. E isso não existe hoje.

O que existe?
Um pacote de propostas pontuais. A falta de horizonte histórico no projeto do governo, agravada pelo fim das ideologias libertárias desde a queda do muro de Berlim, é o que explica por que o debate político hoje desceu do racional para o emocional. É como briga de casal. Quando se perde um projeto amoroso ou da família, emoções afloram, insultos, ofensas, sentimento de ira e vingança, porque não se tem horizonte. Quando esse horizonte histórico existe, quando se tem projeto estratégico, o debate democrático fica no nível da racionalidade, não da emocionalidade. Mas essa fúria nacional que perpassa todos os ambientes só vai terminar se houver alguma força política que aponte um projeto histórico.
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Reportagem por THAIS ARBEX
Fonte: Estadão 30/03/2015


sábado, 28 de março de 2015

A memória nas nuvens

 PAULO GLEICH*
 
Cedo ou tarde, toda conversa ou discussão acaba tendo um “momento quiz”. Quem era mesmo o protagonista daquele filme? Qual time foi rebaixado no campeonato local em 86? Antes as mentes reviravam aflitas suas gavetas atrás de respostas, hoje bastam alguns movimentos dos dedos para encontrá-las em smartphones e tablets. Há quem se ressinta da intromissão digital em conversas analógicas: existe prazer em ficar quebrando a cabeça para desvendar o mistério momentâneo. É provável que o Google acabe enterrando esse jogo social em alguns anos – entre outras coisas.

Como não fui abençoado com a melhor das memórias – salvo a peculiar memória inconsciente que funciona quando escutamos os pacientes –, considero uma bênção ter essa espécie de HD externo portátil. A nuvem, que acessamos com esses dispositivos, é um repositório de dados virtualmente infinito. Lá, estão guardados para acesso imediato informações de todas as espécies, de simples números de telefone a textos clássicos, passando por imagens, vídeos, músicas, podcasts, e-mails, bases de dados.

Em As Tecnologias da Inteligência, o filósofo Pierre Lévy compara o surgimento dos meios digitais à invenção da escrita, em termos do impacto sobre a humanidade. Se ele tem razão só o tempo dirá, mas não há dúvida de que está em curso uma transformação importante na forma com que lidamos com o saber. A lógica linear inaugurada pela escrita, que possibilitou o registro e, portanto, a invenção do tempo e da história, vai dando espaço para a lógica fragmentada, instantânea, efêmera das redes do mundo digital.

Estudos têm demonstrado que retemos cada vez menos dados na memória com o crescente uso desses dispositivos. Uma porque somos inundados por uma quantidade cada vez maior de informações, das mais importantes às mais banais, e tudo ao mesmo tempo. Outra porque o cérebro sabe que pode muito facilmente encontrá-las, não tem mais por que armazenar tanta coisa. Fala-se em perda de memória e de outras capacidades, mas o que esses estudos revelam é a forma como nos adaptamos, às vezes com assustadora plasticidade, ao mundo artificial que começamos a criar milhões de anos atrás.

Deparar-se com essas transformações eventualmente nos deixa desnorteados, pois elas têm também efeitos sobre como nos pensamos e constituímos como indivíduos. Nossa subjetividade, que temos como algo íntimo e imutável, se forma em grande parte a partir do que vem de fora de nós. Deparar-nos com lógicas estranhas às que originalmente nos constituíram pode gerar estranhamento, angústia, resistências. Sobretudo em relação às gerações mais novas, nas quais é visível como essas tecnologias influenciam capacidades cognitivas e modos de ser. Os mais catastróficos temem o fim dos tempos, o retorno à barbárie – é o fim do saber e da memória, é o fim da história!

Concordo com Lévy, que não dá muita fé aos presságios apocalípticos. Mas em algo eles têm razão: é possível que estejamos vivendo o fim dos nossos tempos, da forma como os (e nos) conhecemos. Porém, assim como a escrita não substituiu, mas sim se somou à oralidade – ela foi o primeiro HD externo da humanidade! –, também a lógica dos tempos digitais não substituirá as que a antecederam. A coexistência das três, no entanto, constitui algo novo, cujos efeitos apenas iniciamos a entrever.

A nostalgia dos tempos “melhores” e as visões catastróficas do futuro que muitas vezes nos afetam são formas de nos protegermos da angústia causada pelo desconhecido. São porém uma tentativa pouco eficaz de evitar mudanças que já estão em um curso impossível de reverter. Já que não voltaremos às eras pré-digitais, gourmetizadas pelas distorções e enganos que caracterizam a memória humana, mais vale fazer um esforço para encarar o porvir mais despidos de preconceitos. Quem sabe assim possamos ir aos poucos entendendo – e aprimorando – esse mundo que está se desenhando?
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* Jornalista e psicanalista.
Fonte: ZH online, 29/03/2015

A SAUDADE QUE ENTERNECE

 J.J. Camargo*
 

Usina recicladora dos afetos permanentes, ela se torna ingrediente milagroso

Ninguém encanta escrevendo sobre o que não sente. O David Coimbra sempre escreveu maravilhosamente, mas quando parecia impossível melhorar, descobrimos que é possível.

Se nos dermos ao deleite de reler suas crônicas do último ano, perceberemos que as contemporâneas, políticas ou não, são ótimas, mas as melhores são aquelas que envolvem reminiscências, onde predomina, como era inevitável, o efeito catártico da distância. Esse é o benefício dos anos sabáticos na depuração dos sentimentos.

E tudo simplesmente porque a revisão amorosa das nossas experiências de vida é enriquecida pela saudade, essa poderosa usina recicladora dos afetos permanentes. É esse o ingrediente milagroso que nos faz mais carentes, mas também enternece a nossa memória e traz os nossos sensores afetivos para a flor da pele.

Quando vivi nos EUA, senti a necessidade visceral de escrever para aquelas pessoas de quem, acabara de descobrir, gostava mais do que tinha tido o cuidado de anunciar, e aquilo de repente me parecera um imperdoável desleixo emocional. Se um paciente me lembrava algum amigo, canalizava o afeto reprimido, e cuidava dele como se cuida de um ente amado. E como carência afetiva é um mal cosmopolita, nunca me faltou um receptor disponível.

Foi assim que me aproximei do Mr. Collis, um velho plantador de milho de Minnesota que fora internado para tratar de um tumor de pulmão aparentemente precoce. Pedi a um colega para assumir o caso dele, e nunca expliquei a nenhum dos dois que eu precisava proteger a saudade que evocava aquela cabeça idêntica à do meu pai.

Compartilhei o entusiasmo com que lhe fora anunciada a perspectiva de cura e me condoí quando o meu chefe anunciou, sem preâmbulos, que infelizmente estava frustrado porque a doença estava disseminada e aquele nódulo pulmonar, de aparência inocente, era, na realidade, a ponta do iceberg de um câncer avançado.

Depois que o quarto esvaziou porque todos debandaram com aquela pressa de quem foge da impotência, ficamos sós, e ele implorou que eu desse um jeito de protelar a sua morte até depois do Natal, porque se não, a volta extemporânea do filho, envolvido num projeto milionário na Tailândia, arruinaria sua brilhante carreira de jovem engenheiro.

Ele sabia que eu não tinha como ajudá-lo. Eu também. Mas nos prometemos. E como dois seres apátridas, ficamos um tempo de mãos dadas, cada um administrando a sua saudade. Esse sentimento imenso e único, que sempre aponta para casa. Não importa a distância.
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J. J. Camargo é cirurgião torácico e diretor do Centro de Transplantes da Santa Casa de Porto Alegre 
Fonte: ZH online, 28/03/2015

A gravidade da crise

Marcos Nobre*

Cid Gomes no plenário da Câmara pouco antes de ser demitido do Ministério da Educação

Cid Gomes no plenário da Câmara pouco antes de ser demitido do Ministério da Educação

Se o sistema político tentar se blindar contra as polarizações existentes nas ruas, situação pode atingir cores ainda mais dramáticas, diz filósofo

O sistema político entrou em pane. A franja parlamentar que se costuma chamar de oposição, liderada pelo PSDB, foi inteiramente atropelada pela oposição que foi às ruas. O PT não lidera o governo que elegeu. O PMDB se divide hoje em três ou quatro ajuntamentos que não se entendem e operam de maneira independente e descoordenada. O PP simplesmente implodiu e os escombros serão recolhidos por algum cacique regional e pelo PSD, que tem dois ministros e uma bancada na Câmara que só costuma entregar metade de seus votos ao governo. Isso para falar apenas dos maiores partidos do País.

Qualquer governo nunca é rocha sólida, é sempre cheio de furos e fraturas por onde se infiltram viscosidades várias. Acontece que está difícil de ver a rocha. Os centros de comando se multiplicaram e estão operando de maneira bastante independente. Só a política econômica parece estar sob relativo controle, ainda que sob permanente ataque de todos os lados. De qualquer maneira, é um controle de tipo motoniveladora e tesoura e não efetiva coordenação.

Uma situação como essa não pode e não deve ser caracterizada apenas como uma crise. É uma crise muito grave, que pode levar o País a uma situação de paralisia ou de regressão por um longo período. É a primeira grande crise em situação de estabilidade da história recente do País.

A estabilidade que se teve nos 20 anos que vão desde o impeachment de Collor até junho de 2013 foi pontuada por momentos de crise. Mas, em termos de gravidade, nenhuma crise chega perto da que se vive agora, com a conjunção de crise de governabilidade, crise econômica, crise hídrica e de energia, crise do sistema partidário.

A crise do sistema partidário é sintoma do fosso entre sistema político e sociedade. Essa crise de representação esteve no centro das revoltas de junho, onde forças políticas opostas ocuparam a mesma rua ao mesmo tempo. A polarização da eleição presidencial de 2014 refletiu, ainda que de maneira limitada, um princípio de organização dessas polarizações sociais reais, que estavam até ali bloqueadas pelo sistema político. Mas essa polarização não se consubstanciou em bancadas de situação e de oposição correspondentes, não encontrou expressão adequada no interior do sistema político.

O pouco mais pouco menos da metade do eleitorado que votou em Dilma Rousseff não se sente representado pela megamaioria de apoio ao governo, que embute a verdadeira, real e efetiva oposição ao próprio governo. O mesmo vale para o pouco mais pouco menos da metade do eleitorado que não votou em Dilma Rousseff: não se sente representado pela franja oposicionista, que não tem nenhum outro projeto a não ser manter o condomínio do mesmo jeito, só mudando o síndico. O único político (de oposição, ressalte-se) que ousou tomar um microfone na Avenida Paulista em 15 de março foi impedido de falar pelas vaias.

Um outro efeito decisivo do junho de 2013 pode ser visto na Operação Lava Jato. Foi a conjunção do clamor das ruas com uma longa preparação de órgãos judiciais e de investigação que conseguiu superar os bloqueios escandalosos que o sistema político impôs a operações anteriores de mesma magnitude. Em 2010, por exemplo, o Superior Tribunal de Justiça bloqueou a Operação Castelo de Areia, precursora da atual Lava Jato. Com isso, foi adiada em cinco anos a nossa “Operação Mãos Limpas”, aquela que mudou para sempre a política da Itália nos anos 1990. Foi perdida mais uma chance de alçar o modo de operação do sistema político a um novo e superior patamar, em um momento econômico ainda relativamente favorável àquela altura.

Diante do risco muito concreto de enfrentarem não apenas o fim de suas carreiras políticas, mas a prisão, grupos inteiros dentro dos partidos se organizaram com o objetivo único e primordial da autodefesa, fragmentando ainda mais um sistema já perto do inadministrável. Situação que é um obstáculo quase intransponível a qualquer projeto de reorganização do sistema político com base em acordos estritamente partidários. Porque o aprofundamento das investigações da Lava Jato vai ter o efeito de desorganizar ainda mais um cenário partidário já muito desarrumado.

Do lado da sociedade, o efeito pode ser o do crescimento de uma negação abstrata da política, de uma rejeição da política enquanto tal. É o caldo de cultura perfeito para a formação de um despolitizado “que se vayan todos”, nos moldes da Argentina de 2001. Esse abismo está posto diante do País e não pode ser ignorado.

Qualquer reconstrução da governabilidade nos moldes tradicionais do peemedebismo do sistema político - ou, para lembrar o eufemismo que ficou consagrado, o “presidencialismo de coalizão” - vai ser bombardeada por quatro longos anos pelas ruas e pelo oportunismo partidário cabível. Mesmo que a desvalorização do câmbio acabe tendo efeitos econômicos positivos no horizonte de um ou dois anos. Mas pode ser que um governo assim consiga sobreviver.

Ocorre que uma reorganização como essa não depende apenas do governo, mas também da oposição. Do contrário, a crise não vai sequer se estabilizar. A reorganização nesses moldes depende de um balé coreografado entre governo e forças que se disponham a liderar uma frente oposicionista efetiva, que dê voz real à oposição presente na sociedade. Para que isso aconteça, forças partidárias de oposição terão de se perfilar no sentido das ruas, sem recuar nem mesmo diante da bandeira do impeachment, por exemplo - que até agora não foi aceita de maneira inequívoca por nenhuma liderança política de peso. O fato de a maioria dos que foram às ruas no dia 15 de março não ser favorável ao impeachment não significa que o tema saia da pauta. 

Congregando o conjunto das forças de oposição presentes nas ruas em toda a sua diversidade, uma frente como essa teria o potencial de atrair uma bancada parlamentar representativa, capaz de expressar no interior sistema político a real polarização existente na sociedade entre situação e oposição, e não a encenação patética a que se assiste há quase dez anos. De qualquer maneira, se seguida, essa linha de ação teria de ser executada de maneira hábil e cuidadosa, dado o rechaço generalizado da política e dos políticos que emergiu desde junho de 2013.

Não sendo esse o caminho trilhado, pelo menos duas outras possibilidades se abrem. Na primeira delas, o sistema partidário continua desconectado das diferentes forças sociais que irromperam desde 2013. Nesse caso, o sistema político uma vez mais dará as costas às ruas, em toda a diversidade de aspirações presentes nos diferentes protestos. As forças que sustentam o movimento pelo impeachment vão recrudescer e buscar em outsiders do sistema político a expressão de sua insatisfação de base. Essa é a alternativa Joaquim Barbosa, comparável a uma experiência como a de Silvio Berlusconi na Itália. Depois da “Operação Mãos Limpas” e da ausência de uma efetiva reorganização estrutural, o sistema político italiano entrou em colapso e o rechaço generalizado da política e dos políticos só encontrou expressão em Berlusconi.

A segunda e mais improvável possibilidade é a formação de uma frente ampla em torno de uma reorganização do sistema político em novos moldes. A improbabilidade dessa via é tanto maior quanto mais profunda é a incompreensão do significado do junho de 2013. A raiva social liberada ali, a agressividade cotidiana entre vizinhos, colegas de trabalho e mesmo em círculos de amigos não vai voltar para a garrafa só porque se alcançou um novo acordo com o PMDB - qual PMDB, aliás -, ou porque a franja oposicionista resolveu “estudar a possibilidade” de pedido de impeachment.

Ainda não é suficientemente clara a consciência da gravidade da crise atual. Nem ficou ainda evidente que nenhuma força partidária irá se beneficiar do caos. Se se quiser uma imagem: ainda não ficou claro que a situação se assemelha a uma conjunção do momento pós-impeachment de Collor com o início do segundo mandato de FHC, em 1999.

Mas é apenas uma imagem. Porque, ao contrário desses dois outros momentos, hoje não se pode falar sequer em acordos estritamente partidários, dada a fragilidade em que se encontram os partidos. E a construção de um real programa de governo teria de se dar em bases que não sejam ditadas nem dirigidas por nenhuma força política em particular, mas resultado de um efetivo acordo negociado. Para não falar no fato de que o país que viveu vinte anos de relativa estabilidade, os padrões de vida melhoraram e as expectativas de diminuição de desigualdades, efetivação de direitos e de melhoria dos serviços públicos fincaram raízes profundas na sociedade.

Importa ter claro que essas possibilidades hoje visíveis evidentemente não se equivalem nem significam uma efetiva superação da crise. Se o sistema político uma vez mais optar por se blindar contra as polarizações existentes nas ruas o resultado será o prolongamento da crise por outros meios, em versões até mais dramáticas, inclusive.

Porque o pior da crise ainda está por vir. A Lava Jato ainda não fez todo o estrago que tem para fazer. A recessão econômica ainda não mostrou seus dentes. O desemprego ainda não chegou a seu pior momento nem a inflação atingiu seu pico destrutivo. Os racionamentos de água e de energia ainda não se tornaram oficiais. Os protestos de rua ainda não são cotidianos.

A longa e paquidérmica redemocratização brasileira, de 1979 a 2013, foi feita com base em um grande acordo que teve pelo menos três momentos. A década de 1980 foi marcada pela formação de um “Centrão” político para a superação do autoritarismo, uma garantia contra o risco de “guinadas bruscas” do quadro político. Na década de 1990, esse Centrão foi dirigido e direcionado para a produção de uma estabilização econômica e política, superando a paralisia e o caos da década anterior. Na década de 2000, sem alterar essa mesma lógica de gerenciamento do sistema político, a estabilização alcançada foi posta a serviço de uma melhoria geral dos padrões de vida sem aumento das desigualdades.

A crise atual mostra a obsolescência desse acordão típico da redemocratização e a necessidade de uma democratização da democracia, de uma efetiva democratização do sistema político. O ambiente para isso é ruim, evidentemente. Mas é o que se tem.

Qualquer realinhamento tem de ser feito quanto antes. Não se pode esperar que a múltipla crise que enfrentamos atinja seu momento mais destruidor. Do contrário, o que se verá é uma situação de caos social, econômico e político como só a década de 1980 foi capaz de produzir.
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* MARCOS NOBRE É PROFESSOR DE FILOSOFIA DA UNICAMP E PESQUISADOR DO CEBRAP
Fonte: O Estadão online, acesso 28/03/2015

UMA PERVERSA INOCÊNCIA

Charles Dogson, aliás Lewis Carroll, e Alice Lidell, aliás "a do livro". Em O Fotógrafo e a Rapariga, Mário Cláudio recua até à Inglaterra do século XIX para reconstituir uma das mais prodigiosas ligações da vida ao romance e do romance 
à vida – e assim encerra uma trilogia.
Com O Fotógrafo e a Rapariga, Mário Cláudio conclui uma trilogia iniciada com Boa Noite, Senhor Soares (Dom Quixote, 2008) e retomada em Retrato de Rapaz (Dom Quixote, 2014). Qualquer uma destas ficções se fixa na problemática da diferença de idades entre personagens centrais. Se, no primeiro, o autor ficciona o semi-heterónimo pessoano Bernardo Soares, cruzando-o com dados históricos e biográficos do próprio Pessoa, em Retrato de Rapaz executa um quadro de época que representa figuras reais, dotando-as de elementos romanescos baseados em dados historiográficos e da biografia. O mesmo paradigma está presente em O Fotógrafo e a Rapariga. Nele, Mário Cláudio efabula a relação entre o matemático, académico e clérigo Charles Dodgson, celebrizado com o pseudónimo Lewis Carroll, e Alice Lidell, “a do livro”, como diz aquela que esteve na origem das ficções de Carroll.

Os seis capítulos da novela são balizados por dois momentos paralelos à acção nuclear da obra. Numa espécie de prólogo na primeira pessoa, Alice começa por evocar um passado nunca completamente enterrado. É a oportunidade para o confrontar com a fatuidade baça do seu presente ancião, em que parece perdida num mundo de ritualismos e compromissos sociais que a ultrapassaram e desiludiram. A conclusão de O Fotógrafo e a Rapariga regressa à primeira pessoa, mas a de Carroll, real e figurativamente só, a bordo de um comboio, que é um comboio fantasma pois alberga todos os espectros desta criatura atormentada pelo demónio de uma sexualidade conturbada.
O Fotógrafo e a Rapariga desenvolve com enorme subtileza um tema particularmente atreito a equívocos e logros. A substância narrativa da novela, perturbantemente lírica, consegue equilibrar os diversos vectores em causa, sem que os seus esforços soçobrem numa tentativa demasiado histriónica de traduzir um caso complexo e patológico. A veia malsã de Carroll, sem ser camuflada, não constitui um padrão demasiado berrante na narrativa, que entretece a pulsação errática e desordenada da jovem com o caos interior do escritor-fotógrafo. O que não deve fazer pensar num resultado asséptico ou insípido. Pelo contrário. O subsolo da novela é, todo ele, uma camada tensa e reactiva, sob a qual se vai “ora ocultado a materialidade, ora desprendendo a fantasmagoria”. E em que inocência e perversidade não são dogmas que imobilizem a escrita.

Mário Cláudio falou, numa crónica (recolhida em O Eixo da Bússola, Quasi Edições, 2007), da “safra de prosseguir na escrita de livros e livros, mais oriundos da cadência da respiração do que obedientes a um projecto de carreira”. Podia comentar?
Sim, reconheço-me nisso. É a ideia de que uma carreira, para mim, não é alguma coisa vigiável. Não se deve talhar uma carreira em função daquilo que é a ressonância exterior do nosso trabalho. Em função das reacções do público, se vende muito ou se vende pouco, se interessa a este ou àquele, ao editor. São razões que acabam por penalizar o próprio autor. Acho que se, de facto, houver obediência a uma razão interior, em que as coisas saiam de dentro para fora e não resultem de fora para dentro, aí teremos, com certeza, maior hipótese de acertar no alvo. E o alvo é isto: a nossa coerência, a nossa identidade, aquilo que nós somos, independentemente do que os outros querem, ou que nos forçam a ser.

Falou de identidade. Quais acha que são os traços da sua identidade enquanto escritor?
São vários. Eu reconheço-me naquilo que tem sido, normalmente, apontado como mais identitário, e é um certo formalismo, em termos linguísticos, um barroquismo de estrutura. E isso obedece a um paradigma dual, entre o barroco e o clássico. Eu estarei no paradigma barroco, e não tenho qualquer problema em me sentir lá. Há também uma certa inscrição num Norte mítico, que não é só o Norte de Portugal, é também o Norte da Europa, uma escrita mais atlântica do que mediterrânica, se quiser, embora com algum apetite da solaridade mediterrânica. Tudo isso são elementos identificadores. Para além dessa tendência para especular com aquilo a que poderíamos chamar, genericamente, o humano. O humano sobretudo numa vertente biográfica. Humanos autênticos, humanos históricos, que passaram por cá, e que eu gosto de ler de acordo com os meus padrões de inteligibilidade. Com os meus padrões de sensibilidade, independentemente daquilo que poderá fazer parte das biografias oficiais mais ou menos canónicas.
No seguimento do que diz, acredita que tem alguma importância, para o estilo do autor, o local de onde ele provém?
Acho que sim. Sem dúvida. Um autor que renegue as suas origens, ou o faz de forma muito viva, optando por outras raízes, por outra área de inserção, outro nicho, ou… E não faltam exemplos de autores que fizeram isso. Logo em Portugal temos um caso paradigmático, que não foi propriamente um abandono das raízes, mas foi uma leitura das raízes da portugalidade à luz daquilo que foi a experiência parisiense. É o caso, por exemplo, do Eça de Queirós. Portanto, aí as coisas estariam certas, seriam absolutamente legítimas e compreensíveis. Mas quando há, digamos, uma estabilidade da raiz, quando a raiz não se altera facilmente, quando algum nomadismo e certa errância temporal não afectam o sedentarismo de base, aí, sim, deve-se abraçar essa dimensão sedentária e lidar com ela de uma forma apaixonada e comprometida. Estou a lembrar-me, por exemplo, do caso da Agustina, que tem um universo claramente português, dificilmente entendível fora de Portugal – e daí que ela seja uma autora tão pouco traduzida, apesar de o merecer. Estou a pensar no Aquilino Ribeiro, a quem aconteceu a mesma coisa. Estou a pensar num galês, John Cowper Powys, que é um grande génio da ficção, e que praticamente não é conhecido fora do País de Gales. Portanto, são figuras importantes, que abraçaram as suas raízes de uma forma tão profunda, e com tanta coragem, que a partir de certa altura se lhes tornou indiferente serem lidos, no sentido mais amplo da palavra, fora do terreno onde essas raízes se desenvolvem.

E para Mário Cláudio, qual é a marca de ser do Porto?
O Porto aparece em muitos dos meus trabalhos. N’ A Quinta das Virtudes, no Camilo Broca, para além das crónicas sobre o Porto que publiquei, e até num livro dedicado à cidade, chamado O Meu Porto. Portanto está, sem dúvida, muito presente. E está presente também, não só como uma paisagem que eu vivi, mas como uma raiz que eu assumi. Porque a minha família está aqui radicada há muitos anos. E é curioso que é uma família que tinha raízes noutros lugares da Europa, na Irlanda, em França e Castela, predominantemente, e que veio para aqui, que se misturou e criou aqui um clã. E isso também é abraçado naquilo que eu faço, portanto a dimensão da cidade é, para mim, intransponível.

O aspecto barroco, de que falou antes, tem alguma coisa que ver com isso?
Não tenho dúvida. É bom que fale nisso, porque eu acho que nós somos condicionados pelo lugar onde vivemos. Seria absolutamente impossível, falando de grandes escritores, pensar num Lampedusa fora da Sicília. Seria impossível pensar nas irmãs Brontë sem ser naquela dimensão de interior cemiterial britânico do século XIX. Ou pensar em Tennessee Williams sem pensar em Nova Orleães. Até é impossível pensar em Proust sem pensar em Paris. Temos aqui, de facto, uma identidade, e os autores que pretendem escrever para fora disso obtêm produtos muito artificiais, coisas um pouco plásticas. Às vezes, por uma ânsia de produzir alguma coisa que esteja à la page internacionalmente, o que resulta é uma ganga. Uma espécie de blue jeans, de blue jeans universais, que toda a gente reconhece, que toda a gente identifica, mas que não pertencem, afinal, a parte nenhuma. E nós sabemos que os blue jeans estão em toda a parte, até no mundo mais pobre.

Concorda que a inserção da biografia no romance, como a pratica Mário Cláudio, é um elemento pouco habitual na ficção actual? A que atribui essa presença na sua obra?
Eu acho que em todos os romances há um elemento biográfico. Não creio que seja possível superar isso. Até acho mais: os grandes romances são sempre romances biográficos. Tenho de falar dos grandes… daqueles que eu considero grandes romances. Guerra e Paz é um romance biográfico, de certa maneira; o Amor de Perdição é um romance biográfico, de uma outra maneira; Em Busca do Tempo Perdido é um romance biográfico, ainda de uma outra maneira. O Homem sem Qualidades é outro romance biográfico. Portanto, os grandes romances da literatura ocidental e que obedecem àquilo que é a tradição do romance francês do século XIX, primeiro romântico, depois realista e naturalista, são produtos muito ligados a lugares. Resultam da vivência dos respectivos autores nesses lugares. Quando isso desaparece, desaparece muita da autenticidade do romance, uma vez mais. Portanto, o elemento biográfico é tão forte no romance como o elemento romance é forte na biografia. Não é possível escrever uma biografia sem romance…
Lewis Carroll com Alice Liddell, para quem escreveria Alice no País das Maravilhas (1865) e Do Outro Lado do Espelho (1871) DR
Mas é verdade que nem todos os autores vão por aí…
Claro que não, claro que não. Pelo menos, afoitamente não terão ido, mas isso acaba por se manifestar de alguma forma. Mais uma vez, se pensar nos autores portugueses modernos, do século XX, desde os neo-realistas, até mesmo autores posteriores que pretenderam reagir contra o neo-realismo… Se pensar, por exemplo, no Finisterra, do Carlos de Oliveira, ou numa A Sibila, da Agustina, ou até nos próprios romances do Cardoso Pires, vai encontrar uma atmosfera que foi existencialmente vivenciada por eles. O mesmo terá acontecido com o Vergílio Ferreira, da Aparição, da Estrela Polar.

Em que medida se distingue o que Mário Cláudio fez em obras como Amadeu, Camilo Broca, ou Peregrinação de Barnabé das Índias, do que fez com Tiago Veiga (que surge em Boa Noite, Senhor Soares, de passagem), ou com António Nobre?
A minha tendência é sempre pensar mais naquilo que une esses vários trabalhos do que naquilo que os distingue. E aquilo que eu acho que os une é o que eu gosto mais de ver reconhecido no meu trabalho, uma coerência. Houve uma vez um crítico, que eu respeito muito, e que disse, a propósito de um romance meu, que não havia grande coerência nas coisas que eu escrevia. Foi a maior afronta que me puderam fazer, porque a coerência é, realmente, o valor por que eu tenho lutado mais ao longo do tempo. E há, de facto, um encadeamento de situações em tudo aquilo que eu faço. Provavelmente, o número três será identificativo desse encadeamento. Se as pessoas pensarem em tríades, provavelmente encontrarão esse encadeamento de uma forma mais visível. Mas eu não posso abandonar a ideia de que tudo aquilo que eu faço tem um passado e, eventualmente, um futuro. Um passado, na medida em que aquilo que eu estou a escrever hoje está contido no que estava lá atrás; e muitas vezes o que eu estou a escrever agora surge-me já como um primeiro degrau de um conjunto, normalmente de três, de outros degraus que me vão surgir no futuro em termos de programa de trabalho.

A propósito, como vê a figura de António Nobre, a nível da edição da obra e da recepção do poeta na actualidade? Acha que se faz e fez tudo o que se poderia fazer pelo poeta do , que Mário Cláudio editou (Alicerces, Correspondência com Cândida Ramos e sobre o qual fez uma Fotobiografia)?
Não, há muita coisa que ainda se pode fazer. Para já, o António Nobre é um autor muito mais lido a Norte do que a Sul. Ao contrário do que acontece com o Cesário Verde. Nós vivemos sempre essa dicotomia: o Nobre a Norte, o Cesário a Sul; o Camilo a Norte, o Eça a Sul. Isso provavelmente terá raízes antigas. São questões que têm mais que ver com a sociologia da literatura e da leitura do que propriamente com a teoria literária. E essas disciplinas, infelizmente, têm sido muito pouco estudadas entre nós. Mas acho que valia a pena. Há autores que têm uma inscrição regional muito grande, embora não sejam regionalistas; e há outros autores que têm uma dimensão nacional, ou que podem ter, e que acabam por ficar circunscritos a uma certa região. É o caso, por exemplo, do Teixeira-Gomes. E, no primeiro caso, poderíamos pensar num homem que está hoje completamente esquecido, mas que continua a ter uma grande bolsa de leitores no Alentejo, que é o Brito Camacho. Ou, aqui a Norte, o Guerra Junqueiro, que tem uma outra bolsa de grandes leitores em Trás-os-Montes, mas que não sai dali. E ainda jovens; tem mesmo leitores jovens. Esses fenómenos deveriam ser estudados com algum cuidado, mas não vejo que se lhes preste muita atenção. Eu acho que se pode ainda fazer muito pelo António Nobre. O que me interessa nele é, para além dessa inscrição a Norte, desse mundo setentrional que ele declinou de uma forma notável, também o carácter extraordinariamente inovador de uma poesia que, na altura, foi considerada absolutamente monstruosa, porque era mais prosa do que poesia, e que antecipou muito do que viria a ser a poesia do futuro. Eu acho que, quanto a isso, não preciso de dizer mais nada, porque o próprio Fernando Pessoa reconheceu quanto a poesia portuguesa devia à lição do António Nobre. Depois, o António Nobre é também um mistério, como acontece, aqui a Norte, com outros da mesma estirpe. Porque se trata de um homem muito pouco aculturado. Leu pouco, não era propriamente um poeta intelectual, como foi, indiscutivelmente, o Pessoa. Mas, apesar de tudo, inovou profundamente a linguagem poética portuguesa, antecipou coisas que apareceriam noutros países. Por exemplo, a introdução da toponímia no discurso poético, como fizeram os americanos da geração do Pound. E de uma forma muito natural, quase infantil. Mas continua a ser desprezado, sobretudo através do descaso a que foi votado o rasto que ele deixou. A casa onde ele morreu… que está a cair de podre, e não tem ninguém que lhe deite a mão. E era preciso que isso acontecesse, e que fosse a Câmara a fazê-lo. Porque, justamente, aqui na Câmara Municipal do Porto, existe todo o espólio, riquíssimo, do António Nobre, que está metido em gavetões e que ninguém vê. E podia ficar ali, criar-se, inclusivamente, um pólo equivalente à Casa Fernando Pessoa, em Lisboa.

Parece-lhe que existe, entre nós, um défice de biografias escritas por ficcionistas?
Eu ainda fui testemunha de uma época em que a biografia não era praticamente praticada em Portugal. Havia umas vagas biografias. De escritores, havia uma colecção chamada A Obra e o Homem, da Arcádia, que tinha biografias de alguns autores. Mas as grandes figuras históricas, ou eram biografadas por académicos, para uso académico, ou não tinham expressão em termos de livraria. A partir de certa altura, começou a haver um interesse pela biografia, que já vinha de longe. O Camilo Castelo Branco manifestou algum interesse, embora tivesse romanceado, em várias biografias, como a do Marquês de Pombal. Ou o Aquilino Ribeiro. E depois, é preciso dizê-lo, muito do labor biográfico feito em Portugal deve-se à Agustina Bessa-Luís. Não só a biografia de figuras, mas a biografia de situações. Situações históricas. Por exemplo, o período do 25 de Abril, com As Pessoas Felizes, ou com Os Meninos de Ouro, são, de alguma forma, biografias, ou até estudos históricos, de uma fase. Como o Sebastião José foi uma biografia do pombalismo, mais até do que uma biografia do próprio Marquês de Pombal. A partir de certa altura começaram, a surgir, e com um grande público, biografias de grandes figuras históricas, sobretudo do século XX: Salazar, Humberto Delgado… Levadas a cabo por historiadores, com critérios de grande escrúpulo, histórico, mas não são propriamente exemplares em termos literários. Como encontramos na tradição britânica, com nomes como Peter Ackroyd, ou [Ricard] Ellman, que são muito importantes no mundo da biografia, mas também são, eles próprios, grandes autores literariamente válidos pelo seu próprio direito. Isso, não temos, de facto. 

Porque será?
Não sei, não faço ideia. Há aqui esta impressão de que a biografia é para os cientistas da História, e o resto é para os outros. Eu devo dizer que acho que dei algum contributo, ao editar uma biografia, a do Tiago Veiga, que pouca gente terá lido, porque é muito grande e as pessoas são muito preguiçosas. Era uma biografia escrita com critérios da biografia como modelo literário.
Parece-lhe que o tema desta novela, O Fotógrafo e a Rapariga – a aproximação do fotógrafo Charles Dodgson/Lewis Carrol a Alice Lidell, “Alice, a do livro”, como ela diz de forma tão pungente –, é particularmente espinhoso?
É um tema muito arriscado. Tão arriscado como isto: levanta uma questão que tem a ver com duas palavras com as quais nós temos grande dificuldade em conviver quando estão ligadas, sexualidade infantil. As crianças têm sexo, e têm uma sexualidade. No entanto, continua a haver um sinal vermelho quando as pessoas falam na sexualidade das crianças. Porque aquilo que aconteceu à Alice, se é que aconteceu alguma coisa, ou pelo menos do ponto de vista mental, ou platónico, por parte do Lewis Carroll, podia ter sido mais bem entendido se, na época, houvesse a ideia de que as crianças não são anjos. Mas ainda hoje dizer isso é problemático. É um risco que se corre. Aquela menina não sabia, de todo, nada sobre a sexualidade humana, sou o primeiro a reconhecê-lo; mas tinha a intuição de que há manobras de sedução de uma criança relativamente a um adulto. Seja qual for o tipo da sedução. Sedução afectiva. Repare nisto: a fotografia que está na capa do meu livro [que reproduz um retrato de Alice Sidell, tirado por Carroll] é a capa de uma miúda que está a seduzir. Já sabemos que não é uma sedução sexual. Mas a pergunta que se faz é sempre essa: onde é que acaba a sexualidade e começa o afecto? E isso é um tema tabu. Não se pode especular muito. 

Mas Mário Cláudio correu esse risco…
Corro o risco de chamar a atenção para um aspecto que faz parte do humano. Nós sabemos, por exemplo, qualquer pessoa pode verificar isso, que os escritos sobre a sexualidade infantil do Kinsey – o grande sexólogo – nunca foram publicados. Continuam secretos. E eu não sei se isso é bom para as crianças. Não sei se isso é capaz de defender as crianças daquilo que é um crime hediondo, que é a pedofilia. Se calhar, o efeito é o contrário. Por isso é que eu convidei o Daniel Sampaio para fazer a apresentação deste livro, e ele aceitou imediatamente. Porque nos pode iluminar relativamente a uma paisagem em que nós andamos completamente às escuras, aos tropeções. E, sobretudo, a lutar com os nossos fantasmas e com os nossos medos. E é isso que me preocupa. Que as questões da pedofilia tenham suscitado o pânico que suscitaram, legitimamente, mas que haja uma vulgata, em termos de comunicação social, daquilo que é a pedofilia. Sobretudo, alertando as pessoas para que a maior parte dos casos ocorrem na família.

O Fotógrafo e a Rapariga encerra uma trilogia, após Boa Noite, Senhor Soares e Retrato de Rapaz. Além da diferença de idade (Bernardo Soares e António; Leonardo e Salai; Lewis Carroll e Alice), que outros pontos de contacto poderíamos detectar? A presença de uma arte: a escrita, a pintura/escultura, a fotografia, desde logo…
Sim, a diferença de idades. E as épocas, que são diferentes. Começou numa época mais próxima de nós, continuou numa época mais recuada e concluiu numa intermédia. Acho que é fundamentalmente isso: a dificuldade de diálogo entre pessoas que pertencem a gerações diferentes. Um sobressalto que paira sobre esse diálogo e que tem várias formas de expressão. E também, em qualquer destes casos, eu suponho que haja vários itinerários de solidão. Tanto a solidão do Sr. Bernardo Soares, que vê aquele rapaz com simpatia, mas que, no fundo, não significa nada para ele. Ele é um homem solitário e continua a ser solitário. O rapaz não consegue erigir naquela figura uma imagem paternal, porque é alguém muito distante. E faz o seu percurso apenas admirando de longe. No caso do Leonardo e do Salai, essa solidão é patente, num caso e noutro. Acaba por ser um diálogo de tontos, de pessoas que não chegam a funcionar. E no caso de Alice é mais do que patente. Desde logo, o itinerário do Lewis Carroll é de profunda solidão. É um homem que tem de viver com as suas pulsões horríveis e que tem de as administrar de uma forma ou de outra. Quanto a mim, ele administrou-as suprimindo-as. Não cedendo a elas, mas deixando sinais, aqui e além, de que o que se tratava era disso. E ela foi uma menina que foi triste no resto da vida. E eu tive o cuidado de dizer isso: por todos os motivos. E sobretudo por este: é que ficou conhecida para todo o sempre como “A Alice do livro”. Nunca teve propriamente uma individualidade. Casou com um tipo endinheirado, que era um desportista, e que não tinha interesses idênticos aos dela. E ela teve de arrastar essa solidão, porque era uma mulher inteligente, capaz, sensível, e que, no fundo, nunca se desprendeu daquela ligação com o Lewis Carroll até ao fim da vida.
A respeito de Lewis Carroll, falou das pulsões dessa conturbada vida interior dele. Isso ainda é um pouco escamoteado, não é?
Não, isso tem sido abordado, e às vezes tem-no sido desastrosamente. Aquilo que é mais desastroso é dizer que a relação do Lewis Carroll com a Alice era uma relação pedófila. Não era. Ele era um pedófilo, mas esta relação não era de pedofilia. Ele era um pedófilo que eu tenho a certeza quase absoluta que nunca praticou um acto de pedofilia. E não o fez porque tinha elevados valores morais, por um lado, mas, sobretudo, porque era um clérigo… Eu acho que as épocas, no fundo, acabam por ser todas iguais. Se ele quisesse prevaricar, tê-lo-ia feito, como fizeram muitos ao longo dos tempos. Era um pedófilo que estava ligado a uma Igreja, a anglicana, mas que se susteve e que viveu esse drama de uma forma pungente. E é preciso também pensar nisso. Esse homem fez um percurso infinito de solidão. Qual é a alternativa a esse percurso de solidão? Só há uma, é a terapia. É fazer uma terapia para que desapareça a solidão, desaparecendo a pulsão. Mas como é que isso se consegue, numa época em que nem sequer havia entendimento desse tipo de problemas?

Provavelmente, ele sublimou através da literatura…
Justamente. Sublimou através da literatura. Da literatura e da fotografia, deixando, de vez em quando, sobretudo nos diários, indicações de qual era o problema. Porque, além das meninas que ele fotografou nuas – fotografou várias meninas nuas, todas pré-púberes –, também fotografou rapazinhos. E há uma entrada no diário que diz assim: “Eu também fotografo rapazinhos, mas gosto muito mais de fotografar meninas, porque os rapazes têm sempre qualquer coisa a mais." Isto é uma confissão. Porque se o ingrediente não fosse erótico, tanto lhe fazia fotografar meninas como meninos. Mas havia ali uma erotização que o fazia sentir-se atraído mais por um sexo do que pelo outro. Portanto, há aí um elemento claramente sexual. Que ele suprimiu, que ele anulou. 

Qual dos livros desta sua trilogia envolveu mais pesquisa? De que tipo de pesquisa estamos a falar?
Acho que foi o Retrato de Rapaz. Aí tive de ler muito mais, porque há muita coisa sobre Leonardo. Há muitas biografias sobre todos eles, sobre a menina, sobre o Lewis Carroll, mas não há nenhuma biografia sobre o Salai. Eu não conhecia. Tive de lá ir. Estive em Vinci, na terra de Leonardo, durante uns tempos. Estive na Biblioteca Ambrosiana, em Milão, por causa dos códices do Leonardo, que estavam disponíveis na altura, e eu pude consultar. Foi uma coisa fabulosa, e aprendi muito, entretanto, sobre o Leonardo. Mais entre páginas do que nas páginas. Foi o que exigiu uma pesquisa mais aturada. Como é uma figura muito tratada, eu tinha de encontrar uma área de inventiva que não tivesse sido tocada. E isso não é muito fácil.

Em O Fotógrafo e a Rapariga, existirá, de parte a parte, de Carroll e de Alice, mais malícia, ou mais inocência? Ou ambas? Ou nenhuma?
Eu acho que mais inocência dos dois lados. Não vejo que haja malícia do lado dele. Acredito que haja na Alice, não aquela malícia ligada à sexualidade, em que estamos habituados a pensar, mas outro tipo de malícia. O que é que ela queria? Ela queria seduzi-lo para que ele lhe contasse histórias. Queria atenção, que ele lhe escrevesse histórias. Que a transformasse em heroína, que lhe comprasse bolos… E há uma malícia das crianças para isso, não vale a pena estarmos a escamotear as coisas… Não são anjos. Há crianças más e boas, como há adultos bons e maus. Só que ninguém o diz. E essa estandardização da criança e do adulto é que é um risco para a criança, e é capaz de ser também um risco para o adulto. É isso que torna determinadas relações entre adultos e crianças algo perigoso.
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Reportagem por 

sexta-feira, 27 de março de 2015

“The Jinx“, Kieslowski e a Ética


“Tenho interesse por histórias sobre monstros”. É como o documentarista americano Andrew Jarecki justificou para a “Folha” seu interesse em realizar a série documental da HBO “The Jinx: A Vida e As Mortes de Robert Durst”, exibido por seis domingos consecutivos até o último dia 16 nos EUA e ainda sem previsão de estreia no Brasil. 

Para começar,  “jinx” significa “mau-agouro”. Não seria necessariamente a primeira caracterização a vir à mente ao falar de Durst, um milionário americano, herdeiro de uma das mais famílias mais ricas de Nova York, suspeito de de três assassinatos –sua primeira mulher, uma amiga e um vizinho, encontrado esquartejado, que o protagonista de Jarecki afirmou ter matado em legítima defesa.

A nova versão de Durst para os três crimes foi reservada para o “grand finale” de “The Jinx”, que o leitor pode assistir no YouTube. “Matei todos eles, claro”, o ouvimos dizer. Detalhe: não o fez durante uma entrevista formal para a câmera de Jarecki. A frase foi captada num desabafo solitário no banheiro, em abril de 2012, quando Durst esquecera estar portando um microfone ainda ligado. Falar alto sozinho era apenas uma das marcas registradas de seu comportamento para lá de idiossincrático.

Momentos antes, pressionado por Jarecki com uma descoberta que o incriminaria, negara mais uma vez todas as acusações. Na véspera da estreia deste episódio final, Durst foi parar atrás das grades.

Deixemos de lado a questão criminal. Parece secundária, por sua vez, a eventual discussão quanto à fronteira entre jornalismo investigativo e entretenimento que levantaria “The Jinx”. A série de Jarecki, do qual assisti apenas trechos disponibilizados na internet, me parece representar sobretudo um prato cheio para um debate ético.

A obsessão do cineasta por Durst é antiga. Em 2010, Jarecki realizara uma versão ficcional de sua história em “Entre Segredos e Mentiras”, estrelado por Ryan Gosling e Kirsten Dunst. Foi após assisti-lo que Durst procurou o diretor para oferecer-lhe sua versão. Quem procura, acha.

Ainda assim, cabe a pergunta: quais os limites na relação entre um documentarista e seu personagem? Não existe um pacto de confiança mútua no respeito a regras mínimas, como por exemplo a utilização na obra tão somente de registros consensual e voluntariamente feitos?

Para Andrew Jarecki, parece que não. Contra os “monstros”, vale tudo. “The Jinx” nisto segue de perto o documentário que o celebrizou, “Na Captura dos Friedmans” (2003, disponível em dvd), premiado no Sundance e indicado ao Oscar.

Os Friedmans são uma família de classe média de Long Island dilacerada, a partir de 1987,  pela acusação de pedofilia contra Arnold, o pai, e Jesse, um dos filhos. Algumas das imagens do confuso e traumático processo originam-se da câmera de outro dos filhos, David. Registros eminentemente privados pois familiares tornam-se assim públicos. Para utilizá-los, certamente pesou o fato de Jarecki ter dito a eles que acreditava na inocência dos dois, segundo uma das repórteres que investigou o caso, Debbie Nathan, entrevistada no filme.

“Na Captura dos Friedmans” não externa igual certeza. A ambiguidade se expressa já no título. Sim, há revelações que colocam em xeque tanto os métodos policiais quanto o depoimento de alguns dentre as possíveis vítimas. 

Mas, como afirmou em resenha da época Kenneth Turan do Los Angeles Times, “em algum ponto do processo, Jarecki decidiu estruturar o projeto a partir de sua recusa como cineasta a dizer se ele acreditava que os Friedmans eram culpados ou não. E é com esta pose de neutralidade que começam os problemas do filme”.

Assim como aconteceu comigo, um amigo que acompanhou nos EUA a celeuma provocada pelos desdobramentos finais de “The Jinx” lembrou do contraste entre os posicionamentos éticos frente a seus protagonistas de Andrew Jarecki e do cineasta polonês Krzysztof Kiewslowski (1941-1996). Antes de sua consagração mundial em 1989 com a telessérie ficcional “Decálogo”, Kieslowski ingressou no cinema realizando belos e originais documentários curtos, aos quais o É Tudo Verdade dedicou uma pioneira retrospectiva no Brasil em 2007.

Após uma década e meia e duas dezenas de obras não-ficcionais, Kieslowski entrou em crise frente ao gênero. Pouco antes de sua morte tão precoce, ele explicou numa entrevista a Stanislaw Zawislinski: “Nós, os documentaristas, acreditávamos que tinhamos o direito de interferir na vida de outras pessoas. Hoje sei que não temos este direito. Há um limite, além do qual pode-se alterar a vida da pessoa filmada, se um nível suficiente de discrição não é mantido. Em algum momento eu tive medo das possíveis consequências de um desimportante –do ponto de vista de alguns- documentário”. Posso imaginar quão estranho este questionamento deve parecer a Andrew Jarecki.
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 * Documentarista.
Fonte: Valor Econômico online, 27/03/2015
Imagem da Internet
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Um falso conflito

Tatiana Salem Levy*

Nas últimas duas colunas, falei de Jerusalém e da Turquia. Agora, estava decidida a mudar o foco, quando deparei com um pequeno livro de Slavoj Zizek recém-publicado em Portugal, "O Islão é Charlie?", e decidi completar a trilogia temática. 
Para um dos mais polêmicos pensadores da atualidade, é preciso ganhar coragem para refletir sobre os acontecimentos no calor da hora. Logo depois do massacre ocorrido nas instalações do jornal "Charlie Hebdo", em Paris, Zizek publicou artigos em diversos jornais convocando todos à reflexão. Esperar as coisas acalmarem não nos leva mais para perto da verdade, dizia ele. Ao contrário, normaliza a situação. E o que ele menos quer, como filósofo, é uma situação normalizada. Zizek, intelectual controverso, crítico ferrenho do neoliberalismo, busca nessas suas "considerações blasfemas sobre o Islã e a modernidade", as perguntas certas para um momento de comoção e solidariedade mundiais. 
É claro que, em primeiro lugar, o ataque deve ser condenado - e sem nenhuma ressalva obscura, do tipo: "A verdade é que Charlie Hebdo provocou e humilhou os muçulmanos". Mas logo em seguida devemos pensar de forma mais ampla, entendê-lo dentro do contexto do mundo de hoje e também, como propõe Zizek, de forma histórica e interpretativa. "Charlie Hebdo" não foi um mero ato de horror passageiro, "seguiu uma agenda religiosa e política bem definida". Não podemos deixar de ser "implacáveis na análise desse padrão", mas tampouco podemos sucumbir à islamofobia cega. Por isso, a reflexão é tão importante, para entender como Ocidente e Oriente estão mergulhados no mesmo contexto moderno. "O conflito entre a permissividade liberal e o fundamentalismo é, em última instância, um falso conflito", afirma. 
Para falar do fundamentalismo religioso de hoje é preciso falar também, de forma crítica, de democracia liberal. Dizer que os jihadistas do Isis são medievais é ignorar o contexto em que surgiram. Se, por um lado, os fundamentalistas muçulmanos costumam considerar que o Ocidente começou a ir para o mau caminho com a secularização da sociedade, representada pela Revolução Francesa, por outro lado, a ironia disso tudo é que "devemos olhar para a França revolucionária se quisermos compreender a origem da ideologia e da violência do Estado Islâmico". 
Segundo o pensador Abul Ala Maududi, criador da expressão Estado Islâmico, a Revolução Francesa ofereceu a promessa de um Estado fundado num conjunto de princípios, por oposição a um Estado assente numa nação ou num povo. No entanto, esse potencial não vingou na França e teve que esperar pelo surgimento de um Estado Islâmico para se concretizar. O cidadão universal, separado da comunidade, da nação ou da história, seria, segundo Maududi, o eixo da cidadania do Islã. 
Trata-se, portanto, de um fenômeno moderno na sua concepção e contemporâneo na sua forma. A globalização está por toda parte, e é por isso que, em vez de pensar o Isis como um caso de resistência extrema à modernização, "devemos antes considerá-lo um caso de modernização pervertida". O Isis possui uma propaganda muito bem organizada em termos de internet, embora suas práticas contemporâneas sejam utilizadas em prol de uma ideologia ultraconservadora no que diz respeito a educação, sexualidade, gênero. Por um lado, o Isis condena a permissividade do Ocidente, por outro, transmite decapitações, atos de escravatura sexual, violações em grupo, tortura, tudo admitido e justificado segundo seus princípios. 
Transita por vários tempos, portanto. É ultraconservador na moral, moderno na concepção e contemporâneo na forma. Por isso, depois de analisar sua atualidade, Zizek se propõe a um breve mergulho nos arquivos do Islã, tentando entender de uma perspectiva interpretativa, com seu olhar de psicanalista lacaniano, as origens da terceira religião do Livro. 
O judaísmo, a primeira delas, é a religião da genealogia, da sucessão de gerações. O cristianismo também segue uma genealogia paterna (quando o filho morre na cruz, isso significa que o pai também morre). Em contraste com essas duas, o Islã exclui Deus do domínio da lógica paterna: Alá não é um pai, nem sequer simbólico. Deus é único, não nasceu nem gera criaturas. É por isso que o fato de Maomé ser órfão ganha tanta importância. Para o Islã, Deus atua nos momentos de suspensão, de falha da função paterna, confirmando o "deserto genealógico entre o Homem e Deus". Isso se explica pela sua escolha, a da linhagem da escrava Agar, abandonada por Abraão, pai biológico de Ismael, mantendo a distância entre pai e Deus, "mantendo Deus no domínio do Impossível". 
Voltemos, então, ao Gênesis. Sara, mulher de Abraão, não conseguia lhe dar filhos. Por isso, entrega sua escrava Agar ao marido, para que ele lhe faça um filho que será criado por ela. Quando soube que estava grávida, Agar desprezou Sara, que, por sua vez, a humilhou. Agar fugiu para o deserto, mas acabou seguindo a voz do anjo do Senhor e voltou para Sara. Deu à luz o filho que Abraão chamou de Ismael. No entanto, por milagre, depois de uma visita de Deus, Sara acabou engravidando de Abraão. Seu filho ganhou o nome de Isaac. Ciumenta, exigiu que Abraão expulsasse Agar e seu filho, que, segundo ela, nunca seria herdeiro ao lado de Isaac. 
Embora contrariado, Abraão os expulsou, depois de ouvir de Deus que não se preocupasse: de Isaac sairia a estirpe que teria seu nome, mas o filho da escrava também seria pai de um grande povo. Daí a origem dos hebreus e dos árabes, irmãos no início, primos até hoje. 
Segundo Zizek, "Isaac versus Ismael equivale ao pai simbólico (Em Nome do Pai) versus o pai biológico (racial), a origem através do nome e do espírito versus a origem através da transmissão substancial da vida, filho da mulher livre versus filho da escrava". Talvez seja a orfandade que explique a falta de institucionalização inerente do Islã. Trata-se de uma religião que não se institucionaliza, como o cristianismo e sua igreja. Em realidade, a Igreja Islâmica é o próprio Estado Islâmico. É o chefe de Estado quem nomeia e mais alta autoridade religiosa, que manda construir as grandes mesquitas, que supervisiona a educação religiosa, que exerce a censura e controla a moralidade da cultura. 
É interessante observar que a pré-história do Islã, com Agar, a mãe de todos os árabes, não é mencionada no "Alcorão". Mas é a escolha da vidente independente de Deus, no lugar da dona de casa Sara, que nos dá a pista da insuficiência de um monoteísmo extremamente masculino, "a irmandade da qual as mulheres são excluídas e segundo a qual têm de ficar tapadas". 
No "Alcorão", temos a justificativa do corpo tapado da mulher. O próprio Maomé duvidava da natureza divina de suas visões e, porque não queria passar a vida como o louco de Meca, decidiu se atirar de um penhasco. Foi nesse momento que a voz do anjo Gabriel ressurgiu. Em desespero, Maomé voltou para casa e pediu ajuda para Kadidja, a sua primeira mulher, que teve uma ideia para confirmar se a voz era mesmo do anjo. Quando Maomé voltou a vê-lo, Kadidja lhe disse para se sentar na sua coxa esquerda e lhe perguntou: "Consegues vê-lo?" "Sim." "Então vira-te e senta-te na minha coxa direita". Maomé continua a ver Gabriel. Então Kadidja ordenou que ele se sentasse ao seu colo, depois revelou seu corpo e tirou o véu. Então, Maomé deixou de ter a visão, e Kadidja atestou: "Alegra-te e abre o teu coração, é um anjo e não um Satanás". 
 Por meio da sua exibição provocadora, Kadidja demonstra a verdade. Então, questiona Zizek, por que "a presença da mulher no Islã é tão traumática, um escândalo ontológico de tal ordem que ela tem que estar coberta?" A mulher é uma ameaça por representar a indecidibilidade da verdade. Ao cobri-la com véu, cria-se a ilusão de que a verdade feminina está por baixo dele. Nisso residiria o escândalo oculto do Islã, o fato de que só a mulher pode garantir a verdade e, por esse motivo, tem que usar o véu. 
Quando a mulher não corresponde ao comportamento exigido, seu ato pode ser condenado com a morte. Portanto, uma escolha é sempre, como afirma Zizek, uma metaescolha. A atitude liberal diz que as mulheres podem usar o véu se for por livre e espontânea vontade e não como imposição dos maridos. Mas se elas o usam por escolha pessoal o significado do uso do véu muda por completo: "deixa de ser um sinal da sua pertença à comunidade muçulmana e passa a ser uma expressão da sua individualidade idiossincrática". 
Isso significa que a liberdade de escolha, no sentido ocidental de tolerância multicultural, só pode advir "como resultado do processo extremamente violento de arrancar alguém do seu mundo/vida particular, de cortar as raízes a alguém".
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* Tatiana Salem Levy, doutora em letras e escritora,. E-mail: tatianalevy@gmail.com 
Fonte: Valor Econômico online, 27/03/2015
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