segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Statements

 
Outro dia escutava um sujeito que se gabava por trocar fraldas do filho. Imagina uma coisa dessa? Fiquei por alguns instantes pensando qual seria a razão para que um homem considerasse o ato de trocar fraldas algo solene como a Revolução Francesa. A frase, na sua íntegra, era: “divido o cuidado do meu filho com minha companheira porque sou contra a opressão da mulher”. Isso é um statement. Em inglês, a expressão significa fazer uma afirmação com valor moral, político, religioso. “Fazer um statement” é fazer do seu ato algo com significado maior que o simples ato.

Por isso nosso herói associava a lida com um bebê ao combate da opressão contra a mulher. Não se tratava apenas de trocar fraldas descartáveis (”descartáveis” graças a Deus!, imagine nosso herói lidando com as fraldas vintage de pano!), mas sim de se colocar ao lado dos jacobinos nessa luta pela igualdade, liberdade e fraternidade. Imagino os jacobinos trocando fraldas antes de mandar algumas dezenas de homens e mulheres para a guilhotina, onde a igualdade de gênero sempre existiu!

Atente para o fato de que nosso herói usa expressões como “companheira” para não soar como os “machistas” que chamam suas mulheres de “minha mulher”, assim como se ela fosse um objeto. Ainda que a expressão “minha mulher” carregue todo um sentido erótico invisível para almas que fazem dos laços sexuais statements políticos. E mais: “levo meu filho à escolinha porque sou a favor da igualdade de gênero e não sou um reacionário que fica assistindo ao jogo enquanto minha escrava faz a mamadeira”. Incrível como fazer mamadeiras se tornou um statement político revolucionário.
Viver fazendo statements é uma confissão de uma vida brocha
E que tal comer alface em nome da igualdade entre humanos e animais? Qualquer um pode detestar carne, mas comer alface como forma de combate à opressão dos bois é meio ridículo, não? Alguns exigem galinhas alegres em sua dieta. Bois mortos com amor, franguinhos que crescem livres pelo quintal e conheceram sua mãe antes de virar filés de frango.

Temo que fatos assim sejam fruto do número elevado de opções que uma sociedade de mercado rica produz. Quando se tem muito do que se quer, perde-se o tesão pelas coisas. Viver fazendo statements é uma confissão de uma vida brocha. Um dos maiores problemas do capitalismo é o tédio que ele causa em quem colhe seus frutos. A pobreza é uma espécie de proteção negativa e cruel contra o tédio da felicidade. Não é outra a razão da tradição de afirmar que o sofrimento molda o caráter.

Numa sociedade saturada de consumo, a realização do desejo de modo contínuo destrói qualquer qualidade de caráter. Todo mundo é banal passando o Visa. A saída é continuar consumindo, mas transformar banalidades, como trocar fraldas, coisas que muitos homens fazem há décadas no silêncio dos seus lares e na invisibilidade do mundo das virtudes verdadeiras, em um statement contra a opressão da mulher. E, com o passar dos anos, os homens ficam cada vez mais bobos, como crianças de Pavlov esperando que “suas companheiras” batam palmas para as mamadeiras feitas em nome da igualdade de gênero.

Quer outro exemplo? Algumas pessoas fazem do turismo uma forma de statement. Ir a Cuba porque lá, supostamente, se resiste ao capitalismo, mesmo que essa resistência seja às custas dos coitados dos cubanos que vivem à beira da miséria ideologicamente justificada para riquinhos entediados com o mundo do capital.

A vida saturada de statements é o que está destruindo o cinema americano (além de seus super-heróis requentados) e também a teledramaturgia brasileira. Cada personagem, cada beijo é um statement puritano acerca de como as pessoas devem se sentir diante do mundo. Hoje, a teledramaturgia “cabeça” brasileira é um desfile entediante de puritanismo correto.

Aposto que, diante de uma situação de perigo, esses “companheiros” contra a desigualdade de gênero serão os primeiros a bater em retirada. E, depois, trarão argumentos psicológicos para sua fuga. Ou farão statements sobre o direito de os homens terem medo. Igualdade de gênero também?
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Luiz Felipe Pondé, escritor, filósofo e ensaísta, é doutor em Filosofia pela USP e professor do Departamento de Teologia da PUC-SP e da Faculdade de Comunicação da Faap. 
Fonte: Folha online, 10/08/2015
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