segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Medo, o triunfo da intolerância

Roberto Romano descreve minuciosamente os processos sociais e políticos que desembocaram nos mais distintos processos de intolerância ao longo da história ocidental

Intolerância e radicalização são uma espécie de sinônimos com etimologias distintas. Isso significa dizer que onde há uma, há outra. Após fazer um recorrido histórico no Ocidente sobre as formas de intolerância que desembocam nas que conhecemos, o professor e pesquisador Roberto Romano chama atenção para a história recente do Brasil. “Ao longo dos tempos em países escravistas como o Brasil, o exercício de cultos com origens africanas foi criminalizado. Ainda no século XX, no Departamento de Ordem Política e Social - DOPS, polícia sanguinária que envergonha todo ser humano, existia uma Delegacia de Cultos para perseguir as ‘religiões primitivas’”, destaca o pensador em entrevista por e-mail à IHU On-Line

Entretanto, Romano não reduz as experiências de intolerância somente ao viés das religiões. “Com o fim da URSS e o triunfo do neoliberalismo em escala planetária, tivemos no pontificado de João Paulo II a união estratégica do mundo oficial católico com a ideologia do mercado absoluto, assumida por Ronald Reagan, Margaret Thatcher, e outros”, frisa. “A benção do papa a Pinochet foi o ápice de uma pouco santa aliança entre a política Vaticana e o veto das tentativas de manter a democracia, os direitos dos diferentes, a laicidade”, complementa.

O medo, filho dileto da intolerância, há séculos é o expediente que torna possível uma política calcada no terror, ora dos poderes eclesiais e monarcas, ora dos soberanos modernos, ora do sistema financeiro mundial. Disso, decorre o papel da comunicação que transforma os semelhantes em inimigos. “Após duas ditaduras que inocularam o medo na população, os programas televisivos e radiofônicos exercem um mister importante da razão de Estado: apontar o próprio povo como inimigo a ser ferido, distraindo assim a massa dos arcana imperii que se forjam nos palácios”, avalia Romano. 

Roberto Romano cursou doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales - EHESS, França, e é professor de Filosofia na Universidade Estadual de Campinas - Unicamp. Escreveu, entre outros, os livros Igreja contra Estado. Crítica ao populismo católico (São Paulo: Kairós, 1979), Conservadorismo romântico (São Paulo: Ed. UNESP, 1997), Moral e Ciência. A monstruosidade no século XVIII (São Paulo: SENAC, 2002), O desafio do Islã e outros desafios (São Paulo: Perspectiva, 2004) e Os nomes do ódio (São Paulo: Perspectiva, 2009).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Intolerância e modernidade estão diretamente relacionadas? Por quê?
Roberto Romano - Uma causa da radicalização intolerante reside no crescimento das comunicações entre culturas diferentes. No mundo antigo existiam duas situações sociais diversas. Em primeiro lugar os povos com idêntica religião, formas jurídicas e políticas. Claro, tais formas resultaram de massacre dos vencidos ou tratados. Mas o estrangeiro não chega a ser ameaça absoluta à coesão interna, ele é sempre “bárbaro” e inferior. A intolerância face ao outro cimenta a unidade do povo. 
A polis grega exemplifica tal atitude mental. A intolerância judaica, na época de Cristo, define a identidade popular com hegemonia de certos elementos sobre os demais. Daí, os debates da nascente Igreja cristã, entre os que desejavam manter traços do judaísmo (liderados pelo Apóstolo Pedro) e os que viam na religião nova a universalidade que relativizaria a vida judaica, romana ou grega, com Paulo. 

A segunda via foi a do controle imperial. Roma é o grande paradigma. As tentativas imperiais gregas (sobretudo atenienses, veja-se Tucídides  na Guerra do Peloponeso) fracassaram porque os cidadãos de Atenas quiseram impor todos os seus valores e cultura aos submetidos, além de amealhar impostos escorchantes e indevidos. Já os romanos souberam, com maestria, tolerar culturas e religiões as mais diversas, desde que submetidas ao poder imperial. Os povos dominados eram tidos como bárbaros, mas a cidadania romana estava aberta aos indivíduos estrangeiros. 

Helenismo

Com o fim do mando romano e o advento do “helenismo”, surgem doutrinas que relativizam as culturas de cada Estado, tendo em vista a lógica do universal. É o caso dos estoicos, com a utopia de uma cosmópolis. Como o universo teria como base o “logos”, apenas a irracionalidade e a loucura sustentariam as paixões ligadas ao ódio contra os homens. Cícero  e Sêneca  apontam para os procedimentos imprudentes que se ligam à irracional intolerância, a ira está entre eles. 

Idade Média

Durante a Idade Média, a respublica christiana era vista como cultura universal (católica) com a força de integrar em si mesma as diversidades culturais dos povos. A intolerância do corpo eclesiástico (que inclui o mundo civil) se dirigia contra as seitas heréticas. Após a corrosão da referida respublica christiana, em especial com Lutero,  os Estados nacionais retomam a tese e a prática da uniformização cultural interna a cada povo. No Tratado de Westfália  houve a independência de fato diante do antigo edifício católico. Cada Estado possui o direito de possuir uma religião, a do príncipe, e de vetar outras práticas religiosas ou políticas contrárias ao poder estatal. 

Todo esse processo ocorre numa acelerada urbanização que favorece o crescimento dos mercados e das formas políticas burocráticas e centralizadoras. O Estado não se prende a esta ou àquela tendência religiosa ou cultural, mas impõe seu regime a todas e de todas recebe resistência.  O processo de secularização e luta pelo controle de corpos e mentes, travado pelos poderes civis e religiosos, resulta das guerras religiosas e dinásticas dos séculos XVI e XVII.

Conquistas

Simultaneamente ao fortalecimento do poder estatal às expensas das igrejas (católica e reformadas) vieram as conquistas coloniais na África, Américas, Ásia. Ao ampliar em escala planetária a matriz grega e romana do etnocentrismo, que dividia o mundo entre “homens” e “bárbaros”, Espanha, Portugal, França, Inglaterra retomaram de forma inédita a Cruzada cristã, a busca de poder e lucro fácil tendo como preço vários genocídios. O europeu cristão invadiu e massacrou milhões na América: a população indígena no futuro território dos EUA ia de 8 a 12 milhões de indivíduos. No final do século XIX eles eram 400 mil, na melhor hipótese. A matança destruiu cerca de 95% das vidas não cristãs. As técnicas de genocídio foram muitas, diretas na eliminação física, ou indiretas na destruição da caça, a deportação, redução do espaço disponível aos índios, justaposição de tribos diferentes num mesmo território, o que provocou fome e lutas entre elas. Alexis Tocqueville  testemunhou tal processo de eliminação do outro pelos cristãos, o que matizou seu juízo sobre a democracia americana.  

Massacre na América do Sul

Na América central e do Sul o massacre foi idêntico, ou pior. Apesar de missionários como Las Casas  e da ação jesuítica na defesa dos índios,  portugueses e espanhóis destruíram culturas inteiras, escravizaram pessoas e impuseram suas crenças religiosas, políticas, militares. A intolerante violência não foi monopólio dos católicos. Os protestantes, em territórios americanos do Sul, viam nos índios e em suas práticas, em especial as religiosas, perigosa presença demoníaca. 

Cruzadas contemporâneas

Potências coloniais europeias, a França e a Inglaterra, sobretudo, mas também a Bélgica, sugaram o sangue humano, as riquezas e corroeram as culturas africanas, do Médio e do Extremo Oriente. A virulência colonial que ditava medidas como a inglesa na China (“Proibida a entrada de cães e chineses”), na Índia e na Palestina foi retomada pelos norte-americanos no caso do Irã, em plena Guerra Fria. Nos arredores das cidades iranianas, onde eram jogados os trabalhadores da indústria petrolífera, a miséria grassava. Os bairros “brancos e cristãos” eram proibidos aos nativos. No Irã os EUA deram o primeiro dos golpes de Estado que depois aplicaram no mundo inteiro, com parceria de ditadores sanguinários. A leitura de livros recentes, escritos por norte-americanos e europeus, mostra o quanto os EUA sucederam a geopolítica genocida dos antigos colonizadores.  

A cruzada norte-americana que visa impor seu estilo de vida e cultura aos povos do mundo traz como fruto o ressentimento e o ódio à violência usada pela CIA, mariners e fantoches políticos proclamados “presidentes” dos submetidos.  Mesmo funcionários graduados da CIA perceberam a extensão da intolerância imperial norte-americana e de seus aliados europeus.

Pavor intolerante

Mas o pavor intolerante não se detém aí. Milhões de africanos foram trazidos para o continente americano (do Norte ao Sul) para serem forçados ao trabalho escravo tendo em vista o lucro dos brancos cristãos. Nenhum respeito existiu diante das religiões, dos corpos e almas dos submetidos pela força bruta ou astúcia. Ao longo dos tempos em países escravistas como o Brasil, o exercício de cultos com origens africanas foi criminalizado. Ainda no século XX no Departamento de Ordem Política e Social - DOPS, polícia sanguinária que envergonha todo ser humano, existia uma Delegacia de Cultos para perseguir as “religiões primitivas”. 

Voltemos à aurora da modernidade. Nela ocorre a tentativa de homogeneização forçada, pelos Estados dominantes, das culturas e inclusive das línguas, com a resistência dos segmentos particulares às exigências do poder político colonizador. Na Europa, cidades que prosperaram desde o século XVI mostram a vitória do Estado sobre as Igrejas (católica e reformadas) e a insubordinação destas últimas diante do mando centralizado nas Cortes. Sem o domínio pleno da ordem política, as várias tendências religiosas e culturais do ambiente urbano levantam o desejo de uniformidade, umas contra as outras. E temos a leva de sedições e lutas que terminam no espetáculo terrível da Noite de São Bartolomeu. ,  

Mútua intolerância

A paz imposta pelo Estado não resolve o clima de intolerância gerado pelas estruturas eclesiais, umas contra as outras. A massa urbana é instrumento de ódios e vinganças, com preconceitos de todos os tipos. O ruído, o rumor, os boatos comuns em outros ângulos da vida citadina são potenciados pela indignação diante da justiça e da polícia dos reis. Sem poder assassinar seus inimigos protestantes ou católicos, a massa dirigida por demagogos de ambos os lados assumem rumores e acusações mútuas, a partir das mais leves desconfianças. O caso Calas no século XVIII exemplifica esta intolerância urbana mesmo e sobretudo contra o controle do Estado absolutista. Calas era protestante e tinha um filho que gostava de música e ia às igrejas católicas para ouvir boas composições. Na hora da janta o filho desaparece. Ele é encontrado morto. De imediato correm os rumores de que o pai o matou porque… ele estaria se convertendo ao catolicismo. O boato corre pela França, sobretudo Paris. Do rumor ao processo, deste à execução tremenda, foi um passo. Ou seja, suspeitar que um protestante tivesse receio da conversão filial, à injustiça de um processo enviesado, tudo entra na lógica da mútua intolerância que reina no Estado e na sociedade moderna. 

A rapidez na comunicação, em vez de diminuir a intolerância, a potenciou. Além dos rumores, os libelos, os panfletos, os jornais passaram a trazer ódio às formas diferentes de agir e de pensar. As Luzes, aparentemente opostas aos sectarismos, buscam a perspectiva cosmopolita antiga, sem sucesso. Desde as campanhas dos iluministas os meios de comunicação de massa têm sido orientados para se tornarem porta-vozes de Estados laicos. De um lado os Philosophes pregam, na trilha estoica e depois de John Locke,  a tolerância. Mas à socapa disseminam ódios contra as religiões e seus seguidores. Nas entrelinhas da Encyclopédie diderotiana é possível ler o que se escrevia e publicava, de modo anônimo, ao grande público. Muitas teses virulentas, como o Tratado dos Três Impostores (Moisés, Jesus, Maomé) encontram suas fontes nas dobras dos verbetes editados por Diderot. ,  

Revolução Francesa

Na Revolução Francesa os líderes fizeram propaganda da laicidade para ganhar a opinião pública e supostamente impedir lutas sectárias. Católicos e protestantes tinham duas tarefas: salvar a República e a própria alma. Mas, para os descristianizadores, Salus populi significava destruir a religião. Para eles, só o ateu seria patriota. Os demais? Supersticiosos inimigos do povo. Resultado desastroso porque banidos os crentes "a Revolução congelou" (Saint-Just). O radicalismo intolerante foi corrigido pelo culto do Ser Supremo, no fim da República. Ainda em 1793 a Convenção coíbe o fanatismo dos ateus que destruía os vínculos políticos. 

Ao comentar o decreto contra as procissões (1792) o jornal Père Duchesne ataca os crentes como cafards (baratas) e foutus cagots (gente sem valor), bougres de bêtes e outros mimos. Qualquer denúncia de jornalistas, no periódico, conduz à guilhotina. Os convencionais, apesar de tudo, exigem deter os sacrilégios "em nome da paz civil". Eles reiteram que "não se manda nas consciências". No decreto de 21/02/1795, "nenhum signo particular a um culto pode ser posto em lugar público (...) mas quem usar da violência contra um culto qualquer, ou ultrajar os seus objetos, será punido segundo a lei de 1791 sobre a polícia correcional". O texto prova que o elo entre descristianizadores e racionalidade é falso. O fanatismo da razão gera a propaganda do Terror. Assassinar suspeitos? Um baile ao som alegre do saíra. A intolerância moderna é partilhada, portanto, por religiosos e ateus. Muitos frutos venenosos saíram desta sementeira política e teológica dos séculos XVIII, XIX, XX. O culto ao Estado tem nexos com a intolerância revolucionária. A manada humana tangida no século XX pelos regimes totalitários tem como inimigo o campo religioso, em todas as suas formas. No caso do fascismo e do hitlerismo, logo se tornou patente para as igrejas (as que ainda mantiveram sua autonomia e não se reduziram a meros departamentos do poder policial) que a sua intolerância diante da transcendência era visceral. Na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas - URSS e seus países submetidos o ateísmo, se tornou, de modo perfeitamente intolerante, instituição oficial. Erra muito quem identifica “intolerância” na vida moderna apenas ao campo religioso. A semente do ódio germina em setores que existiam antes da secularização laica e depois dela. 

Brasil

E no Brasil? Aqui, na primeira linha, as formações religiosas que hoje buscam se apropriar do maior número possível das mídias, ampliam em escala inimaginável a sua própria Propaganda fidei, em forma de intolerantes batalhas contra os “inimigos”. A Igreja Católica seguiu, até o meio do século XX, uma linha defensiva (A Cruzada da Boa Imprensa) com o controle de rádios, jornais, televisões. Mas ainda no século XIX e inícios do século XX, ela contava com um número muitas vezes maior de fiéis do que todas as denominações protestantes reunidas. Sua posição defensiva (de Cristandade) era uma estratégia que compensava carências missionárias de conquista, em alianças com os Estados. Ainda nos inícios do século XX, muitos católicos pensavam como o Padre Soares d’Azevedo: a catolicidade seria a fonte lídima da nação brasileira, sendo os protestantes destruidores da unidade nacional e, mesmo, agentes do imperialismo norte-americano. Aliás, o padre voltou suas baterias para todos os campos, laicos e religiosos, opostos ao nacionalismo católico. Assim, em 1922, ele enunciava: “Pestosos? Para a ilha Grande. Anarquistas? Expulsão sumária do território nacional (…) mesmo assim a gripe e o tifo, etc. aqui entraram. Mesmo assim explodiram bombas de dinamite em numerosas cidades (…) Fizeram-se paredes e greves (…) Vencerá a peste? Triunfará a anarquia? Não é provável. Contra a primeira dispõe o governo de soros excelentes. Para a segunda, de uma atilada polícia de repressão. Afinal, fala o instinto de defesa. O sulfato de quinino tem em apertos desses honra de marechal” (Brado de Alarme). Além dos “pestosos”, denunciava o sacerdote, existiam as seitas protestantes de origem norte-americana e, portanto, imperialistas. As iniciativas defensivas dos católicos se voltaram para garantir o já ganho com as Cruzadas Eucarísticas, a Liga Eleitoral, a censura, o apoio aos governos autoritários.

Concílio Vaticano II 
O Concílio Vaticano II,  com o ecumenismo, atenuou as batalhas entre confissões religiosas. Mas ele coexistiu com instantes agudos da Guerra Fria  quando as ideologias socialistas e capitalistas, que serviam à razão de Estado, espalharam ódios no planeta, chegando à beira de catástrofe nuclear. O maniqueísmo da propaganda usada pela “civilização cristã e ocidental” e pelo mundo socialista espalhou ditaduras intolerantes nas Américas e Ásia. O outro só poderia ser, como inimigo, aniquilado. No Brasil, a Marcha da Família com Deus pela liberdade  afirmou a divisão do mundo em dois polos, o comunista a ser derrotado a qualquer custo, mesmo que sob ditadura e destruição dos direitos humanos, e o cristão. Na cópia do macartismo, tivemos o brado de “Brasil, ame-o ou deixe-o”. Seria impossível às diferenças o convívio no mesmo espaço, agora dominado pela Doutrina da Segurança Nacional. 

Com o fim da URSS e o triunfo do neoliberalismo em escala planetária, doutrina aplicada quase sempre manu militari e muita propaganda, tivemos no pontificado de João Paulo II  a união estratégica do mundo oficial católico com a ideologia do mercado absoluto, assumida por Ronald Reagan,  Margaret Thatcher,  e outros. A benção do papa a Pinochet  foi o ápice de uma pouco santa aliança entre a política Vaticana e o veto das tentativas de manter a democracia, os direitos dos diferentes, a laicidade.  

Censura nos Seminários
A censura nos seminários, intervenções em dioceses importantes como a de São Paulo, a perseguição aos teólogos e filósofos ligados à Teologia da Libertação,  tudo confluiu para afastar a prática católica dos mais fracos, o que aumentou o poder de elites inescrupulosas que jogavam no mercado de ações o destino de povos inteiros. Foi a era dos yuppies, que levou à catástrofe financeira e política de 2008. 

Pontificado de João Paulo II
O pontificado de João Paulo II freou tais reformas, em prol de um modelo de cristandade rígido e não afeito ao diálogo interno ou externo à catolicidade. No mesmo passo as igrejas reformadas, perseguidas antes do século XIX, também perdem fiéis para os movimentos fundamentalistas e carismáticos que, auxiliados por técnicas eficazes de propaganda e organização empresarial, acolheram os que não encontravam mais lugar no mundo oficial católico ou protestante. A Igreja, até o século XX, via, nos demais, cristãos hereges a serem combatidos por todos os meios, imprensa, cinema, política, polícia. Ela usou seus veículos de comunicação como instrumento de caça aos diferentes. Uma leitura da Revista Eclesiástica Brasileira - REB, dos periódicos editados pela Vozes de Petrópolis, pode mostrar o quanto a belicosidade católica era exercida contra as formas cristãs ou não cristãs. Os fundamentalistas protestantes não se incomodam em usar todo tipo de ataque, mesmo os mais baixos, contra os católicos a partir dos anos 80 do século XX. Os mais ardilosos dentre eles, como os donos da Igreja Universal do Reino de Deus, estabeleceram uma estratégia inédita de tomada do poder, visando nova teocracia moderna baseada na mídia e no voto.  

Teologia política contrarrevolucionária 
Pelo visto, o plano de poder proposto por Edir Macedo funciona. A massa de deputados conservadores eleitos para o legislativo federal, sua hostilização das diferenças e propostas contrárias aos direitos humanos, tudo leva a crer numa importante guinada do Estado brasileiro para a teologia política aos moldes contrarrevolucionários. Se Joseph de Maistre  e outros do século XIX foram ultracatólicos, agora a defesa da intolerância oficial, no Parlamento, vem de outras fontes, sobretudo as devedoras do neoliberalismo econômico, cujo padroeiro é Friedrich Hayek.  Os parlamentares fundamentalistas convivem muito bem com bancadas (lobbies) da indústria armamentista e proprietários de “universidades” privadas. Não por acaso, na prática teológico-política encenada, a conquista de redes televisivas, radiofônicas, etc. se dirige contra as minorias e os diferentes. Linchamentos já ocorrem, à espera dos Autos da Fé teocráticos na abolida Praça dos Três Poderes brasiliense, num futuro próximo. 

Redes “Sociais”
Os instrumentos recentes de “comunicação”, como as supostas redes sociais, potencializam e radicalizam as correntes de ódio plantadas desde o século XVI, a era do Renascimento e da primeira razão de Estado. Note-se que em todos os prismas, religiosos e ideológicos, a intolerância domina e se fortalece nas chamadas redes sociais. Os fundamentalistas cristãos, muçulmanos, protestantes, ateus, agem como as hordas descritas por Elias Canetti,  sempre em massa. Com sua ação, os indivíduos são devorados e suas crenças, vilipendiadas. Mas é prudente lembrar que de “sociais” aquelas redes têm pouco. Elas, na verdade, servem às práticas políticas de países hegemônicos, pouco se tem estudado sobre os elos entre empresas como o Google e as que mantêm serviços como o Facebook, com os poderes políticos imperiais. Tais redes espalham a divisão entre as camadas populares, servem a elites econômicas e políticas. Afastadas do poder, as massas podem usar a violência sem peias, distribuir a morte espiritual e mesmo física dos “inimigos”. A razão de Estado efetiva, hoje, é a do mercado, em especial o financeiro. O resto — religião, cultura, política — é cosmético para fantasiar o mundo desencantado das Bolsas e Agências de Risco. Intolerância maior é difícil. 

IHU On-Line - Como podemos compreender que avançamos tanto em termos tecnológicos, e continuemos periclitantes no campo da ética e sigamos reproduzindo comportamentos bárbaros nas relações sociais?
Roberto Romano - Retomo uma tese de Gabriel Naudé,  autor estratégico da razão de Estado, que recorda doutrinas antigas sobre o elo entre técnicas, ciências e moral. Nas Considerações políticas sobre os golpes de Estado (1640) ele adianta que “os hábitos do intelecto são distintos dos vividos pela vontade. Os primeiros pertencem às ciências e sempre são louváveis; os segundos ligam-se às ações morais, que podem ser boas ou más”. E arremata: “é lei comum que todas as coisas instituídas para um fim bom, com frequência são abusadas: a natureza não produz venenos para matar os homens, se ela fizesse tal coisa destruiria a si mesma; a nossa malícia gera tal uso”. A nossa malícia… Mais tarde Kant define a vontade como base de um juízo e uma prática boa ou má. As duas têm como fundamento a razão. O Bem Comum é racional, assim como atos malignos. A consciência ajuda a distinguir um campo do outro.

É possível usar de modo errado um dom (natural ou divino) cuja função é respeitar os valores éticos. Aquele dom leva o ente racional a se colocar um passo adiante das feras. Se, por exemplo, Mengele  moveu seu intelecto e vontade para destruir os fracos, é ainda mais vital empregar a consciência para impedir que os técnicos, cientistas e governantes dela façam um instrumento de pavor, contra os oposicionistas. O termo para nomear a consciência na língua grega é “syneidesis”. A palavra, no Testamento Novo, aparece trinta vezes. Jesus prefere a forma judaica, “coração”, fonte de remorso e luz, de onde saem pensamentos pervertidos, assassinatos, roubos, falsos testemunhos, difamações (Mateus, XV, 10, 17-20). E aqui podemos unir o problema das técnicas genocidas e a questão da tolerância.

Mesmo que o cristão, diz Paulo, tenha certeza de seguir normas justas, ele não tem o direito de usar contra os infiéis a força física ou constrangimento moral.  Todos têm o direito de pensar de acordo com a consciência. Bem mais tarde o oscilante Rousseau,  que foi reformado e católico, exclama: “Consciência! Consciência! Instinto divino, imortal et celeste voz; guia seguro de um ser ignorante e limitado, mas inteligente e livre; juiz infalível do bem e do mal, tu realizas a excelência de sua natureza e a moralidade de suas ações”. (Emílio).

Autoengano
A consciência pode ser usada como instrumento de engano e autoengano, pode ser pervertida. Franz Stangl,  nazista igual a Mengele, ficou famoso ao proclamar: “Minha consciência é clara. Eu apenas cumpri o meu dever”. Mesma desculpa de Carl Schmitt  em Nuremberg: Hitler era governante legalmente estabelecido… Tais perversões da consciência a fazem rígida como o granito.
La Boétie,  contrário às guerras religiosas, afirma que “Nada é mais justo nem mais conforme às leis do que a consciência de um homem religioso temente a Deus, probo e prudente, nada é mais louco, mais tolo e mais monstruoso do que a consciência e a superstição da massa indiscreta”. La Boétie não condena a consciência: percebe o seu perigo quando enjaulada em crenças rígidas.
Ética

A ética sem consciência é reunião de costumes não raro injustos e preconceituosos. Os que pesquisam a ciência e a técnica podem viver segundo éticas supostamente alheias à consciência moral. Os resultados de sua ação trazem desastres como a bomba de Hiroshima e os experimentos médicos com radiação nuclear. Em data recente os EUA pediram desculpas oficiais à Guatemala pelas experiências realizadas em prostitutas e doentes mentais naquele país por volta de 1940. Tais agressões aos corpos alheios, cometidas pelos aventais brancos, foram efetuadas sem consentimento e consciência das vítimas. Não olvidemos o quanto os nazistas médicos (a expressão deveria ser um oximoro e não é) usaram doentes, judeus e outras presas para efetivar seus alvos “científicos”. A eugenia foi gerada nos campi norte-americanos, sendo exportada para a Europa e Alemanha totalitária. É impossível negar as informações trazidas por Edwin Black, no seu tremendo livro A guerra contra os fracos. A Eugenia e a campanha norte-americana para criar uma raça superior (São Paulo, A Girafa Ed., 2003). 

Em 1940, médicos que deveriam cuidar dos seres humanos os destruíram. “Usarei meu poder para socorro do adoecido, segundo o melhor da minha habilidade e juízo; evitarei, com ele, ferir ou enganar todo e qualquer homem”, diz o juramento de Hipócrates. Médicos infectaram de propósito, com gonorreia e sífilis, 1.500 pessoas na Guatemala. “Estamos escandalizadas por saber que essa pesquisa ocorreu sob o disfarce de ação de saúde pública”, disseram as secretárias de Estado dos EUA, Hillary Clinton, e da Saúde, Kathleen Sebelius. “Sentimos muito e pedimos desculpas a todos os infectados na pesquisa”. Barack Obama  pediu perdão ao presidente da Guatemala, Álvaro Colom.  “Regulamentos sobre pesquisas médicas em humanos nos EUA hoje proíbem esse tipo de violação terrível”, disseram Hillary e Sebelius. Elas afirmaram que será feita uma investigação sobre o caso, especialistas internacionais farão um relatório sobre padrões éticos nas pesquisas médicas.

Pesquisas em humanos
Na mesma época, pouco mais tarde, no próprio território norte-americano, “pesquisas” eram feitas em humanos por médicos com olhar frio. No caderno de horrores intitulado Risco Indevido, um especialista em bioética, respeitado nos EUA por organismos do governo e da sociedade, inclui mesmo oftalmologistas encarregados de verificar o que ocorreria com os olhos de soldados expostos à radiação atômica. Tais fatos se passaram de 1950 em diante.  Moreno recompõe, rumo ao pior, os círculos dantescos do Inferno. Notemos que os crimes indicados têm denominador comum: falta de alma dos pesquisadores e segredo. No ano de 1940 a Guatemala era dilacerada por ditadura militar, substituída (1944) pelo regime liberal derrubado em 1954 com impulso da CIA. As proezas médicas americanas existiram porque liberdades foram negadas aos guatemaltecos. 

Atentados
Os EUA possui em sua face mundial atentados graves aos direitos humanos e à ordem democrática. Seu apoio aos regimes que infestaram a América do Sul na Guerra Fria é justificado pela razão estatal, mas aquela razão é loucura e paranoia. Todos esses dados fazem pensar na diferença entre a teoria e a prática. Cientistas altamente capazes do ponto de vista teórico podem ser animalescos no âmbito prático. Se eles estão unidos a tiranos, como nos regimes totalitários ou ditatoriais, mesmo que impostos pela “maior democracia do mundo”, hecatombes ocorrem. 

IHU On-Line - Como é possível o exercício da política num tempo marcado pela violência?
Roberto Romano - Digamos, o exercício da política nos limites do Bem Comum, porque a política tirânica é violência pura. Recordemos o que diz Platão  na República sobre o tirano que, para exercer seu mando, realiza uma purga às avessas do corpo político. Ele discrimina os bons cidadãos, os expulsa ou mata, mas escolhe os péssimos para auxiliares do governo. Se pensarmos na razão de Estado, não existe política totalmente conforme ao Bem Comum, democrática e pacífica. Esta é uma das causas pelas quais Santo Agostinho  compara os poderes políticos aos piratas e ladrões. Remota itaque iustitia quid sunt regna nisi magna latrocinia? quia et latrocinia quid sunt nisi parua regna? (Sem a justiça… os reinos não seriam apenas grandes quadrilhas de bandidos? E uma quadrilha de bandidos não é só um pequeno reino?) (Cidade de Deus, IV, IV). Remota iustitia: o assunto inteiro da República platônica trata da justiça. 

Mas Sócrates  compara a Justiça a uma caça que deve ser perseguida. Ela sempre pode escapar pelas nossas pernas. Nosso tempo, o humano, desde que vivemos no planeta Terra, é de violência. Um apoio para a meditação encontra-se no terrível filme de Stanley Kubrick,  2001, uma Odisseia no Espaço. Para entender o conceito de homem fera hobbesiano, as cenas iniciais da película são eloquentes. Não existe poder humano sem violência. A tarefa democrática é atenuar ao máximo o uso da força contra os mais fracos. E, não raro, a tarefa é inglória. Um dirigente da Anistia Internacional certa feita me confidenciou: “professor, os defensores dos direitos humanos têm a quase certeza de enxugar gelo com toalhas quentes”. 

IHU On-Line - A partir desse paradoxo, como analisa o cenário político brasileiro, sobretudo no que diz respeito à última eleição presidencial e aos protestos ocorridos este ano?
Roberto Romano - O Brasil é o país da contrarrevolução, para cá trazida nos navios portugueses que fugiam do imperador francês. Aqui foi construído um Estado oposto às conquistas democráticas modernas da revolução inglesa do século XVII, que trouxe para a política e o direito público a exigência da accountability e da liberdade de expressão, e das revoluções ocorridas no século XVIII, a norte-americana e a francesa. Aqui imperam os privilégios dos operadores do Estado contra o cidadão comum. Como não existe de fato responsabilidade dos que operam o Estado, a população é intimidada pela polícia, pelo Fisco, pelas autoridades tirânicas.  Duas ditaduras sangrentas ensinaram a obediência servil aos povos brasileiros, de Norte a Sul. Quando os abusos dos poderosos atingem um clímax, as massas se manifestam, mas logo retorna o costume dos privilégios, dos favores entre compadres do poder. E as massas refluem para suas casas. As últimas eleições definiram a vitória do marketing político, com sua mensagem de medo acionada pelos propagandistas eleitorais. Perto dos marqueteiros, os sofistas invectivados por Platão residem em santuários. O povo continua tangido por novelas, futebol e demagogia que o distraem do mundo.

IHU On-Line - Como podemos compreender o ódio de classe voltado no Brasil aos mais pobres e às medidas tomadas para minimizar sua condição de vida?
Roberto Romano - Após quinhentos anos de “cristianismo” que escravizou e massacrou indígenas e negros, a ética social brasileira está pavimentada pelo medo das rebeliões dos fracos. Como toda sociedade contrarrevolucionária, o Brasil reserva lugares hierarquizados de privilégios: os mais copiosos para os operadores do Estado, os donos da economia, os funcionários administrativos e a polícia. Na base, o povo sem privilégios e direitos garantidos. Certa feita, para contestar juristas que ironizavam o nosso povo, dizendo ser ele composto por leigos, escrevi o artigo “Nós, os leigos”.  A universidade forma especialistas em tudo, menos na ética e na moral que respeitam o povo que arca com o Estado, paga impostos escorchantes e pouco recebe em troca. É de tal estilo a divisão da sociedade entre “leigos” e “competentes”.

IHU On-Line - Como analisa as manifestações de intolerância em nosso país (inclusive os linchamentos) em relação às mulheres, aos povos originários, aos afrodescendentes e aos homossexuais? Qual é a racionalidade que move os ódios contra essas pessoas?
Roberto Romano - Um país contrarrevolucionário que ignora os direitos do homem e da cidadania, que não pratica a responsabilidade dos governantes, que reconhece privilégios como legítimos, nada garante aos mais fracos como as mulheres, os afrodescendentes, os homossexuais. Além de um escrito incluído em meu livro Lux in Tenebris (“A mulher e a desrazão ocidental”), tratei o tema em aula do Curso de Capacitação em Direitos Humanos e Diversidade Sexual para Gestores Públicos do estado de São Paulo: “Homossexualidade, metafísica e morte. A honra masculina e o direito de matar”.  

IHU On-Line - Para Spinoza  o medo e a esperança são as armas mais eficazes para lidar com a população. Em que sentido o medo insuflado pela mídia cooptada alimenta a intolerância?
Roberto Romano - Vejamos o que diz um técnico fascista do direito, Carl Schmitt: "Nenhum Estado liberal deixa de reivindicar em seu proveito a censura intensiva e o controle sobre filmes e imagens, e sobre o rádio. Nenhum Estado deixa a um adversário os novos meios de dominação das massas e formação da opinião pública". O Estado, diz ainda Schmitt, deve controlar os meios de comunicação: “Os novos meios técnicos pertencem exclusivamente ao Estado e servem para aumentar sua potência”. O ente estatal "não deixa surgir em seu interior forças inimigas. Ele não permite que elas disponham de técnicas para sapar sua potência com slogans como "Estado de direito", "liberalismo" ou um outro nome" (Schmitt em 1932, cf. O. Beaud: Os Últimos Dias de Weimar). O fascismo da mídia “policial” que incita linchamentos tem a plena autorização do Estado e dos governos, sob a capa da “liberdade de imprensa”. Após duas ditaduras que inocularam o medo na população, os programas televisivos e radiofônicos exercem um mister importante da razão de Estado: apontar o próprio povo como inimigo a ser ferido, distraindo assim a massa dos arcana imperii que se forjam nos palácios. Em vez de se levantar contra os poderosos do Estado, a população aponta os dedos assassinos para si mesma. Tal é o auto-suicídio induzido pela mídia policialesca. 

IHU On-Line - Em que aspectos o entrecruzamento de diferentes crises é um dos esteios da situação de intolerância que experimentamos em termos civilizacionais?
Roberto Romano - A inflação é uma fértil sementeira de fascismo. O desemprego, a escassez de alimentos, a exclusão da vida pública, tudo converge para a insatisfação popular que se torna receptiva a todas as demagogias, políticas e religiosas. Note-se que, no mesmo passo em que igrejas cujos proprietários prometem milagres, sobretudo no campo do emprego e do progresso financeiro, elas pregam abertamente a intolerância às demais crenças. No fundo é a mesma lógica do esmigalhamento da concorrência por todos os meios, sobretudo os ilícitos. Do ódio “religioso” ao rancor de classe e político, um passo apenas precisa ser dado. A nova forma “conservadora” que toma conta da política brasileira anuncia muitas dores, o que só não é percebido pelos que não estudam a massas urbanas e modernas. Pregar a extinção de outras crenças e culturas é uma regressão cultural que equivale ao feito pelo nazismo e pelo estalinismo no século XX. ■

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Reportagem Por: Márcia Junges e Ricardo Machado
Fonte: IHU online, acesso 17/08/2015
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Pesquisa do Blog.




Nós, os leigos

Roberto Romano

"Leigos em Direito (...) têm a tendência de falar sobre ele com uma desenvoltura que não teriam se se tratasse de medicina ou de antropologia. Por isso, além de "julgar" os casos de acordo com o "clamor público" -que é o mesmo que leva a linchamentos-, ainda "julgam o julgador", esquecendo que, no Estado de Direito, paga-se um preço pela garantia de todos e de cada um, de tal forma que só após a conclusão de um processo regular é que se pode obter uma certeza jurídica." (Américo Lacombe, Celso Bandeira de Mello, Fábio Konder Comparato, Folha, 10/8)

Prezados juristas , porque fomos invocados no artigo de vossas senhorias, pedimos vênia para  nos apresentar. Nós, os leigos, temos uma história muito antiga. Na Grécia, éramos conhecidos como "laós", em oposição aos nossos chefes. É verdade que também fomos identificados por um nome de maior prestígio, "demos". As funções arriscadas da cidade eram nossas, especialmente a de lutar com nossas armas, prestando a chamada liturgia em prol dos concidadãos. Não temos muita idéia (nos apontam como ignaros) das causas que nos transformaram de povo em plebe. Primeiro nos alcunharam como "os muitos", opostos aos "melhores". Em Roma, disseram que éramos o "improbante populo", ou a "imperita plebs". Os grandes do universo nos bajulavam, mas tinham nojo de nossa presença.

Veio a Igreja Católica e passamos a constituir um tipo de gente menor, sem qualificações plenas para viver, por nossos próprios méritos, na terra. Recebemos todos o epíteto de "laicus", em oposição, como no Egito dos faraós, aos sacerdotes. Justiniano consagrou esse insulto singular no seu código. Dionísio Areopagita imaginou o universo como imensa hierarquia, dos arcanjos aos padres. Fomos relegados à base da escada celeste. Leigo era sinônimo de pura tolice. Certo dia, um poeta e crítico dos padres, Dante Alighieri, começou, com outros escritores, a louvar uma política não-sacralizada. O poder, dizia ele, deve ser secular. Sacerdotes e teólogos o perseguiram por meios interpostos.
A partir dessa época, as coisas pioraram para os donos do saber e do poder sacerdotal. Lutero incomodou muito aqueles senhores dizendo que nós, os leigos, éramos sacerdotes! Ainda ouvimos as frases do antigo monge: "Über das sind wir Priester". Deus nos acuda: a patuléia elevada ao estado sacerdotal! O reformador se referia, às vezes, à nossa pessoa como "o senhor todo mundo", com desprezo. Mas, a partir daí, homens de cabeça quente começaram a escrever (e nas doutrinas do direito!) que somos a fonte da soberania. E que, numa República, constituímos a vida. Tais homens não possuíam nem um átimo sequer do grande saber jurídico brasileiro do século 20, seu nome era modesto, como certo Althusius.


Os grandes do universo nos bajulavam, mas tinham nojo de nossa presença
No século 18, uma revolução foi feita para apagar os resquícios do mando clerical sobre a política. Nas mudanças trazidas por ela, o princípio de igualdade e de nossa soberania foi definido e proclamado. O nome de Rousseau surgiu em todas as bocas. Com ele, a condenação de todas as corporações que pudessem usurpar as prerrogativas nossas, os soberanos. Não mais cabia a distinção clerical entre "leigos" e "sapientes". Mas os contra-revolucionários do Termidor disseram que o povo nada sabia dos assuntos de Estado. Um deles, D'Anglas, retomou a idéia de que homens sem propriedades, de coisas ou de saberes, seriam nocivos à vida pública. E vieram os engenheiros positivistas da sociedade, os novos advogados. O romantismo conservador viu em nós "eternas crianças", como o poeta Novalis, grande entusiasta da ressacralização política.

Assistimos, os leigos, às lutas ao redor da boa definição republicana. De um canto, alguns nos jogam fora do Estado e de sua gerência, pois confiam apenas nas elites, treinadas em economia, leis, direito. De outro, existem os sonhadores, ou tolos, que asseguram ser a democracia o império dos leigos, um ideal sublime. Temos aliados na imprensa, entre promotores e procuradores públicos (afinal, público também se liga a povo...). Mas eles sempre recebem insultos dos sacerdotes jurídicos e econômicos, quando não dos eclesiásticos, para que deixem a mania de tudo pesquisar segundo os nossos interesses. Com isso, seguimos ignorando o nosso papel no mundo. A nossa única certeza é não mais confiar nas falas sagradas e "infalíveis" dos que fizeram esta monstruosidade que aí está, e que eles chamam "democracia" ou "Estado de Direito", expulsando o juízo do povo. Por falta de nossa confiança, tornou-se ingovernável a República. Mas essa é uma outra lenda, da qual falaremos um dia. Por enquanto fica o nosso testemunho do mais profundo respeito pelas vossas figuras jurídicas, apesar da arrogante amostra de sacralidade corporativa, evidenciada no vosso último artigo coletivo.


Roberto Romano, 54, filósofo, é professor titular de ética e filosofia política na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).
Fonte: Folha online de 21/08/2000

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