terça-feira, 26 de maio de 2015

«Eis-me aqui, envia-me a mim»

Américo Pereira* 

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Vivemos num mundo em que o sentido da mediação como absoluta necessidade para que possa haver movimento, diferenciação, está em risco de desaparecer.

Nas pessoas com maior poder económico, as várias engenhocas disponíveis para facilitar a realização de tarefas, associadas ao facto de poderem contar com o esforço alheio – devidamente recompensado ou não – para o mesmo fim, leva-as a pensar que os atos necessários para a vida e os demais ocorrem como que por magia, isto é, como eles próprios não são parte da mediação que realiza o que lhes surge como pronto, vivem como se a vida não implicasse uma necessária presença em ato, ato próprio de cada pessoa, em que esta é meio do movimento que produz a diferença necessária para que possa haver precisamente vida e vida humana.

Para viver de acordo com o que se considera ser o ótimo próprio, basta acenar com a cabeça ou estalar os dedos, ou, ainda melhor, apenas desejar: outros se esforçarão para que quem assim deseja tenha o que anula tal desejo, preenchendo-o, realizando o seu objeto.

Sem o devido esforço mediacional próprio, isto é, exercido pelo próprio, a realidade desmaterializa-se: tudo é fácil como se o sujeito de tal pensar, de tal desejar, fosse uma entidade puramente espiritual que habitasse um mundo de semelhante estofo ontológico.

O mundo em que tais pessoas vivem – e que para elas é real enquanto dura neste modo – depende das mediações de terceiros. Aparentemente mágico, não o é. De facto, o que parece ser alcançável simplesmente através de um desejo implica, para que possa surgir e para que surja, que uma qualquer mediação atue. Estas mediações são de dois tipos, fundamentalmente, em termos da real realidade mundana: seres humanos ou substitutos biológicos ou sintéticos destes, como as máquinas. Mas, ainda estes últimos dependem da ação humana, pois quer os elementos biológicos quer as máquinas têm de ser produto da ação humana a nível da sua criação ou treino e condução.

Quer isto dizer que, não havendo magia, isto é, não havendo realização de coisa alguma sem uma qualquer mediação que a opere, o que para uns é produto vivido como mágico, é, para outros, os que, através do seu trabalho substituem a inexistente magia, fruto de seu esforço.

Mesmo as relações com o divino, quando conscientemente as há, sofrem desta perversão, pois, toma-se Deus por um fazedor de magia, que tem a obrigação de usar os seus poderes de absoluta prestidigitação para resolver todos os problemas que quer os seres humanos quer os seus auxiliares biológicos ou mecânicos não conseguem. Deus, para tais pessoas, é o servo mais precioso, pois é aquele a que se recorre quando todos os outros meios que magicamente nos servem falham.

Se acontece, por coincidência, ao movimento mediacional dos atos que constituem o mundo servir os intentos de tais pessoas, Deus é apreciado positivamente, como se valoriza o fantástico faz-tudo que repara as avarias ou o fornecedor que aporta os bens de que se carece, de que cada vez mais se carece, porque a vida vivida de modo mágico, sem esforço próprio, esgota-se na evanescência da imponderabilidade do que nos acontece sem que sejamos nós a razão real por que tal acontece.

A vida vivida segundo um modo mágico reduz-se a uma contínua paixão, sucessivamente atualizada por isso que nos afeta a partir de uma necessária exterioridade, porque, depois de tanto tempo sem servir de mediação a meu próprio ato, desapareço como tal, como ato, para ser apenas uma consequência das mediações exteriores que me vão mantendo passionalmente como algo que ainda é, mas que já não é algo irredutivelmente próprio, antes uma mera função passiva e passional de atos terceiros.

Findos estes, acabadas todas as paixões, cesso de existir verdadeiramente, sou indistinguível de um cadáver, no que ao sentido diz respeito. Tanto dependi magicamente das mediações de terceiros que a elas me alienei, me reduzi e, quando fico só, porque deixei de ter como poder de algum modo pagar tais mediações, encontro-me reduzido a um nada semântico.

Tais mediações mágicas, compradas e pagas de modos vários – com dinheiro, com o corpo, com a honra, etc. – são sempre formas de alienação da minha substância e da minha essência próprias. Podem ser constituídas por drogas várias, pelo poder político, qualquer, por formas mágicas de relação religiosa. Mas, sendo formas de alienação do fundamental que há em mim e que me constitui propriamente como pessoa, quando cessam, eu, no que de fundamental tenho – e que era falso – cesso também, passando de uma sobrevivente falsidade a uma sobrevivente nulidade. É o preço necessário a pagar pela escolha do fácil caminho da magia, da fuga ao necessário esforço do ato de meu ser, único que pode criar a minha entidade própria, pois, salvo tal esforço, eu não existo e não posso existir. Se o inferno é a medida do afastamento relativamente a Deus, analogamente, esta é a realidade do inferno como afastamento do ser humano relativamente a si próprio. Inferno este que, ao invés do outro, não conta com a infinita misericórdia do objeto de que se está afastado, simplesmente porque o ser humano afastado de si próprio não é capaz de tal infinita misericórdia.

Mas há uma outra forma de magia, esta já não a dos possidentes, mas a dos destituídos: a magia não como forma de parasitismo das mediações de terceiros, mas como forma de substituição de uma realidade que se reduz a servir de mediação para o bem dos outros. A magia assume a forma de instrumentos de alienação, que permitem escapar psicossemanticamente à condição de mera mediação de bens alheios. O mundo enche-se de aparelhómetros, pois os outros seres humanos como mediação mágica são demasiado dispendiosos, que permitem transpor sem outras mediações os escravos para pseudo-mundos, em que já não são meros escravos e instrumentos de bem alheio, mas outros senhores.

Vive-se na alienação do mundo dos jogos, das novelas, da pornografia variada e facilmente acessível, em que a escrava pode ser princesa, o cobarde conquistar mundos sucessivos, o impotente possuir a imagem de fêmeas cuja beleza fabricada nunca encontrará disponível no mundo da carne em que, como escravo, habita.

E a carne sofre a verdadeira trans-substanciação moderna: não a passagem de uma densidade opaca a uma subtil formalização espiritual, mas a passagem, segundo a magia que anula a dimensão material do corpo como necessária mediação para a possibilidade da autonomia, isto é, para a libertação da escravatura, de ser historicamente denso a coisa duplamente des-substantivada – mera função do bem alheio e sobrevivente alienado num nundo anistórico.

No paroxismo desta forma mágica de viver, a humanidade desaparece.

O mundo é o lugar das mediações e não há mundo sem mediações. Quer na versão religiosa do mito da criação genesíaco quer na versão laica científica, não há mundo sem mediações. O mundo é mediação, relação efetiva e atual entre tudo o que o constitui, em permanente movimento e evolução. Mas também, em ambas as narrativas, como o princípio primeiro de que depende, extra ou intramundano.

Deixamos de parte a versão necessariamente intramundana da ciência (que, se não fosse assim, passaria imediatamente a ser uma qualquer forma de religião) e atentamos na versão genesíaca: o ato lógico de Deus, a sua palavra criadora, é a primeira e a grande, absoluta mediação. Esta mediação, que é um ato não-mágico – aliás, o autor sagrado saboreia lentamente os seis longos dias de labor mediacional – instaura, não uma coisa inerte e dada como pronta, mas uma atualmente virtual infinitude de mediações possíveis e atuais, quer dizer, o próprio mundo como conjunto imenso de relações possíveis e atuais, que são o estofo próprio de sua possibilidade.

Dada esta mediação de mediações, Deus, significativamente, descansa. Compete, agora, ao mundo, como mediação de si próprio, ser, em absoluto. O ser do mundo é a sua atualidade mediacional agente. Deus só atua rarissimamente e não o faz por magia, mas através da utilização dos próprios meios com que dotou o mundo.

A grande exceção é mesmo a incarnação do Filho, que não é um ato mágico, mas necessita da mediação do ventre de uma Mulher, sem o que não haveria incarnação alguma. Assim também para tudo o que é considerado milagroso, que não é mágico, mas implica apenas a utilização inusual de meios já existentes. Lembre-se que a inflexão de algo necessita de algo que se possa infletir. A não necessidade de algo com que operar intramundanamente, isso, sim, seria magia. Mas tal nunca acontece.

Ora, a figura do Incarnado é também a figura daquele que se cumpre como ser humano porque não vive de modo mágico, porque não substitui o ato próprio por qualquer forma de alienação: é o seu ato que cumpre a sua máxima possibilidade. Cristo não manda a Mãe ou Pedro morrer por ele na cruz; também não deixa de beber o cálice, isto é, não substitui a realidade da cruz por uma farsa qualquer. É pregado e morto e nem sequer aceita ser drogado para que lhe doa menos.

Este é o senhor que não tem escravos e que não é escravo, nem sequer de seu escravo, porque o não tem. Cristo é a mediação paradigmática. Cristo é a anulação da vida como magia parasitária ou alienante.

Ora, já em Isaías, 6,8 se encontra o paradigma do que é quer a ação modelar de Cristo quer o modo único de o ser humano comum poder ser livre e autónomo. Diz assim o texto, sendo a interrogação pertencente a Deus: «A quem enviarei, e quem há de ir por nós? Disse eu: eis-me aqui, envia-me a mim.» (1)

Deus criou os meios. Todos. Imediatamente, no ato primeiro da criação. Mediatamente, por ação dos primeiros em relação e movimento evolutivo. Quando é necessário fazer, ir ou enviar, compete ao meio fazer, ir, ser enviado.

Eu sou o meio, eu o enviado, eu o que vai, eu o que faz. Se não for, porque o meio adequado sou eu, mais nada irá, não de forma adequada. Nada substitui a mediação exata, precisa que é aquele que depende de mim. Se a não operar, é um bem possível que se perde para sempre. É isto é o princípio do mal e a sua realização. O mal sou eu quando deixo de ser o meio, único, necessário para realizar o bem que mais pessoa nenhuma pode realizar por mim. Afastando o bem do mundo do melhor bem possível do mundo, que, no limite, é o próprio Deus, opero, por definição, um ato infernal.

Afinal, deste ponto de vista, Sartre enganou-se: o inferno não são os outros, sou eu, quando os traio e me traio como mediação necessária. São os outros, sim, quando fazem precisamente isto mesmo relativamente a mim.

Que inferno bem terreno foi esse proporcionado por aqueles que, contemporâneos de Sartre, poderiam ter esmagado o nazismo no seu berço e não o fizeram. Como exemplo, basta.

A versão dos Setenta do texto citado usa como forma verbal para o «envio» «aposteilon me». Faz de mim apóstolo. Reside aqui a forma da possibilidade da liberdade autónoma do ser humano: ser apóstolo do bem, ser sempre e indefetivelmente mediação do bem. Ou ser apenas vão metal que empurra moléculas de ar.

(1) Antigo Testamento Poliglota. Hebraico, grego, português inglês, São Paulo, Sociedade Bíblica do Brasil, p. 1427; p. 1426 para a versão grega. Neste sentido, a vida humana é um apostolado mediacional, cumprimento da própria criação como possibilidade máxima de bem. O mal é toda a falha neste apostolado.
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* Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Ciências Humanas
Publicado em 25.05.2015
Fonte:  http://www.snpcultura.org/eis_me_aqui_envia_me_a_mim.html

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