terça-feira, 14 de julho de 2015

Edgar Morin

 Juremir Machado da Silva*
   
 
"É a crise mais grave da Europa. 
Precisaria uma mudança de rumo, 
que a Alemanha não permitirá. 
O futuro é, portanto, muito nebuloso."
 
Autor de seis volumes de uma obra monumental, O Método, publicada no Brasil pela Sulina, Edgar Morin acaba de lançar na França A aventura do Método. São mais de 40 livros na sua longa trajetória de intelectual, filósofo, sociólogo, epistemólogo, educador, militante, primeiro pelo melhor dos mundos e depois por um mundo melhor, e pensador generoso das contradições, baixezas e grandezas humanas. Neste dia 8 de julho, Morin, que lutou contra a ocupação nazista da França, passou pelo Partido Comunista, saiu por não suportar o stalinismo, viveu nos Estados Unidos, onde se aprofundou em biologia e física, e tornou-se cidadão do mundo, completou 94 anos de idade bem vividos e em plena forma física e intelectual. Ele continua cheio de projetos e de esperanças. Nesta entrevista, concedida para mim, no Instituto de Ciências da Comunicação e da Informação, em Paris, publicada no Caderno de Sábado do Correio do Povo, Edgar Morin examina o futuro da União Europeia e da cultura.

Caderno de Sábado – O senhor vai completar 94 anos. É uma bela trajetória. Viu nascer e crescer a utopia de uma união Europeia. Qual o futuro dela?
Edgar Morin – O futuro é incerto. A situação da Grécia tem mostrado que não se pode ter qualquer certeza. A crise da Europa não para de se agravar. Os fundadores da Europa pensavam na união política e cultural. Daí vem a primeira crise. Como os nacionalismos eram muito fortes, especialmente depois da Segunda Guerra Mundial, a união política não foi possível. Saiu uma união econômica. A Europa de hoje é heterogênea. Os países do leste, integrados, não têm as mesmas perspectivas. A segunda crise vem das rejeições. A própria França votou contra a Europa, há alguns anos, num referendo. Por fim, a crise atual tem a ver com os problemas econômicos e com a chamada austeridade, que se resume à dominação dos interesses cada vez mais poderosos do capital. Não há forças populares capazes de reagir, mas em certos países se desenvolveu um partido nacionalista fechado, mais ou menos racista, como a Frente Nacional na França. O Syriza comanda uma boa reação, mas, se capitular, a Grécia sairá da Europa e será o começo da decadência. Na Espanha, o Podemos, em circunstâncias diferentes, também expressa a insatisfação contra a hegemonia do capital. É possível que haja uma regressão para um mercado comum. Até o euro está ameaçado. É a crise mais grave da Europa. Precisaria uma mudança de rumo, que a Alemanha não permitirá. O futuro é, portanto, muito nebuloso.

CS – O atentado contra Charlie Hebdo chocou o mundo e houve quem falasse em retorno das guerras de religião. A liberdade está ameaçada?
Morin – Não. As guerras de religião mobilizavam a totalidade das pessoas. As cruzadas colocaram em ação cristãos e muçulmanos como um todo. As guerras entre protestantes e católicos também mobilizaram o conjunto da sociedade. O mesmo ocorre quando há confronto entre sunitas e xiitas. Não há hoje um conflito entre a totalidade do mundo muçulmano e a totalidade do mundo cristão. A maioria dos muçulmanos é moderada. Ainda que existam ressentimentos, pois os muçulmanos sabem que o Ocidente usa dois pesos e duas medidas quando se trata de Israel e da Palestina, não há guerra de religião. No Marrocos e na Tunísia há muita simbiose com a cultura ocidental. Há crescimento, contudo, de fanatismos e da intolerância, em parte produzidos por uma minoria infeliz e radicalizada da qual fazem parte muitos jovens franceses, inclusive católicos convertidos ao islamismo. Os problemas internos e diferenças do mundo muçulmano contam bastante. Existem países quase medievais como a Arábia Saudita, mistos, como o Líbano, onde há cristão e muçulmanos, e nações despedaçadas como a Síria e o Iraque. No Marrocos, onde passo parte do meu tempo, há cada vez mais interpenetração com o Ocidente no sentido de democratização e de mais respeito às mulheres. Mas as tradições permanecem.

CS – A França, mesmo entre os socialistas, está dividida em relação à laicidade nas escolas. Alguns querem manter a laicidade pura. Outros, querem flexibilizá-la em respeito às diferenças. Qual o caminho mais adequado aos tempos atuais em que a diversidade é um valor maior?
Morin – A laicidade se caracteriza pela separação entre religião e Estado. A escola pública não pode fazer propaganda religiosa. Mas é fundamental que as religiões sejam estudadas nas escolas públicas, pois a religião é um fenômeno antropológico universal que existe desde a pré-história. As sociedades mais simples e as mais desenvolvidas, como os Estados Unidos, são religiosas. A União

Soviética fracassou ao tentar suprimir a crença em Deus. Não acho que se deva impedir o uso de símbolos religiosos secundários como um véu, uma cruz ou uma estrela de Davi. Em muitos países laicos, tolerantes, é permitido usá-los nas escolas. O importante é situar cada coisa no seu contexto. A laicidade adota o ponto de vista da ciência para explicar o universo e a vida, mas não pode eliminar o estudo desse fenômeno humano complexo e rico que é a religião.

CS – O senhor acaba de publicar A aventura do método. A luta contra o reducionismo e a simplificação está sendo ganha pela complexidade?
Morin – Meu objetivo com este novo livro foi mostrar como me veio a ideia de um método capaz de considerar a necessidade de complexidade para entender os fenômenos humanos e sociais. Tomei como símbolo uma árvore cujos galhos tocam no chão e se tornam raízes. Surge um novo tronco. O pensamento complexo é recursivo. Ele se alimenta também de si mesmo e se recria todo tempo. Ao descobrir o meu método, ele se voltou sobre o meu pensamento me obrigando a pensar nas suas consequências políticas, pedagógicos e filosóficas. Eu produzi um método, que, por seu turno, me produziu ao longo da vida.

CS – A reforma do pensamento das suas reflexões está acontecendo?
Morin – Não. Infelizmente. É algo bastante difícil. Sim, mas apenas de modo disperso. Na América Latina, no México, minhas ideias são aplicadas numa instituição. Falta, de maneira geral, uma base pedagógica institucional para desenvolver o que tenho defendido em meus livros sobre a complexidade.

CS – Os seus livros são lições de vida. Quase aos 94 anos, o senhor continua otimista sobre a possibilidade de construção de um mundo melhor?
Morin – Sim, continuo. Mesmo que eu perceba catástrofes no futuro se as coisas continuarem como andam, com a tecnocracia e a hegemonia do capital financeiro, mantenho meu otimismo. O improvável é sempre possível. Creio nisso. Já aconteceu no passado. Mantenho a esperança de que as possibilidades criativas que caracterizam a humanidade venham a desabrochar. Em certo sentido, sou pessimista. Noutro, sou otimista. É preciso ter a coragem de continuar sonhando e amando a vida. Eu amo viver e amo a humanidade. Obedeço a um instinto mais profundo que me faz acreditar na vida. A aranha faz emergir do seu orifício uma teia. Ela não sabe a razão disso. É o seu destino. Eu tenho a impressão de ser uma pequena aranha, um elemento, um pedacinho da espécie humana possuído pela ideia de dar a minha contribuição e fazer o meu trabalho. Posso até me iludir. Mas é assim que sou e que eu gosto de ser.

CS – A paz entre israelenses e palestinos não chegou. A utopia europeia está virando pesadelo. A ciência avança. O imaginário continua atrasado?
Morin – Muitos acontecimento são regressivos no planeta. Mas há coisas boas. A encíclica do Papa Francisco sobre a ecologia é maravilhosa e bela. Trata-se de um chamado por uma nova civilização. Mas mesmo a liberdade de expressão está limitada. A grande mídia pode quase tudo. São poucas as alternativas. Não estamos numa ditadura, mas a liberdade de expressão é dominada pelo dinheiro.
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* Sociólogo. Escritor. Prof. Universitário
Fonte: Correio do Povo online, acesso 14/07/2015

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