quinta-feira, 24 de setembro de 2015

“A Dilma é simplesmente uma trapalhona”

Antônio Delfim Netto
Economista, político e ex-ministro da Fazenda, da Agricultura e do Planejamento

Entrevista com Antônio Delfim Netto*
 

Eliane Cantanhêde

Delfim diz que a presidente é honesta, mas “tem uma visão do Brasil que não coincide com o País”, classifica a proposta de Orçamento como “barbeiragem” e o pacote fiscal como “fraude”


O ex-ministro, ex-deputado e afiadíssimo economista Delfim Netto, 87 anos, 24 deles no Congresso, como deputado, desfia uma série de adjetivos demolidores contra o pacote fiscal do governo e é implacável com a presidente Dilma Rousseff: “Ela é simplesmente uma trapalhona”.

Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, Delfim classificou o envio de um Orçamento com déficit ao Congresso como “a maior barbeiragem política e econômica da história recente do Brasil” e disse que o pacote é “uma fraude, um truque, uma decepção, não tem corte nenhum, é uma cobra que mordeu o rabo”.

Quanto ao coração do plano: “A CPMF é um imposto cumulativo, regressivo, inflacionário, tem efeito negativo sobre o crescimento e quem paga é o pobre”. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Como o sr. vê a situação hoje?

Delfim Netto: Com muita preocupação. As pessoas sabem que a presidente é uma mulher com espírito muito forte, com vontades muito duras, e ela nunca explicou porque ela deu aquela conversão na estrada de Damasco [como sucedeu ao apóstolo Paulo, em Atos dos Apóstolos]. Ela deveria ter ido à televisão, já no primeiro momento, e dizer: “Errei. Achei que o modelo que nós tínhamos ia dar certo e não deu”. Mas, não. Ela mudou sem avisar e sem explicar nada para ninguém. Como confiar?

Como define a conversão na estrada de Damasco?

Delfim Netto: Ela mudou um programa econômico extremamente defeituoso, que foi usado para se reeleger. Em 2011, a Dilma fez um ajuste importante, aprovou a previdência do funcionalismo público, o PIB cresceu praticamente no nível do Lula. Mas o vento que era de cauda e que ajudou muito o Lula tinha mudado e virado um vento de frente.

Os ventos internacionais?

Delfim Netto: Sim. Então, ela foi confrontada em 2012 com essa mudança e com a expectativa de que a inflação ia aumentar e o crescimento ia diminuir e ela alterou tudo. Passou para uma política voluntarista, intervencionista, foi pondo a mão numa coisa, noutra, noutra, noutra... Aquilo tudo foi minando a confiança do mundo empresarial e, de 2012 a 2014, o crescimento vai diminuindo, murchando.

E o uso na reeleição?

Delfim Netto: A tragédia, na verdade, foi 2014, porque ela usou um axioma da política, que diz que “o primeiro dever do poder é continuar poder”. No momento em que ela assumiu isso, ela passou a insistir nos seus equívocos. Aliás, contra o seu ministro da Fazenda, o Guido Mantega, que tinha preparado a mudança, tanto que as primeiras medidas anunciadas pelo Joaquim Levy já estavam prontas, tinham sido feitas pelo Guido.

Então, o sr. discorda da versão corrente de que a culpa foi do Mantega?

Delfim Netto: O Guido não tem culpa nenhuma. E, para falar a verdade, nenhum ministro da Fazenda da Dilma tem culpa nenhuma, porque o ministro da Fazenda é a Dilma, é ela. E o custo da eleição é o grande desequilíbrio de 2014.

Qual o papel do Levy?

Delfim Netto: Como a credibilidade do governo é muito baixa, o ajuste que ele fez encontrou muitas dificuldades, não teve sucesso porque não foi possível dizer que o ajuste era simplesmente uma ponte. 
Joaquim Levy
Atual ministro da Fazenda
A presidente não vive dizendo que é só uma travessia?

Delfim Netto: Travessia sem ponte?

E o pacote fiscal?

Delfim Netto: O primeiro equívoco mortal foi encaminhar para o Congresso uma proposta de Orçamento com déficit. Foi a maior barbeiragem política e econômica da história recente do Brasil. A interpretação do mercado foi a seguinte: o governo jogou a toalha, abriu mão de sua responsabilidade, é impotente, então, seja o que Deus quiser, o Congresso que se vire aí.

A briga interna do governo não é um complicador?

Delfim Netto: A briga interna ocorre em qualquer governo, mas o presidente tem de ter uma coisa muito clara: ele opta por um e manda o outro embora. Um governo não pode ter dentro de si essas contradições, senão vira um Frankenstein.

Quem tem de sair, o Levy, o Nelson Barbosa ou o Aloizio Mercadante?

Delfim Netto: Quem tem de sair é problema da Dilma, mas quem assessorou isso do Orçamento com déficit levou o governo a uma decisão extremamente perigosa e desmoralizadora e isso produziu um efeito devastador.

De tudo o que o sr. diz, conclui-se que o ponto central da crise é que Dilma é uma presidente fraca?

Delfim Netto: Ela tem uma visão do Brasil que não coincide com o Brasil.

Por que o sr. defendia o aumento da Cide, não a recriação da CPMF?

Delfim Netto: O aumento da Cide seria infinitamente melhor. CPMF é um imposto cumulativo, regressivo, inflacionário, tem efeito negativo sobre o crescimento e quem paga é o pobre mesmo. Ele está sendo usado porque o programa do governo é uma fraude, um truque, uma decepção – não tem corte nenhum, só substituição de uma despesa por outra e o que parece corte é verba cortada do outro. Dizem que vão usar a verba do sistema S. Ora, meu Deus do céu! R$ 1 do sistema S [SEBRAE, SESI, SENAC etc.] e produz infinitamente mais do que R$ 1 na mão do governo. Alguém duvida de que o governo é ineficiente?

A presidente Dilma...

Delfim Netto: Acho que não, nem ela. Ela sabe disso, só não tira proveito.

E a Cide?

Delfim Netto: A CPMF é coisa do século 19, a Cide é do século 21, porque você corta consumo de combustível fóssil, reduz emissão de CO2 e vai salvar um setor que você destruiu, o sucroalcooleiro. Tem 80 empresas quebrando por conta dos erros da política econômica. Na hora que você fizer isso, toda essa indústria renasce.

Quais as chances de o pacote passar?

Delfim Netto: Eles vão ter de negociar com a CUT e com o PT, que é o verdadeiro sindicato do funcionalismo público. Então, é quase inconcebível e vai ter uma greve geral que vai reduzir ainda mais a receita. É uma cobra que mordeu o rabo. O aumento de imposto é 55% do programa; o corte, se você acreditar que há corte, é de 19%; e a substituição interna representa 26%. Ou seja, para cada real que o governo finge que vai economizar com salários, ele quer receber R$ 3 com as transferências e o aumento de imposto. No fundo, o esforço é nulo.

O sr. diz que os grandes problemas começam em 2014, mas muitos analistas respeitados dizem que começam antes. Qual a responsabilidade do governo Lula?

Delfim Netto: Até 2011, o vento de cauda era de tal ordem, a entrada da China foi de tal ordem, que dava a sensação de que você tinha entrado no paraíso e o Lula aproveitou bem para um crescimento mais inclusivo, mais equânime. Depois, eu estou convencido de que foi a intervenção extravagante, extraordinária, exagerada no sistema econômico que gerou tudo isso. Mexeu na eletricidade, mexeu nos portos, foi criando um estado de confusão que matou o “espírito animal” dos empresários, com uma queda dramática do nível de investimento e do nível de crescimento.

A diferença é que o Lula nunca fez questão de ser de esquerda, mas a Dilma, que vem do velho PDT brizolista, nacionalista e estatizante, tem esse compromisso?

Delfim Netto: O Lula é um pragmático, uma inteligência extraordinária. Já a Dilma tem, sim, o velho problema do engenheiro, o engenheiro Brizola, que por onde passou destruiu tudo, destruiu de tal jeito o Rio Grande do Sul que ninguém mais salva. Ela tem uma ideia intervencionista, realmente não acredita no sistema de preços. Veja essa escolha dela no pré-sal, é inteiramente arbitrária. Foi dar para a Petrobrás uma tarefa muito acima do que ela é capaz. Nada mais infantil no Brasil do que a sua esquerda, facilmente manobrável.

Quem é a esquerda no Brasil hoje?

Delfim Netto: No Brasil de hoje, esquerda e direita são sinais de trânsito. O fato é que a Dilma é uma intervencionista e foi a crença de que ela não mudou, e de que a escolha do Joaquim foi simplesmente um expediente para superar uma dificuldade, que não deu credibilidade ao plano de ajuste.

Além de perder credibilidade junto aos empresários, a presidente também está perdendo apoios na base social do PT.

Delfim Netto: Como ela não explicou que errou e por que iria mudar a política econômica, o 1/3 que votou nela se sentiu traído de verdade e o 1/3 que votou contra ela disse: “Viu? Eu não disse?”. Sobraram para ela só 8%.

Em quem o sr. votou?

Delfim Netto: Na Dilma. Mas acho que o Aécio era perfeitamente “servível”. Teria as mesmas dificuldades que a Dilma enfrenta, porque consertar esse negócio que está aí não é uma coisa simples para ninguém, mas ele entraria com uma outra concepção de mundo, faria um ajuste com muito menos custo e a recuperação do crescimento teria sido muito mais rápida.

Se a presidente está com 8% de popularidade, pior até que o Collor, o impeachment seria uma solução?

Delfim Netto: Se houver algum desvio de conduta materialmente provado, o impeachment é um recurso natural dentro da Constituição. Então, não há nenhuma quebra de institucionalidade, não tem nenhum problema. Agora, o Brasil não é nenhuma pastelaria e não é nenhuma passeata cívica de verde e amarelo nem panelaço que decide se vai ter ou não impeachment. Não há recall de presidentes. A sociedade votou, que pague os seus erros para aprender e volte em 2018. Está em segunda época, volte em 2018 para fazer nova prova.

Então, o sr. não votaria na Dilma novamente em 2018, se ela pudesse ser candidata?

Delfim Netto: Não, primeiro porque ela não pode ser candidata. É preciso dizer que eu acho a Dilma absolutamente honesta, com absoluta honestidade de propósito, e que ela é simplesmente uma trapalhona.

Numa eventualidade, o vice Temer seria adequado para a Presidência como foi o Itamar Franco?

Delfim Netto: Acho que sim. Nós somos muito amigos. O Temer tem qualidades, é uma pessoa extraordinária, um gentleman e um sujeito ponderado, tem tudo, mas eu refugo essa hipótese enquanto não houver provas, e vou te dizer: ele também.
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 * Economista e professor emérito da Faculdade de Economia e Administração (FEA) da Universidade de São Paulo. Ocupou os ministérios da Fazenda, da Agricultura e do Planejamento. Foi deputado federal por cinco mandatos.
Fonte: O Estado de S. Paulo – Economia – Domingo, 20 de setembro de 2015 – Pg. B5 – Internet: clique aqui.

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