domingo, 18 de outubro de 2015

Hemingway e as guerras

 Mario Vargas Llosa*
 Sua vida foi intensa, violenta, rondando sempre a morte. Alimentou seus contos, novelas e reportagens com essas experiências, de uma maneira tão direta que sua obra literária é, nem mais nem menos, uma autobiografia mal dissimulada

Eu sabia que Hemingway escrevia de pé, em um atril, como Victor Hugo, mas não que o fazia a lápis e em cadernos escolares pautados, com uma caligrafia tão tortuosa que até mesmo em uma tela que aumenta várias vezes seu tamanho fica difícil decifrar seus manuscritos.

A exposição da Biblioteca Morgan de Nova York dedicada a Hemingway e às duas guerras mundiais permite acompanhar detalhadamente boa parte de sua vida e do seu trabalho e descobrir, por exemplo, que esse homem de ação era também minucioso ao escrever, quase um flaubertiano, pois refez nada menos do que dezessete vezes o começo do seu melhor romance, O Sol Também se Levanta. A coleção de fotografias que documenta sua vida é tão completa que é possível, por assim dizer, ver sua transformação, desde o quase adolescente que era quando participou como voluntário, dirigindo uma ambulância, da frente italiana da Primeira Guerra Mundial, onde uma bomba quase o matou – retiraram mais de uma centena de estilhaços de suas pernas e costas –, até a ruína humana que era, já sem esperanças e memórias, quando se matou com um tiro de fuzil na cabeça em Idaho, aos 62 anos de idade.

Sua vida foi intensa, violenta, com a morte sempre rondando, não só nas guerras nas quais esteve como correspondente e combatente, mas também nos esportes que praticava – o boxe, a caça, a pesca em alto-mar –, nas viagens arriscadas, nos desarranjos conjugais, nos prazeres ventrais e nos rios de álcool. Viveu tudo isso e alimentou seus contos, romances e reportagens com essas experiências, de uma maneira tão direta que, pelo menos em seu caso, não há nenhuma dúvida de que sua obra literária é, entre outras coisas, nem mais nem menos do que uma autobiografia mal dissimulada.

Na exposição aparecem as famosas instruções dadas aos redatores pelo diretor do pequeno jornal local, o Kansas City Star, onde Hemingway, em plena adolescência, iniciou sua carreira jornalística e que, segundo os críticos, foram decisivas para forjar seu estilo e sua metodologia narrativa: eliminar tudo o que fosse supérfluo, ser preciso, transparente, claro, neutro, e preferir sempre a frase simples e direta à barroca e empolada. Tudo isso é provavelmente verdade, mas não é suficiente, já que o detalhe central e fundamental de sua técnica, a evasão, o dado escondido que da ausência e das trevas impregna poderosamente o relato e o satura de sugestões e mistério, talvez tenha sido inventado por ele mesmo, no dia em que decidiu suprimir o fato principal do conto que escrevia: que, no final da história, o personagem se matava. Nenhum dos escritores da sua geração – uma geração de gigantes, como Faulkner, Dos Passos, Scott Fitzgerald – usou como ele essa omissão loquaz, o dado escondido, obrigando o leitor a participar ativamente com sua imaginação para completar o relato, para arredondá-lo.

Era um consumado escritor de cartas, como a declaração
 de amor a Mary, sua última esposa

Li muito Hemingway na minha juventude, e foi um dos primeiros autores que pude ler em inglês, quando ainda aprendia essa língua, mas depois fui pouco a pouco me desinteressando e cheguei a acreditar que não era tão bom quanto me parecia quando jovem. Até que reli O Velho e o Mar para escrever sobre ele e me convenci de que era uma obra-prima absoluta, como Moby Dick e O Morro dos Ventos Uivantes. É emocionante ver na Biblioteca Morgan as fotos do pescador cubano que foi o modelo do herói dessa novela e o que a seu respeito diz Hemingway a seus amigos nas cartas que escrevia enquanto recriava – corrigindo sem trégua – a odisseia do velho pescador lutando a golpes de remo contra os tubarões que roubam o enorme peixe-espada que ele havia conseguido pescar.

Era um contumaz escritor de cartas, e algumas das exibidas na exposição, transcritas à máquina para torná-las legíveis, como a declaração de amor a Mary, a última de suas esposas, são comoventes. E é apaixonante seu intercâmbio epistolar com Scott Fitzgerald, que leu o manuscrito de O Sol Também Se Levanta e propôs cortes implacáveis no texto, aos quais Hemingway resistia com alegações ferozes.

O título da exposição foi muito bem escolhido, não só porque Hemingway, de fato, viveu de perto – de dentro – as duas grandes carnificinas do século XX, além das outras guerras mais localizadas, como a Guerra Civil espanhola, como também porque toda a vida do autor de Adeus às Armas e Por Quem os Sinos Dobram foi uma contínua contenda contra inimigos pessoais, como a decadência intelectual, a neurose, a impotência e o álcool, que acabaram por derrotá-lo.

Aqui é possível ler, na The New Yorker, o terrível artigo de Edmund Wilson, comentando As Verdes Colinas da África, que mais do que uma resenha parece um epitáfio (“A única coisa clara neste livro é que a África está cheia de animais e que o autor gostaria de matar todos eles com seu fuzil”) pelo qual Hemingway nunca lhe perdoaria, sobretudo porque sabia que esse rápido declínio do seu poder criativo apontado pelo grande crítico norte-americano era verdade.

Toda sua vida foi uma contínua guerra contra 
a neurose, a impotência e o álcool

A exposição dá um jeito de incitar o espectador a reler Hemingway (acabo de ler novamente com imenso prazer essa pequena joia que é The End Of Something) e também para retificar o mito que fazia dele quase a encarnação do aventureiro feliz, testando-se a si mesmo, enquanto pulava de paraquedas, trocava socos num ringue com um peso-pesado profissional, caçava leões, toureava novilhos, se casava e descasava (“Não me apaixono, me caso”, contou em uma entrevista) e, no tempo livre que essa vida agitada lhe deixava, transpirava contos e romances.

Na verdade, sempre foi um homem torturado, com manias curiosas, como guardar todas as entradas das touradas às quais assistiu e todas as passagens – de avião, trem e ônibus – das viagens que fez pelo mundo, com períodos de paralisante depressão que tentava esconjurar com bebedeiras. Estas só o afundavam ainda mais nessa melancolia cercada pelo estigma ancestral do suicídio. Foi um dos grandes escritores do seu tempo, sem dúvida, mas também um dos mais desiguais, já que, junto com magníficos romances como Adeus às Armas e Paris É Uma Festa e muitos de seus contos, escreveu também inexplicáveis disparates como Do Outro Lado do Rio, Entre as Árvores e uma peça teatral semistalinista ambientada na Espanha: A Quinta-Coluna.

Você sai da Biblioteca Morgan com um pouco de tristeza: preferia que o Hemingway da mitologia, o aventureiro paradigmático que contava as coisas que vivia, fosse o real, e não esse personagem contraditório que, depois de um esplendor brilhante e passageiro, se transformou em uma caricatura de si mesmo e se matou porque já não tinha forças para continuar se inventando nem para inventar histórias.
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Fonte: http://brasil.elpais.com/brasil/2015/10/16/opinion/1444999026_271600.html
Foto: FERNANDO VICENTE

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