sexta-feira, 29 de maio de 2015

O espírito do mundo

 Vito Mancuso*
 
"Há uma diferença, contudo, em relação ao filósofo alemão, ou seja, não é mais o 'espírito objetivo' que mantém o primado sobre o 'espirito subjetivo', mas o contrário. Está ocorrendo hoje uma reescritura radical da relação indivíduo e sociedade",

O resultado do referendo irlandês vem de longe. Mais de 62 por cento dos eleitores disseram sim ao casamento gay. É a luta pelos direitos humanos.

A luta iniciada há mais de dois séculos, em nome da igualdade, produziu uma série de conquistas sociais tais como sufrágio universal, liberdade de imprensa, liberdade religiosa, educação para todos, igualdade de gênero no direito da família, superação legal da discriminação racial e outros objetivos deste tipo, todos ligados ao valor da igualdade dos seres humanos. Sábado, a maioria dos irlandeses confirmaram: "Yes, equality ".

Nestas transformações dos costumes e do direito manifesta-se a evolução da cultura e do pensamento, fruto do que Hegel chamou "Espírito do Mundo", no sentido de não sermos nós os donos das nossas ideias, mas são as ideias que tomam conta de nós. Há uma diferença, contudo, em relação ao filósofo alemão, ou seja, não é mais o "espírito objetivo" que mantém o primado sobre o "espirito subjetivo", mas o contrário.

Está ocorrendo hoje uma reescritura radical da relação indivíduo e sociedade: o primado não é mais da sociedade e suas instituições às quais o indivíduo deve se submeter, como nos séculos passados, mas é do indivíduo, a quem a sociedade precisa se adaptar, em vista da felicidade e realização do mesmo. Antes os indivíduos se curvavam às instituições, agora são as instituições que se curvam aos indivíduos, até mesmo mudando a Constituição, como ocorreu Irlanda.

O valor em jogo aqui é o direito de cada ser humano ter um amor integral. Até recentemente, nos países mais avançados do mundo (embora na Itália até hoje), se uma pessoa nascesse com uma orientação de tipo homossexual, era-lhe negado o direito ao amor integral, que não se limita ao espaço de uma paixão privada, mas que deseja um estatuto público, no sentido de definir a identidade social da pessoa, não mais solteiro, mas ligado a outra pessoa, em permanente comunidade de vida. E o desejo do amor de adquirir uma dimensão pública, leva as pessoas ao casamento, e não simplesmente à coabitar. Quem deseja casar não consegue mais pensar em si mesmo prescindindo do outro, e pede à sociedade o reconhecimento público do seu novo estado, mudando, por assim dizer, sua carteira de identidade social, dizendo ao mundo: "Não sou mais somente eu, estou unido outro". Isto é o que chamo de "amor cheio" e que penso ser um direito constitutivo de todo ser humano. A aspiração ao amor integral deve ser reconhecido como direito inalienável, adquirido no momento do nascimento, um direto nativo, radical, do qual ninguém pode ser privado.

Chegou o momento também para nós de sustentar, de forma explícita, que todos têm o direito à plena realização no amor integral, sem distinção. O atraso italiano não deve ser preenchido somente pelo reconhecimento de uniões civis, sem falar de casamento, mas é necessário seguir adiante com o casamento para casais gays, porque nisto estão em jogo a igualdade e o direito nativo ao amor integral.

O sentido abrangente deste movimento é altamente evangélico, porque sempre, quando triunfa a singularidade da pessoa em relação à lógica de Estado das instituições e das tradições, afirma-se o ponto de vista de Jesus, de que o sábado era para o homem e não o homem para o sábado. Mas por isso ele foi eliminado pelo poder institucional. A Igreja hierárquica, no entanto, ainda não o compreendeu. Não compreendeu em 1789, quando o movimento começou, e não compreendeu nestes dias, na Irlanda, com os bispos lançando um apelo pelo "respeito dos valores da família tradicional ". Os fieis individualmente, sim. A não ser que se considere que os cristãos, numa nação entre as mais Católicas do mundo, sejam apenas 37,9%, deve-se admitir que, para a maioria dos fiéis, as posições da hierarquia católica não têm qualquer relevância quando estão em jogo questões éticas e de direitos humanos. O arcebispo de Dublin disse que agora "a Igreja terá de fazer as contas com realidade". É verdade, e espero que alguma coisa aconteça. Mas, ainda mais importante é que as contas com a realidade sejam feitas pela política italiana, dando ao país uma lei que permita a todos os cidadãos viver, na plenitude do casamento, o direito nativo ao amor integral.
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* Vito Mancuso, professor da Universidade de Pádua, em artigo publicado pelo jornal La Repubblica, 25-05-2015. A tradução é de Ramiro Mincato.
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