sábado, 7 de novembro de 2015

Maria Rita Kehl e o aborto nosso de cada dia

O assunto sobre direito ao aborto reapareceu. A bancada conservadora no Congresso quer punir até quem toma a pílula do dia seguinte? Como fica?

Maria Rita Kehl escreveu em espaço cedido pelo psicanalista Contardo Calligaris, na Folha:

Maria Rita Kehl e o aborto nosso de cada dia“Já é uma vida humana, dizem os membros da bancada da repulsa ao sexo. Sim, é uma vida. Mas se fosse humana, a sociedade teria criado ritos para incluí-la na cultura –batizar e sepultar os óvulos fecundados, por exemplo, quando expulsos por abortos espontâneos. Parece um absurdo, não é? Parece uma ideia bizarra. Assim é: porque de fato não os consideramos ainda como seres humanos. Nomeação e sepultamento são práticas culturais que nos definem como humanos. Nenhuma delas se aplica a essa forma incipiente de vida.” (Folha de S. Paulo, 05/11/2015).

Espera lá! Não entendi! Ela concorda com os seus adversários que o óvulo fecundado é uma vida e, depois, diz  que não é uma vida humana e, então, por isso, é possível extinguir a vida? Ou seja, não sendo vida “humana”, não é assassinato extingui-la! Mas é uma vida animal, feita por dois humanos? Não! Não é! É uma vida. Mas, como o critério é cultural-pragmático, ou seja, seria vida humana se tivesse velório para óvulo fecundado, então podemos extingui-la. É isso? Está confuso, Maria Rita. Confuso mesmo. Não dá para engolir.

Todas as vezes que os apoiadores da descriminalização do aborto entram pela via metafísica, induzidos pelos seus adversários, caem em uma armadilha. É muito estranho que nunca percebam isso. Aliás, isso parece ser um problema da esquerda:  sempre acha que suas posições estão tão corretas que nunca se importa de ver se elas são sustentáveis filosoficamente, e então entram no campo de jogo do adversário sem consultar as regras, já feitas pelos próprios adversários. A esquerda, já faz tempo, vem pecando por prepotência intelectual.

O debate sobre o aborto não tem qualquer solução no campo metafísico. Disputar quando começa a vida ou se se temos ou não vida humana não conduz a lugar algum. Pode-se dizer que Maria Rita tentou escapar disso, ao invocar o critério cultural-pragmático que, em geral, não me faz mal aos olhos. Mas, nesse caso, o critério parece tirar o debate do campo metafísico para ceder a ele novamente. A ideia de falar do que é vivo e do que não é torna-se tão ruim quanto falar do que é “vida humana” e o que é simplesmente “vida”.

Vejamos: se não temos vida humana, ou nenhuma vida, então podemos destruir o que temos na frente? Um monumento histórico não é mais importante, pois não sai do útero de ninguém, então, pode ser destruído. É isso?

Também rompemos com o preceito liberal, que inclusive está na nossa Constituição, de defesa dos mais fracos? Defendemos cachorros de maus tratos, pois os amamos, mas também por que estão à mercê dos mais fortes e cruéis. Fazemos isso também com crianças pequenas. Mas, se elas estão dentro do útero, então temos de saber o tempo que estão lá, e se ao saírem não provocarem velório, então concluímos que o tempo não era o tempo ideal, e estávamos então liberados de defendê-las? É isso? Estranho também.

Na verdade os defensores do direito ao aborto só ganham alguns pontos quando invocam o problema da prisão. Aí sim, eles têm pontos a favor. É realmente horrível ver uma pessoa fazer um aborto, estar fragilizada de todos os lados, inclusive por ter optado por solução tão drástica, e ainda por cima perder tudo ao se tornar uma criminosa. Por essa via, aí sim, o time da Maria Rita pode ganhar algum tento. Fora disso, só perde.

Desse modo, insisto, se os do time da Maria Rita quiserem ao menos tentar empatar o jogo, o melhor que fazem é abandonar dogmas militantes e começar a abrir a cabeça para mais propostas. Tornar criminosas as mulheres que interrompem a gravidez é algo que pode começar a ser pensado em evitar, e isso a partir da adoção adrede contratada. Nos Estados Unidos existe essa possibilidade. Posso conseguir uma mãe que queira ser mãe, e ficar com o filho que eu não posso cuidar. No Brasil, as normas de adoção são burocráticas e, ao invés de proteger e salvar crianças, apenas destroem possibilidades.

O estado brasileiro tem condições de fazer bom acompanhamento de casais que gostariam de adotar  bebês ainda na barriga. Não é difícil evitar mães de aluguel ou tráfico de crianças nesses casos, não é mesmo. O estado brasileiro faz acompanhamentos de violência doméstica muito mais difícil do que seriam tais situações.

Mas o problema é que o time da Maria Rita Kehl parece que prefere, antes de tudo, continuar o embate pela ideia de “meu corpo minhas regras”. Parece que é mais importante manter vivo o feminismo velho que manter vivos filhos e mães. E isso, realmente, dificulta tudo. É difícil, sem criatividade, enfrentar os conservadores.

A esquerda tem abortado boas ideias.
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* Paulo Ghiraldelli, 58, filósofo.
Fonte:  http://ghiraldelli.pro.br/maria-rita-kehl-e-o-aborto-nosso-de-cada-dia/

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