sexta-feira, 6 de março de 2015

UM MUNDO COM SEDE DE SOLUÇÕES

'O acesso à água e ao saneamento não pode ser deixado a cargo do mercado para evitar crises', diz Michel Camdessus 
(Foto: Bloomberg)

Em um encontro recente realizado na Itália para discutir o crescente problema hídrico no planeta, Michel Camdessus, presidente de honra do Banco da França, iniciou sua apresentação com uma advertência. 'Vocês podem estar um pouco surpresos com uma pessoa que vem do banco central falar sobre água, mas não cometam o erro de achar que é por causa de sua liquidez', disse, rindo. Seu mergulho nos profundos dilemas da água, contou, começou em 2000, logo depois de se aposentar do posto de diretor-gerente do Fundo Monetário Internacional (FMI), que ocupou por 13 anos.

Quando se tornou um 'homem livre', o economista francês identificou que a água era o que mais o interessava no conjunto de Objetivos de Desenvolvimento do Milênio 2015 e começou a estudar o assunto. 'Água é vida', justifica Camdessus, que completa 82 anos em maio. Desde então publicou um dos mais alentados documentos sobre o financiamento de infraestrutura hídrica ('Financiar Água para Todos'), escreveu um livro ('Água') e se tornou integrante do conselho consultivo para a água e o saneamento da ONU.

Ao falar sobre a reta final dos Objetivos do Milênio 2015, no entanto, Camdessus não vê espaço para o mesmo bom humor. Não só não foram atingidas as metas para a questão hídrica - diminuir pela metade a proporção da população sem acesso à água potável e ao saneamento básico - como ainda vivemos uma cruel realidade: uma em cada três pessoas no mundo passa por dificuldades e situações indignas em razão do problema da água. Hoje, a água impotável mata 2,2 milhões de crianças por ano. Além disso, metade dos leitos hospitalares africanos é ocupada por pessoas com doenças relacionadas à água, e os habitantes de favelas pagam de 10 a 20 vezes mais pela água que seus vizinhos com acesso a redes de fornecimento de água potável.

Há duas semanas, foi divulgado um relatório do Instituto de Água, Meio Ambiente e Saúde (Inweh), que também projeta um futuro desanimador. Em 15 anos a demanda mundial por água doce será 40% superior à oferta. Os países mais deficitários serão os com menos recursos e populações jovens e em crescimento. O baixo desempenho no cumprimento dos Objetivos do Milênio e o cenário dramático desenhado por diversas pesquisas estariam ligados, em parte, ao financiamento insuficiente, diz Camdessus.

Para mitigar o problema, sua proposta é que os governos assumam uma responsabilidade essencial, mas em cooperação com o setor privado. 'É um domínio no qual parcerias público-privadas, devidamente regulamentadas e monitoradas, são a receita para o sucesso', diz Camdessus ao Valor. Para ele, a cooperação entre as principais partes envolvidas será também a solução para a escassez de água crônica que o Brasil e países desenvolvidos como Estados Unidos e Reino Unido enfrentam hoje.

A controvérsia que acompanhou Camdessus em sua gestão no FMI o seguiu no lançamento de seu relatório, em 2003, quando foi duramente criticado por movimentos sociais, que viram em suas propostas uma forma de privatizar a água, um direito e não um bem. 'O acesso à água e aosaneamento não pode ser deixado a cargo do mercado', afirma Camdessus. 'Sendo a água indispensável à vida, é um direito da humanidade.'

Chamado de 'demônio neoliberal' pelos que criticaram o 'arrocho fiscal e monetário' que o FMI, sob sua gestão, recomendou a países emergentes como o Brasil, Camdessus diz que confia em Joaquim Levy, 'um economista muito competente', para conduzir a economia brasileira. '[Ele] será capaz de definir um mix adequado de medidas para esse fim [ajuste fiscal], enquanto preserva as formidáveis conquistas que o seu país fez para reduzir a desigualdade, o maior obstáculo para o crescimento.'

Países emergentes e em desenvolvimento podem 
crescer acima de 4,5%, taxa aquém do 
potencial de muitas de suas economias, 
afirma Camdessus

Leia trechos de entrevista a seguir:

Valor: Os Objetivos do Milênio referentes à água não foram atingidos. O que deu errado?

Michel Camdessus: Comparado ao período anterior, quando a água foi a Cinderela entre as prioridades das Nações Unidas, houve progresso significativo no setor hídrico mundial. Entretanto, esse progresso foi insuficiente e, como você disse, os Objetivos do Milênio referentes à água não chegaram nem perto de ser atingidos. Muita coisa deu errado, a começar pela definição muito estreita dos Objetivos do Milênio em si e o pouquíssimo preparo dos órgãos da ONU e das instituições nacionais dos países em desenvolvimento e emergentes para empreender o esforço que teria sido necessário. Os dois objetivos eram reduzir pela metade a proporção de pessoas sem acesso sustentável a água potável e segura até 2015 e reduzir pela metade a proporção de pessoas sem acesso a saneamento básico. No fim de 2010, 1 bilhão de pessoas passaram a ter acesso a melhores fontes de água do que na década anterior. Osaneamento também melhorou. A proporção de pessoas sem saneamento básico, com vaso sanitário em casa, caiu de 51% em 1990 para 37% em 2012. Infelizmente, não só os Objetivos do Milênio não foram atingidos, mas também precisamos ter em mente uma realidade cruel: mais de uma em cada três pessoas no mundo está passando por dificuldades e situações indignas em virtude do problema da água.

Valor: E essas pessoas são, em sua maioria, mulheres, não?

Camdessus: Sim, as mulheres. Elas ficam exaustas porque têm que buscar água todas as manhãs. Muitas meninas não podem ir à escola porque querem ajudar as mães em tarefas do lar como buscar água ou porque não têm privacidade no toalete da escola. As consequências são graves, porque nada é mais prejudicial ao progresso humano na África do que uma menina que não frequenta a escola. Essa injustiça é, em grande medida, ignorada, e uma das mais difíceis de corrigir, porque se trata acima de tudo de uma injustiça com as mulheres. Some-se a isso o fato de que a água impotável mata 2,2 milhões de crianças por ano, metade dos leitos hospitalares africanos é ocupada por pessoas comdoenças relacionadas à água, e os habitantes de favelas pagam de 10 a 20 vezes mais pela água que seus vizinhos com acesso a redes de fornecimento de água potável, ou seja, os habitantes de áreas privilegiadas das cidades. Na verdade, ainda assistimos ao mesmo paradoxo dramático: embora sejam essenciais para que a humanidade atinja todos os seus outros objetivos, como saúde, educação primária universal e erradicação da pobreza absoluta, os investimentos em infraestrutura hídrica continuam sendo insuficientes.

Valor: O mundo passa por uma crise hídrica e especialistas já preveem que até o fim desta década, a H2 O pode ser negociada nas bolsas de valores como outras commodities finitas, entre elas o petróleo bruto e o minério de ferro. ONGs e grupos da sociedade civil rejeitam essa abordagem, pois afirmam que a água não é uma commodity comum. Na sua opinião, a água deve ser negociada em bolsa para evitar uma crise mundial?

Camdessus: O acesso à água e ao saneamento não pode ser deixado a cargo do mercado para que se evitem crises regionais ou globais. Sendo a água indispensável à vida, é um direito da humanidade. Trata-se de um domínio em que tipicamente os governos têm uma responsabilidade essencial, mas também em que o sucesso em última instância dependerá da qualidade de sua cooperação com o setor privado, principalmente as empresas. É um domínio no qual parcerias público-privadas, devidamente regulamentadas e monitoradas, são a receita para o sucesso. Será particularmente indispensável que os governos prestem muita atenção às políticas tarifárias negociadas nos níveis regional e central, para garantir que o princípio da recuperação sustentável de custos recomendado em nosso relatório [do Painel Camdessus, Financiar a água para todos] seja adequadamente adotado, garantindo o necessário fornecimento de água a um custo acessível para as camadas mais pobres das populações.

Valor: O senhor defende que o setor privado deve ser um dos principais fornecedores de recursos financeiros ao setor hídrico. Em seu livro 'Água', o senhor afirma que os riscos associados ao investimento no setor hídrico são altos, o que pode tornar este investimento pouco atraente. De que modo a água pode tornar-se um investimento melhor para a iniciativa privada?

Camdessus: Dada sua natureza específica, a água é um investimento de longuíssimo prazo. Requer financiamento de longo prazo apropriado. Esse tipo de instrumento solucionou com sucesso o problema do investimento no setor hídrico nas maiores cidades da Europa nos últimos séculos. Para tanto, não são necessários instrumentos financeiros sofisticados. Um esforço de importância decisiva também deve ser empreendido para facilitar o investimento de poupanças regionais no setor hídrico. Não há obstáculos a uma maior implementação de políticas de emissão de títulos de dívida municipais para financiar a infraestrutura hídrica urbana em países emergentes e em desenvolvimento. No entanto, isso exigiria uma política governamental ativa capaz de resolver problemas causados pela ação dos próprios governos, que acabam por expulsar outros credores de seus mercados financeiros. Esses governos teriam de adotar medidas que permitissem o desenvolvimento de mercados de crédito internos para entidades subsoberanas.

Valor: Como isso pode ser feito?

Camdessus: Pode-se incentivar essas entidades a criar pools de crédito, com opções de parceria e passivos variados. Isso poderia conferir maior ímpeto ao desenvolvimento de mercados financeiros regionais, com o apoio ativo das instituições de microfinanças. É frustrante ver que, na prática, o desenvolvimento dos mercados domésticos ainda é lento se comparado ao grau de dinamismo de muitas dessas economias. A enormidade do déficit de infraestrutura justificaria esforço particular das instituições financeiras multilaterais [como Banco Mundial, Banco Interamericano de Desenvolvimento] nesse setor. Será indispensável que essas instituições redobrem sua assistência técnica, se esforcem para corrigir percepções exageradas de risco e fortaleçam a integração dos mercados regionais. Ainda assim, devo dizer que, recentemente, muitos países emitiram eurobonds com sucesso, de certa forma atuando como pioneiros. Comparativamente, a quantia que esses países obtiveram por meio da Assistência Oficial ao Desenvolvimento [AOD] ilustra a escala dessas operações. Podemos observar que, embora as emissões de títulos de dívidas municipais sejam uma raridade, os municípios de Lagos, na Nigéria, e Lusaka, na Zâmbia, passaram a integrar mercados de dívidas soberanas.

Valor: As maiores preocupações com relação aos recursos hídricos têm se voltado a regiões de rápido crescimento na África, Ásia e no Oriente Médio, mas o fornecimento em países desenvolvidos como EUA apresentam problemas semelhantes. Até o Brasil, um país tropical que segundo estimativas produz 12% da água potável do mundo, sofre com a falta de água crônica, e em sua maior e economicamente mais importante cidade. Por que chegamos a esse ponto?

Camdessus: É verdade. A perspectiva para a próxima década é de maior escassez hídrica decorrente da demanda agrícola crescente e do crescimento populacional num contexto de aquecimento global. Ainda assim, acredito que no Brasil e no mundo as soluções estão na cooperação entre as principais partes envolvidas.

Valor: Alguns especialistas afirmam que, embora o petróleo tenha desempenhado papel importante no século XX, a água é o recurso natural mais precioso do século XXI. Qual é a chance de a questão hídrica ampliar as tensões regionais?

Camdessus: A água é e continuará sendo o recurso natural mais precioso, porque água é vida. Sendo assim, tem o potencial de causar tensões regionais. Essas tensões existem no mundo todo, seja no Oriente Médio, onde a Jordânia e a distribuição de sua água são uma questão importante para Israel e Palestina; na Turquia e nos países vizinhos, com as represas que foram construídas nos rios Tigre e Eufrates; na África, com os problemas envolvendo o rio Nilo; na China e nos países vizinhos, com os problemas envolvendo o Mekong; na Índia e em Bangladesh com o Brahmaputra. Também podemos citar, nos Estados Unidos, os problemas do Colorado e do Rio Grande, para não falar das questões envolvendo as águas subterrâneas do Aquífero Guarani [que abrange os territórios do Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai]. Esse problema não é recente, já que os rios frequentemente são usados como fronteiras entre países. O interessante é que guerras por água entre países são muito raras, como se os seres humanos tivessem tamanha consciência da importância vital da água que fizessem todos os esforços possíveis para encontrar soluções pacíficas para conflitos em potencial. Esperemos que nos próximos anos os líderes das nações continuem se comportando de forma tão razoável como seus ancestrais e, mais que isso, se esforcem para criar organizações transnacionais de cooperação para otimizar a gestão dos recursos hídricos de rios que banham países ribeirinhos.

Valor: As atenções do mundo se voltam aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), que devem substituir os Objetivos do Milênio. Quais devem ser as prioridades da comunidade mundial com relação à questão hídrica?

Camdessus: O Conselho Consultivo para Água e Saneamento do Secretário-Geral da ONU, órgão criado para monitorar o progresso em relação a essas questões, produziu relatório alarmante sobre a situação e conclamou os países membros a adotar três objetivos: promover acesso universal ao saneamentosustentável e à água potável e segura de fato; expandir o tratamento de esgoto e a prevenção da poluição; e aprimorar a gestão e a utilização eficaz dos recursos hídricos. Os três objetivos dependem da eficácia das iniciativas adotadas para solucionar o problema do financiamento à infraestrutura hídrica, que é claramente insuficiente.

Valor: Alguns economistas dizem que o governo brasileiro precisa fazer um ajuste fiscal para crescer e trazer o investimento de volta. É o que o ministro da Fazenda, Joaquim Levy, tem proposto. Como o senhor vê a atual situação do país?

Camdessus: Não tenho mais informação de primeira mão sobre o Brasil. Parece claro para mim, no entanto, que é uma situação que exige um ajuste fiscal estável e medidas estruturais vigorosas para retomar o crescimento e reconstruir a confiança. Acredito que Joaquim Levy, um economista muito competente, será capaz de definir um mix adequado de medidas para esse fim, enquanto preserva as formidáveis conquistas que o seu país fez para reduzir a desigualdade, o maior obstáculo para o crescimento.

Valor: Os impactos da crise ainda são evidentes. Qual é sua visão da economia mundial?

Camdessus: O mundo está saindo da crise, mas suas sequelas ainda são visíveis. Uma das consequências mais óbvias é a taxa de crescimento mundial relativamente baixa. Essa taxa provavelmente não será superior a 3,5%, apesar do estímulo gerado por uma inesperada e importante queda no preço do petróleo. O baixo crescimento global está relacionado ao desempenho insatisfatório de grandes economias, principalmente o Japão e os países europeus, à exceção dos EUA, que continua com uma política monetária adequada e com seu dólar ganhando força. Países emergentes e em desenvolvimento terão taxa de crescimento mais alta, provavelmente superior a 4,5%, mas aquém do potencial de muitas de suas economias. A desaceleração da economia e do investimento chineses é uma das principais causas desse desempenho insatisfatório, principalmente na Ásia. A queda dos preços do petróleo e de várias commodities primárias também contribui para essa situação. Nos próximos meses, a sustentabilidade da recuperação necessária para a economia global vai depender, em grande escala, da qualidade das políticas estruturais de diversos países e das consequências, no campo monetário, das estratégias claramente divergentes da Europa e dos Estados Unidos. Neste momento, é muito difícil prever como os mercados de capital vão reagir a essa situação.
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REPORTAGEM por Robinson Borges
Fonte: Valor Econômico online, 06/03/2015
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