quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Valter Hugo Mãe: “Na solidão, não há humanidade”

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Em Porto Alegre, escritor debate sua obra, vê Europa perdida entre guerra e ódio e lastima pobreza do individualismo: “Ninguém encontra justificação para vida dentro de si mesmo”

Por Katia Marko

Meu primeiro contato com a literatura do escritor português nascido em Angola Valter Hugo Mãe foi em março deste ano, quando li numa sentada O Filho de Mil Homens. Agora, quando tive a oportunidade de vê-lo pessoalmente no Fronteiras do Pensamento, na noite desta segunda-feira (3/8) em Porto Alegre, só reafirmei minha admiração. Tal qual em seus livros, sua fala é carregada de poesia, mas com a força de um punhal.

Valter escreveu um texto inédito para a sua participação no encontro chamado “Síndrome do Bom Rapaz”. A proposta era refletir sobre “Como viver juntos?”. Mais do que isso, o escritor mergulhou em sua vida. Contou passagens da infância, adolescência e momentos importantes que, segundo ele, o transformaram em um bom rapaz. E todas as consequências sofridas com isso. Arrancou risadas da plateia ao dizer que a síndrome do bom rapaz é a sua mais grave patologia, mas também emocionou e, com certeza, tocou o coração de muitos, assim como o meu.

“Tomei nota de umas ideias num texto para esta comunicação inicial. É um texto estranhíssimo e inédito que escrevi para ler hoje e, antes de ler o texto, eu quero dizer algumas coisas: estou muito convencido, e meus livros já têm mostrado isso, de que a justificação para nós está nos outros. Ninguém encontra uma justificação para sua vida dentro de si mesmo. Nós intuímos as coisas em nós mesmos, mas é preciso lembrar que a palavra ‘justificação’ vem de justiça. Justificar significa mostrar porque é justo. Aquilo que faz com que seja justo enfrentarmos a vida são os outros. Precisamos acabar com essa tirania da individualidade.”

Como o escritor destacou, tendo como ponto de partida a certeza de que não somos gente sem uma imersão no coletivo, respondeu a questão inicial do encontro afirmando que “não há como não viver juntos, não há como ter humanidade na solidão”. Ele trata mais profundamente sobre isso em seu último livro A Desumanização, onde diz que quem opta pela solidão, opta por não ser gente.

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Mãe fala em Porto Alegre, no evento “Fronteiras do Pensamento”, 
em 3 de agosto. Foto: Emílio Speck

Apesar da sua esperança e sua forma de ser, classificada por ele, como uma resistência a que a humanidade termine, Valter fez fortes críticas ao desaparecimento do outro e a individualização extrema. Também lamentou o forte retrocesso vivido na Europa. A retomada de ideias fascistas, nazistas, xenófobas e a perseguição às pessoas diferentes estão acabando com a Europa. “A Europa está outra vez vivendo o ódio. Estamos lembrando porque estávamos sempre em guerra. Se a União Europeia se desfizer, vai ser horrível para os países pequenos, mas acho inevitável. A perseguição à Grécia é inadmissível. A economia não pode decidir que as pessoas vão morrer de fome”, destacou.

O escritor relatou ainda que quando esteve na Grécia a pouco tempo, cerca de 25% da população vivia sem luz e água em casa, porque não tinha como pagar. “Se isso for o resultado, a Europa não pode existir”. Também se mostrou muito incomodado com a publicização das ideias fascistas e nazistas. “Jamais participaria de um debate com alguém da extrema direita. Acredito que tudo que diminui o direito do outro não é possível discutir.”

A naturalização da maldade e das atrocidades foi outra perplexidade explicitada pelo escritor. “Não aceito que sejam qualidades humanas. Na minha opinião, quando desenvolvermos uma conduta madura com respeito ao lugar do outro não precisará mais polícia. O amor é não haver polícia”. Para Valter, o problema de ser adulto e sofrer da síndrome do bom rapaz é não conseguir se afastar de alguém que lhe faça mal. “A proibição que me impus de odiar alguém. Mas podemos escolher, mesmo nas agruras, ser de boa fé. É muito mais fácil passar a agredir do que elogiar. É mais difícil exercermos a generosidade. E isso não é um catolicismo sem Cristo, faz parte da noção de plural, da ideia de ser associativo”.

Para finalizar, o escritor se afirmou feminista e disse que tem uma sensação que os homens são piores que as mulheres, pois elas tem uma aproximação maior com a amorosidade. “As mulheres ainda não mandaram no mundo realmente, e as que mandaram foram uma porcaria, assim como Angela Merkel, da Alemanha.

Após sua fala, Hugo Mãe respondeu às perguntas do público, dentre elas, a uma enviada pelos seguidores do Fronteiras do Pensamento nas mídias digitais. Desta vez, a pergunta selecionada veio de um grande admirador do autor, Rodrigo Tomé:

Em entrevista, você disse que iniciou sua carreira como romancista a partir de uma angústia: a impossibilidade de escrever um projeto de mestrado. Pessoalmente, li todos os seus romances, estou cursando o mestrado por conta dessas leituras e minha dissertação será sobre um de seus romances, O filho de mil homens. Queria saber como é atualmente sua relação com academia e como você percebe a recepção de sua obra pela crítica especializada?
Valter Hugo Mãe: A minha relação com a academia é terrível. Eu quero fazer um doutoramento agora, um doutorado, como vocês dizem, e eu tenho até vergonha, porque eu estou tão defasado do que as pessoas que estudam continuamente sabem. Eu fico tão perdido.

Tenho vergonha, porque as pessoas sabem que eu sou escritor, algumas estudaram minhas obras. Como eu vou entrar na universidade e ser idiota? (risos) Eu vou ter uma turma, eu vou ter uma classe e depois eu faço uma pergunta ridícula para a professora? É insuportável. As pessoas vão ficar pondo no Facebook, “Valter Hugo Mãe perguntou a coisa mais ridícula que passou na academia do Porto.” (risos)

Enquanto escritor, a gente fica muito visto, deixa de ser um estudante com direito à ignorância. O escritor perde o direito à ignorância. As pessoas perguntam tudo, qualquer coisa, como se eu soubesse. (risos e aplausos da plateia). Isso é muito duro. Muitas das vezes a gente volta pra casa muito embaixo, se perguntando “será que eu devia saber?”, “será que eu devia ter estudado aquilo mesmo?”, “será que eu devia ter lido aquele livro?”

Eu posso dar um exemplo de uma situação em que eu fiquei envergonhado, mas só percebi a vergonha depois. Um jornalista, aqui no Brasil, perguntou, depois de ler meu romance, o Remorso de Baltazar Serapião, o que eu achava do Vidas Secas. E eu disse “É… Eu não li.” (risos) Eu tenho de achar alguma coisa? Eu não li. E eu fico tão desiludido. A cara do jornalista foi assim, “nossa, mas você é só um idiota. Como você não leu Vidas secas?” (risos) E eu me senti tão humilhado, que eu pensei que havia qualquer coisa que eu precisava resolver. Eu comprei Vidas Secas urgentemente, fui ler e… Senti mais vergonha ainda. Como é que eu não li o Vidas Secas? Como posso ter tido a ousadia de publicar um livro no Brasil sem ter lido o Vidas Secas?

Mas é isto, eu provavelmente vou ter esta ignorância sobre muita coisa que vocês conhecem e que eu não vou conhecer nunca, mesmo depois do doutorado.

Em outra pergunta, Eduardo Wolf questionou Valter Hugo Mãe sobre a questão da transcendência, muito forte em seu primeiro romance, o nosso reino, e reforçada logo no início de sua fala, quando contou à plateia que teve uma doença crônica e grave nas mãos quando criança, doença esta que só foi curada após sua tia o levar para ver São Bento em uma capela. Teria sido este episódio, diz Hugo Mãe, que o levou a se tornar um bom rapaz, devido à gratidão pela cura. Veja abaixo:

Você abriu sua conferência lembrando um episódio muito anedótico e folclórico em certo sentido da sua vida pessoal, mas também evocando um tipo de presença de temas de deus e da transcendência na sua vida. No entanto, não parece bastar como o sentido da vida que você anunciou e no qual sua fala quase tocaria. Qual o lugar dessa transcendência, então, se ela não consegue nos dar essa resposta?
Valter Hugo Mãe: Acho que não podemos justificar a nossa presença no além. Seria quase injusto que a experiência de estarmos aqui valesse só depois da morte. Como se precisássemos morrer para criar uma espécie de satisfação ou de equilíbrio. Eu acho que isso é completamente o contrário do que nos compete. A gente tem que conquistar, que angustiar-se com essa busca antes.

Eu vejo a morte como uma grande oportunidade. A morte, das duas uma: ou nos vai levar à transcendência e nós vamos todos viver felizes nas nuvens, numa temperatura parecida com a do Brasil, onde o inverno é ótimo… Ou existe essa transcendência de fato e alguém nos espera eventualmente ou, então, não existe rigorosamente nada e nós vamos sossegar absolutamente, porque a gente não vai ter mais angústia, não vai ter nada, a gente não vai ter, não vai ser.

Por isso, a morte parece-me sempre uma coisa que nós tememos porque ela não nos está revelada, mas eu não tenho dúvida que ela só pode ser isto. Ou não é rigorosamente nada e por isso não dói, não vai doer estar morto – um morto não sofre mais – ou, então, existe uma transcendência e ela tem que ser absolutamente maravilhosa.

Como alguém que precisa de respostas e que procura respostas, começar a escrever ao encontro da transcendência me pareceu quase inevitável. E muito devido à minha biografia e àquilo que as pessoas esperavam de mim. Era inevitável. A primeira pessoa que eu queria convocar era deus. A primeira pessoa que eu precisava que estivesse diante de mim, que se responsabilizasse pelas respostas que eu procurava era deus.

Por isso, O Nosso Reino, meu primeiro romance, é todo uma espécie de provocação a deus e, ao mesmo tempo, é um ganho de consciência, de que, antes de convocar deus, nós precisamos convocar os homens. Eu costumo dizer que a gente só tem legitimidade para acreditar em deus depois de acreditar nos homens, porque esse é de fato nosso desafio.
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Reportagem Por Katia Marko
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