domingo, 10 de maio de 2015

Perdemos a fraternidade.

David van Reybrouck*

 

Há uma previsão que diz que, se o século XIX foi o século da igualdade, e o século XX, o da liberdade, o século XXI deveria ser o século da fraternidade. A dúvida é se essa 
previsão irá se realizar.

A partir da Revolução de 1789, Fraternité foi um dos três valores fundamentais da República Francesa. Em 1823, Ludwig Van Beethoven completou a sua Nona Sinfonia: ele tinha composto a apoteose inspirando-se em uma poesia de Schiller. No auge da dramaticidade, o coro pontua com toda a força que tem no peito: "Alle Menschen werden Brüder, todos os homens se tornam irmãos".
Mas o que aconteceu desde então? A fraternidade certamente não goza de ótima saúde. Quando o 'Hino à Alegria de Beethoven se tornou o hino da Europa, em 1985, ele foi imediatamente privado do texto original alemão – mas o que eu digo? Ele foi destituído de qualquer texto. Neutralidade linguístico-política... etc, etc. A Europa é a única constelação política no mundo cujo hino pode apenas ser murmurado.

O que tudo isso nos diz sobre o projeto político da Europa? Quem busca os ideais da Revolução Francesa no Google obtém o seguinte: liberdade: 45.500.000 resultados; igualdade: 2.140.000 resultados; fraternidade: 603.000 resultados. Até mesmo a variante mais comum desse termo, irmandade, totaliza a pontuação mais baixa entre os três ideais.

Mas, voltemos à fraternidade, do meu ponto de vista, o ideal mais apaixonante da Revolução Francesa. O ex-primeiro-ministro do meu país, a Bélgica, Mark Eyskens, escreveu que os três valores da Revolução Francesa foram projetadas na história em fases diferentes: assim, se o século XIX foi o século da igualdade, e o século XX, o da liberdade, o século XXI deveria ser o século da fraternidade. Acho uma reflexão esplêndida. Só uma dúvida: essa previsão irá se realizar?

Caracterizado pela luta pela conquista do sufrágio universal, o século XIX, de fato, foi o século de uma maior igualdade, mas Thomas Piketty também nos lembra que, no século XXI, ainda será preciso lutar contra novas formas de desigualdade.

E com tanto caminho ainda a se percorrer, devemos realmente iniciar desde agora a falar de fraternidade? Na linguagem política do Ocidente, esse termo está totalmente em desuso. Obviamente, com o termo fraternidade, entende-se o vínculo entre irmãos e irmãs, mas nunca se sabe. Em inglês, foi preciso substituir "mankind", o gênero humano, por "humanity", a humanidade, e nos Estados Unidos, terreno de cultura da neutralidade de gênero, uma pessoa é definida sinteticamente como "human being", um ser humano.

Ou talvez o ideal de solidariedade fundamental é áulico demais nesta era tão pragmática? Embora a liberdade e a igualdade pertencem à esfera dos direitos e, acima de tudo, dos direitos do indivíduo, a fraternidade é um valor intrínseco de uma comunidade.

Isso é cansativo. Em comparação, por exemplo, com a jurisprudência africana, o direito europeu sempre se sentiu muito mais desconfortável quando está em jogo a posição jurídica de uma comunidade. Mas o que parece politicamente inalcançável, não deve ser necessária e socialmente indesejável. O francês Matthieu Ricard publicou o seu Apelo ao altruísmo. Ricard obteve o doutorado em biologia molecular sob a orientação do Prêmio Nobel François Jacob e é filho do filósofo Jean-François Revel.

Em 1972, ele foi para a Índia e para o Nepal para mergulhar no estudo da filosofia não ocidental e hoje é o tradutor francês do Dalai Lama. O livro de Ricard é um único e longo apelo para o cultivo ativo da compaixão, não só entre seres humanos, mas também entre seres humanos e animais e elementos da natureza.

Da mesma forma que o fosso entre ricos e pobres não é um desenvolvimento natural, mas sim o resultado de ações políticas conscientes empreendidas de uma geração a outra, assim também o comportamento caracterizado por violência e egoísmo não é apenas a única coisa que o ser humano é capaz de fazer.

Portanto, existe outra via. Com o seu extraordinário livro sobre o altruísmo, Ricard redefiniu de forma surpreendente o velho e esquecido ideal da fraternidade, arrastando-o para o século XX. Mais cedo ou mais tarde, ele voltará para a agenda política.
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A opinião é do historiador, arqueologista e escritor belga David van Reybrouck, em artigo publicado no jornal Il Fatto Quotidiano, 08-05-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: IHU online, 10/05/2015
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