quinta-feira, 18 de junho de 2015

Hélia Correia vence Prémio Camões 2015

A vencedora foi escolhida por unanimidade pelo júri, que reuniu hoje no Rio de Janeiro. É um dos mais importantes prémios literários em português e já foi atribuído a Miguel Torga e Jorge Amado.
Hélia Correia tem 66 anos
A escritora portuguesa Hélia Correia é a vencedora do Prémio Camões de 2015. O anuncio foi feito esta quarta-feira, pela Secretaria de Estado da Cultura (SEC).
Hélia Correia nasceu em Lisboa em 1949. Licenciada em Filologia Românica, foi professora do ensino secundário, dedicando-se atualmente à tradução e à escrita. É poetisa, dramaturga e ficcionista. Estreou-se na poesia com O Separar das Águas, em 1981, e O Número dos Vivos, em 1982. Mas tem sido na ficção que se tem revelado “um dos nomes mais importantes e originais da sua geração”, escreve o gabinete de Barreto Xavier.
Hélia Correia já recebeu várias distinções, entre as quais o prémio PEN 2001, atribuído a obras de ficção, pela obra Lillias Fraser, e o PEN de poesia 2013 pelo livro A Terceira Miséria. Neste regresso à poesia, a escritora prestou homenagem “à sua Grécia” e aos problemas económicos e sociais que está a enfrentar desde o início da crise financeira.
A Casa Eterna (Prémio Máxima de Literatura, 2000), Bastardia (Prémio Máxima de Literatura, 2006) e Adoecer (Prémio da Fundação Inês de Castro, 2010) são alguns títulos da sua bibliografia. No ano passado, venceu  a 23.ª edição do Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco com a obra Vinte Degraus e Outros Contos.
A vencedora foi escolhida por unanimidade pelo júri, que reuniu esta quarta-feira no Rio de Janeiro, constituído por Rita Marnoto, professora da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (Portugal), Pedro Mexia, escritor e crítico literário (Portugal), Affonso Romano de Sant’Anna, escritor e académico (Brasil), António Carlos Secchin, escritor e académico (Brasil), Mia Couto, escritor (Moçambique) e Inocência Mata, professora da Universidade de Lisboa e da Universidade de Macau (S. Tomé e Príncipe).
Instituído por Portugal e pelo Brasil em 1989, o Prémio Camões é um dos principais prémios de literatura em língua portuguesa. É atribuído o valor de 100 mil euros a um autor “cuja obra contribua para a projeção e reconhecimento da literatura de língua portuguesa em todo o mundo”, escreve a SEC.
Já o venceram 11 portugueses, entre os quais Miguel Torga, Vergílio Ferreira, José Saramago, António Lobo Antunes e Sophia de Mello Breyner Andresen. Também já houve 11 brasileiros vencedores, incluindo Jorge Amado, Rachel de Queiroz e, no ano passado, Alberto da Costa e Silva. O angolano Pepetela e o moçambicano Mia Couto também estão entre os distinguidos.

Hélia Correia feliz com atribuição “muito generosa”

A escritora Hélia Correia confessou que ficou feliz ao saber da “muito generosa e pouco severa” atribuição do galardão à sua obra, que percorre o romance, a poesia, o teatro e o conto.
Contactada pela agência Lusa, a escritora disse que recebeu a notícia “com muita surpresa”: “Há grandes escritores de língua portuguesa com uma obra de muito maior impacto e fecundidade do que a minha”.
“Não sinto que mereço. Nunca me vejo a fazer parte destas pessoas com probabilidade de obter estas distinções. Sinto-me muito fora das probabilidades de reconhecimento literário”, disse à Lusa Hélia Correia, que se estreou na edição, em 1981, com o romance “O Separar das Águas”.
Sobre esse sentimento de não ser merecedora, a escritora precisou: “Não sinto que mereça, porque sou muito preguiçosa e descuidada na minha relação com a projeção literária, vivo num mundo muito separado do mundo social que possa estar ligado à literatura. E de vez em quando, creio eu, há uns júris assim, que são mais movidos, creio eu, pelo afeto e pela generosidade”.
“É uma espécie de compensar o defeito, em vez de compensar a virtude. Não sou um escritor esforçado e responsável perante as exigências editoriais. Tenho um traçado de vida muito selvagem e muito antissocial que não espera cruzar-se com estas benesses tão importantes e tão relevantes, ligadas a um nome como o de Camões, que merece toda a nossa veneração”, declarou.
“Camões é um nome muito importante na minha vida. É a referência maior da língua portuguesa”, frisou a escritora nascida em Lisboa, em 1949.

Reações

Nuno Júdice, poeta

A atribuição do Prémio Camões à escritora portuguesa Hélia Correia é “muito justa”, afirmou à agência Lusa o poeta Nuno Júdice.
“Fomos colegas de curso na Faculdade de Letras, fizemos parte das mesmas lutas académicas e vejo na obra dela uma capacidade de fazer reviver. Uma das suas influências literárias é o romance inglês do século XIX, mas atualizado. E depois há o lado fantástico”, descreveu o escritor.
Para Nuno Júdice, o romance “Lillias Fraser” pode ser um bom ponto de partida para um leitor entrar na obra literária de Hélia Correia. “Seja em romance seja em conto, há uma tonalidade poética que passa na obra”, disse.

Francisco Vale, editor da Relógio D’ Água

O editor da Relógio D´Água, Francisco Vale, sublinhou “a grande imaginação e o português rico e dos mais elaborados, no espaço da língua portuguesa”, na obra de Hélia Correia, hoje galardoada com o Prémio Camões.
“É um prémio merecido. É a autora que melhor está a escrever em língua portuguesa, atualmente”, sublinhou Francisco Vale, da Relógio D´Água, editora que publica a obra de Hélia Correia desde meados dos anos 1980.
Contactado pela agência Lusa, o editor sublinhou que a escritora, de 66 anos, nascida em Lisboa, “tem uma obra muito diversa e diversificada”, que percorre o romance, o teatro, o conto, a poesia e a novela.
“É realmente uma obra diversificada, mas tem em comum uma grande imaginação. O português dela é extremamente rico, e um dos mais elaborados dentro do espaço da língua portuguesa, portanto não me surpreende esta escolha”, disse.
O editor revelou à Lusa que a Relógio D´Água vai reeditar agora todas as obras de Hélia Correia, que ficarem esgotadas no mercado, e ainda publicar um volume com obras escolhidas da escritora, nascida em Lisboa, em 1949.

Fernando Pinto do Amaral, coordenador do Plano Nacional de Leitura

O coordenador do Plano Nacional de Leitura, Fernando Pinto do Amaral, destacou na escritora Hélia Correia a “singularidade muito grande”, capaz de criar um “mundo fascinante”, na “fronteira entre a normalidade e a loucura”.
“O mundo que cria é fascinante”, afirmou o também escritor, salientando na obra da autora de “Lillias Fraser”, “a ligação entre o real e o fantástico”, as “criaturas um pouco estranhas, que estão na fronteira entre a normalidade e a locura”.
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Reportagem por  Sara Otto Coelho
Fonte:  http://observador.pt/2015/06/17/helia-correia-vence-premio-camoes-2015/

Hélia Correia, A Terceira Miséria


Trinta e três poemas compõem a Terceira Miséria, de Hélia Correia. O livro abre com uma interrogação, o sinal de uma dúvida, retomada de Holderlin - Para quê, perguntou ele, para que servem / Os poetas em tempo de indigência? (poema 1) - para ser rematado com uma reformulação do princípio de esperança, não de uma esperança que, nestes tempos de indigência, tudo acabe bem, mas que algo comece, a esperança de um início: ... e de barulho /Atrás do qual vem o poema, atrás /Do qual virá a colecção dos feitos / E defeitos humanos, um início (poema 33).

Esta súbita junção entre o começo e o fim do livro proporciona o horizonte onde se move a escrita. Para que servem poetas em tempo de indigência? A resposta é dada obliquamente pelo produto do trabalho do poeta, o poema. Ele marca um início. No poema o mundo incoaria, como se o poema fosse um ovo, onde o passado se sintetiza e metamorfoseia numa nova possibilidade. Ainda no último texto é dito: De que armas disporemos, senão destas /Que estão dentro do corpo: o pensamento, A ideia de polis, resgatada / De um grande abuso, uma noção de casa / E de hospitalidade... (poema 33). Todo este passado grego - e o abuso que sofreu durante milénios - repousa no poema, como se ficasse sugerido que desses materiais heteróclitos um novo mundo, ainda por precisar, pudesse subir ao palco com os seus novos cenários e figurinos.

Para mediar entre a pergunta crepuscular de Holderlin e a sua resposta auroral, Hélia Correia utiliza figuras como a beleza, a loucura, a morte e a miséria. A beleza é a beleza helénica, uma beleza substancial - Que uma antiga substância, essa beleza /Que podia tocar-se num recesso / Da poeirenta estrada, no terror / Das cadelas nocturnas, na contínua / Perturbação, morada de alegria; (poema 1) -, mas também uma beleza dada pelo espanto pela dádiva do logos:  Essa beleza que era espanto / Pelo dom da palavra e pelo seu uso / Que erguia e abatia, levantava / E abatia outra vez, deixando sempre / Um rasto extraordinário (poema 2).

A percepção dessa beleza grega, o princípio originário do nosso mundo, é pautada pelas estações de um contínuo empobrecimento. Este funda-se na morte do mito e do seu esquecimento: Sim, foi essa / A primeira miséria, a deserção / Dos deuses. A segunda, a sua morte, / Já na morte de Pã anunciada / Pelo lamento dos bosques, o clamor / Lutuoso das ilhas de Egeu (Poema 18). O que significa a morte dos deuses, essa segunda miséria? A morte, uma falência quotidiana / Da limpidez, da arte e da divina / Coloquialidade com o mistério... (poema 19). A deserção e, depois, a morte dos deuses conduz ao corte com o mistério. A proximidade com este desapareceu, o que originou uma nova miséria, não a terceira, mas uma miséria fundada num divertimento funesto, o da hermenêutica. E veio outra miséria, em interlúdio: / A miséria da interpretação / Que tudo trai (poema 20). O mistério vivo da beleza grega é agora tomado pela erudição, pelo exercício contínuo da traição a uma vida da qual perdemos a chave.

Estas etapas do empobrecimento preparam a terceira miséria, aquela que diz respeito à nossa indigência contemporânea. A terceira miséria é esta, a de hoje / A de quem já não ouve nem pergunta. / A de quem não recorda (poema 23). Esta é a mais terrível das misérias, é a da indigência que nem sequer chega a formular-se: Por sobre estes lamentos, quando a mesma / Palavra, a indigência, nos ocorre / Sem que nos atrevamos a usá-la, / Porque sem deuses, sem o sentimento / Sequer da sua falta, nós nascemos, / E incapazes de lembrar... (poema 6).

A nossa indigência, a miséria do nosso tempo, só é compreensível pela oposição com aqueles que, estando relativamente perto de nós, ainda pressentiram o eco longínquo da grandeza helénica. Holderlin e Nietzsche enlouqueceram. Byron morreu lutando pela Grécia. Holderlin não suportou essa ausência que ecoava no fundo do seu ser, Não sei perseverar assim, escrevia / O da meiga loucura. Perguntava / O que dizer, o que fazer, enquanto / Não voltassem os muito apetecidos, / Os grandemente antigos, esses sábios / Que se engasgavam nos banquetes... (poema 13). Também Nietzsche não resistiu ao encantamento: Só mais tarde o outro, / O que desconhecia a mansidão / E enlouqueceu de modo diferente, / Se apercebeu do uivo que soltavam / As ilhas todas, com as suas praias / E os seus bosques vazios. Pois o luto / Leva tempo a formar uma linguagem (poema 10). Apesar da morte dos deuses e da distância, a Grécia no século XIX ainda tinha força suficiente para chamar os jovens da Europa: Tu, Grécia, semelhante a heroína / Sujeita a vilipêndio, tu a quem / Acorreram os jovens da Europa, / Os de linhagem, como impacientes / Por qualquer boa espécie de jornada (poema 27). Entre esses estava Byron, que ali encontrou a morte. Oh Grécia que chamaste Byron como / Incestuosa irmã, tu que lutavas... / (...) / Parecias levar tudo tão a sério / Que tu própria quiseste matar Byron / Deitando-o devagar, adoecendo-o, / Poupando-o ao confronto e à derrota, / Porque derrota houve uns anos mais (poema 27).

A Grécia foi assim uma atracção fatal para o espírito europeu do XVIII e do XIX. Enlouqueceu e conduziu à morte, para entrar, depois, na terra do esquecimento. Hélia Correia escreve uma epopeia do esquecimento. Não por acaso, a generalidade dos versos são decassílabos heróicos, que captam não a expressão de um sentimento do sujeito poético, mas a objectividade de uma perda. Holderlin, Byron e Nietzsche são os heróis impotentes, sinais de um mundo que a modernidade, depois de uma leve inquietação no Renascimento, acabou por relegar para a zona escura do recalcado, a zona da nossa indigência, dessa incapacidade já de rememorar não a vida mas o reflexo dessa vida na arte e no espírito.  Como todos os dias descobrimos, pertencemos a um mundo que nada sabe desses gregos, nada quer saber.

Na Ilíada, Aquiles, na parte final da obra, retorna ao combate do qual se afastara devido ao conflito com Agamémnon. Ulisses, no final da Odisseia, retorna a casa e aos braços da mulher. De certa forma, encontramos em ambas as epopeias de Homero o restabelecimento de um estado natural que tinha sido desfeito. Hélia Correia, porém, não tem qualquer ilusão sobre o retorno dos deuses, o retorno do mito, o restabelecimento dessa antiga natureza. Para onde olharemos? Para quem? / Certo é que Atenas se mantém oculta / E de algum modo intacta, por debaixo / Do alcatrão, do ferro retorcido. / Certo é que nunca ressuscitará / Visto que nada ressuscita (poema 30). Essa Grécia, que enlouqueceu Holderlin e Nietzsche e levou Byron para a morte, não voltará, mas ... pode/ No entanto escutar-se, no entanto / Reler-se, no entanto caminhar / Em direcção diversa, magoar / Novamente os joelhos na jornada? (poema 31) Esta interrogação é já, paradoxalmente, a afirmação de um caminho, do caminho que resta. Reler e escutar. Escutar essa Gente do Sul, / Gente que um dia se desnorteou (poema 32). A releitura do que nos ficou, a escuta das praças que de novo se enchem: Estão as praças, / Como ágoras de outrora, estonteadas / Pela concentração dos organismos, / Pelo uso da palavra, a fervilhante / Palavra própria da democracia,  Essa que dá a volta e ilumina / O que, por um instante, a empunhou (poema 32). Todo esse barulho atrás do qual vem o poema - não foi assim com a poesia homérica? - e que marca não o ressuscitar de um mundo morto, mas um início, um novo começo.

Para quê poetas? Perguntou Holderlin. Para marcarem o tempo de um começo, aprendemos com Hélia Correia.

Hélia Correia (2012). A Terceira Miséria. Lisboa: Relógio d'Água.

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