domingo, 5 de julho de 2015

CARINHO

Luiz Fernando Veríssimo*

Um pouco de história antiga. Ninguém sabia explicar como um copo do Hotel Everest, de Porto Alegre, tinha ido parar na nossa casa. Até que alguém se lembrou: o Vinicius! Ele e o Toquinho estavam se apresentando na cidade e tinham ido fazer seu show para o meu pai, a domicílio. O Vinicius tinha o hábito de carregar sempre um copo de uísque onde quer que fosse. É possível que até hoje exista um copo da nossa casa no Hotel Everest.

O uísque foi o combustível de uma época, no Brasil. Bebia-se outras coisas, mas nada significava o mesmo que um uisquinho, nada merecia tanto o diminutivo carinhoso. Uma das cenas engraçadas daquele documentário sobre o poeta que fizeram há alguns anos é a do Vinicius e do Tom escorando-se mutuamente e lamentando o que as mulheres tinham acabado de fazer com garrafas de uísque. Garrafas cheias, escondidas para que os dois não bebessem mais. A insensibilidade. A audácia. O ultraje!

Contavam que depois que os médicos proibiram o Rubem Braga – acho que era o Rubem Braga – de beber uísque, ele enchia um copo com gelo e ficava sacudindo ao lado da orelha, só para ouvir o barulho. O barulhinho. O afeto era tanto que o som do uísque dispensava o uísque. De certa maneira, toda aquela época foi vivida assim, com um copo de uísque sacudindo ao lado da orelha. Mesmo quando não havia o uísque, havia a trilha sonora.

A gente vê aquele filme com um certo ufanismo – que país talentoso, né? – e uma certa tristeza. Por quê? Pela perda do Vinicius, do Tom e de tanta gente que partiu, claro, mas não é só isso. O Chico, o Caetano, o Gil, o Edu, o Ivan e os outros continuam aí, cada vez melhores, a garotada (como se vê no filme) é muito boa, o que é que falta? Não deve ser o uísque. Com todo o seu simpático folclore, a cultura do uísque fez seus estragos em fígados e carreiras. Talvez sejam apenas os nossos 20 anos que também se foram. Ou então uma ideia de país que se perdeu.

A não ser que se quisesse enfrentar uísques de fundo de quintal – e algumas marcas nacionais eram mortais –, o uísque era uma bebida cara. O escocês legítimo era para quem podia, e eu decididamente não podia. Tomava Cuba Libre (Coca-Cola com rum, ou o que passava por rum). E tomava demais.

Só não me tornei alcoólatra porque minhas ressacas eram tão catastróficas, que fui obrigado a escolher, acordar todos os domingos num inferno biliar, depois de um sábado de excessos, ou continuar vivo.

Quando finalmente tive condições de beber uísque bom, o uísque tinha saído de moda. Não ficou nem o barulhinho do gelo num copo vazio. E o que, no Brasil de hoje, merece um diminutivo carinhoso?
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* Escritor. Jornalista. Cronista da ZH
Fonte: ZH online, 05/07/2015
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