sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Fabricio Ballarini: “Nenhuma lembrança é verdadeira”.


A tomada de decisões, a memória e a aprendizagem: o estudo do funcionamento do cérebro avançou nos últimos anos como nunca antes. Ballarini é biólogo (foto) e pesquisador do Conicet. Nesta entrevista fala sobre suas pesquisas e explica como a neurociência pode converter-se na base de medidas políticas como a Renda Universal por Filho.

Fabricio Ballarini, doutor em neurociência, biólogo e pesquisador do Conicet, afirma que surpreender as pessoas pode melhorar o processo de aprendizagem. Graças ao seu trabalho no Laboratório de Memória da Faculdade de Medicina da UBA descobriu que estudantes de nível primário podiam aumentar em 60% suas lembranças de passagens de um conto (desconhecido para eles) se, depois de lê-lo pela primeira vez em sala de aula, essa atividade era interrompida com uma atividade inesperada, como ensinar-lhes ciência em um laboratório.

Convencido de que sua descoberta pode ser uma contribuição para o ensino nas escolas argentinas, Ballarini alterna seu papel de pesquisador com a divulgação de seus resultados através de diferentes meios. Organiza encontros em todo o país nos quais cientistas transmitem seus avanços pedagógicos a educadores para capacitá-los, tem uma coluna de neurociência na multiplataforma Vorterix e agora publicou um livro, REC. Por que recordamos o que recordamos e esquecemos o que esquecemos, pela Editorial Sudamericana. “Sabemos como funciona o cérebro, mas não usamos na escola”, reflete em conversa com Página/12.

Eis a entrevista*.

Como funciona fisiologicamente a novidade no processo de aprendizagem?
O cérebro tem milhões de neurônios que se conectam e desconectam. Nessas conexões, chamadas de sinapses, estão as funções da vida, por exemplo, as aprendizagens. Cada vez que aprendemos algo, uma determinada parte do cérebro se conecta e começa a gerar redes que guardam a informação. Todo o tempo são armazenados uma série de recordações que serão de curto prazo, vão durar na cabeça uma, duas ou três horas. Quando esquecemos algo, produz-se um processo de desconexão que possibilita produzir outras recordações. É fascinante porque é como um sistema flexível. O que você comeu no café da manhã de hoje ou o que fez ontem à noite são recordações insignificantes, porque são dados irrelevantes, parte da sua rotina.

Mas existem outras que são muito fortes e você as recorda por muito tempo. Antes não se ignorava isso, mas agora sabemos que a memória são conexões e está em um lugar físico. Essa é uma definição muito forte, social e fisiologicamente falando. Nós descobrimos que essas recordações fortes, em muitos casos estão associadas a recordações novas, a eventos que quebram a rotina. Essas conexões são muito mais fortes porque disparam uma síntese de proteínas que ajudam para que essas conexões se mantenham. Quando se guarda informação nova, não apenas se recorda o que lhe surpreendeu, mas também questões periféricas: o que estava fazendo, onde você estava.

Eu sempre pergunto isso no dia 11 de setembro de 2001. É obvio recordar a imagem das Torres Gêmeas caindo, mas, por que você se lembra onde estava, o que estava fazendo, com quem estava? Isso tem uma explicação evolutiva. No momento em que está vivendo uma situação nova, convém guardar a partir desse momento ou todo o pacote? Desse ponto de vista, entendemos que com a novidade não apenas se guarda essa informação em si, mas também ajuda a consolidar todas as lembranças que se encontram ao redor. Isso transladado para a escola é um golaço porque, graças à novidade, é possível fortalecer determinadas aprendizagens em qualquer momento.

Em que consistiram os experimentos que fez nas escolas para comprovar isto?
Como parte de uma aula normal, fizemos que professoras de dois cursos de um mesmo ano lessem aos seus alunos, de 7 a 9 anos, um conto de Emma Wolf que não conheciam. De modo geral, costuma ser comum que isso aconteça na escola. Em uma das turmas a aula prosseguiu normalmente, ao passo que a outra foi interrompida para que ensinássemos ciência às crianças em um laboratório. Após fazer o mesmo em oito escolas da Província de Buenos Aires, públicas e privadas, notamos que os alunos que tiveram uma inovação lembravam mais partes da história que se tivessem tido uma aula normal. Ao final da pesquisa, com uma amostra de 1.600 alunos, comprovamos que as crianças aumentavam seu nível de memória e aprendizagem em 60%. Se você dá uma temática educativa de forma inovadora, também vai forçar que se lembrem mais. Incorporar este tipo de ensino é modificar a forma tradicional de dar aulas.

Na rádio, procura fazer o mesmo?
Eu sabia que havia resultados na escola. Mas sempre tinha sido nesse marco, com os mesmos professores, nos mesmos horários, onde a quebra da rotina era relativamente fácil. E, por outro lado, as crianças eram bastante homogêneas. Eu queria provar se as melhorias na memória pelas inovações podiam passar ao nível massivo, onde há um rapaz de 16 anos, um homem de 70, uma pessoa que está trabalhando em um táxi, outra que está na escola ou tomando café da manhã.

Então, começamos a fazer vários experimentos, a usar o meio de comunicação como um gerador de perguntas e respostas científicas ao vivo. As pessoas ficam fascinadas com o fato de poderem concursar, com a existência de missões e de serem colocadas à prova. Um experimento que me chamou muito a atenção pelo nível de participação foi o de implantar uma falsa memória. Inventamos uma lembrança a um grande grupo de ouvintes. Eu disse: “Vamos fazer um experimento de memória: vocês devem reter esta lista de palavras”. Depois, pelo Twitter, propusemos que nos dissessem se duas determinadas palavras estavam incluídas. Havia uma palavra que estava e todos responderam bem, e outra que não estava, mas que as pessoas disseram que estava e a implantamos.

É fácil assim implantar uma lembrança?
Nós acreditamos que de tudo o que vivemos podemos fazer uma cópia na cabeça e que, quando evocamos esta experiência, reproduz-se uma memória exata. Nenhuma lembrança é verdadeira. Quando entra na fase do esquecimento e cada vez que se evoca uma determinada lembrança há uma série de detalhes que se perdem ou se modificam. Em uma recordação entram em jogo as emoções, os interesses, a subjetividade, se lhe convém ou não. Às vezes, lhe convém esquecer determinadas coisas e isso também não se escolhe.

Há estatísticas que mostram que houve um grande número de condenados a crime por testemunhas presenciais que se confundiram ou acharam o rosto parecido com o verdadeiro culpado. Em situações de estresse, guardar uma informação é muito complicado e evocá-la, pior ainda. Então, por que haveríamos de acreditar em uma pessoa que viveu essa situação? É muito fácil implantar uma lembrança. Neste experimento com os ouvintes conseguimos implantar uma recordação falsa em 70% a partir de um meio de comunicação, o que é inquietante. Foi impressionante porque um grande número de pessoas participou. Conseguiu ser trending topic, o que indicava que havia um interesse muito grande em saber se havia conseguido responder bem ou não. Algo muito simples, mas que gera fascinação. Que tanta gente queira participar foi incrível; em outro momento não teria funcionado.

Por que acha que isso acontece?
Parece-me que um grande número de tijolos foi se somando em consequência de uma política científica que antes não existia. Há muita influência de temáticas científicas e educativas nos últimos anos na Argentina. Vejo que há muito mais projetos e me parece que está muito relacionado ao fato de que muito mais gente se incorporou ao grupo de cientistas, há muitíssimos repatriados que vieram com vontade de falar sobre os seus projetos. Se há mais cientistas, existem chances maiores de que haja pessoas com vontade de compartilhar suas experiências. Também o compromisso é diferente. Se uma pessoa sente que o Estado apóia a ciência, haverá um esforço maior em falar dos trabalhos científicos e manter o interesse.

E a consequência disso não somos apenas nós, porque investigamos; a consequência é o interesse das pessoas por essas temáticas científicas. Existe um interesse de pessoas que há 10 ou 15 anos talvez não prestavam atenção nisso. Há outro público, formado por professores, arquitetos, engenheiros, donas de casa, além dos estudantes de biologia. Isto foi possível pela incorporação da ciência como uma fonte de trabalho normal, porque uma série de conteúdos científicos virou uma opção nos meios de comunicação. Então, se há cientistas que têm vontade de contar seus resultados e há uma sociedade que é permeável a ouvi-los porque sabem que o fazem por vocação e gostam disso, há uma convivência que é muito boa.

Em seu livro você assinala que pesquisas científicas relacionam o nível socioeconômico com o nível cognitivo. Qual é a explicação que a neurociência encontra?
Há duas temáticas que estão relacionadas e que a neurociência estudou: a tomada de decisões e o tamanho do córtex cerebral. O tema da tomada de decisões é fortíssimo. Nós constantemente tomamos decisões: o que comer, que ônibus tomar, a cada segundo tomamos decisões. A questão é em que se baseiam. Majoritariamente, é graças à experiência prévia: tenho que chegar mais rápido a determinado lugar; se pego o metrô, chego mais rápido, então eu o pego em X situação. Isso seria uma boa decisão.

O que se descobriu é que quando as pessoas têm consciência de ter algum nível aquisitivo elas tomam decisões melhores. Os cientistas propõem a chamada “carga mental”. Pensando em uma situação muito extrema: há dois dias você não come. Absolutamente toda a sua atenção, preocupação e desejo, todo o cérebro, vai estar focado em comer; as outras decisões vão ficar em um segundo plano.

Cientistas ingleses e norte-americanos estudaram um grupo de trabalhadores da cana-de-açúcar da Índia. Estes camponeses viviam metade do ano com dinheiro, graças à colheita, e a outra metade com menos ingressos, porque o nível da produção baixava devido à má temporada. Quando fizeram avaliações com eles sobre variáveis que se acreditava que poderiam interferir em suas decisões, como o estresse ou a comida, descobriram que, quando tinham dinheiro, tomavam boas decisões. Quando não tinham dinheiro, tomavam más decisões.

O que chama a atenção é que se equivocam com uma decisão econômica reversível. É uma questão de ter um pouco de dinheiro. Isto pode ser aplicado na Argentina. É sumamente interessante e é fundamental que se saiba em nível político. É a fundamentação política da Renda Universal por Filho e ninguém a conhece.

Há outra pesquisa relacionada ao tamanho do cérebro das crianças. O tamanho do cérebro das crianças das pessoas pobres é menor. Mas não é porque nasceram com o cérebro menor, mas por variáveis, como a falta de estímulos cognitivos, a falta de alimentação, a exposição a condições ambientais adversas. Então, em algum ponto, há uma correlação forte entre a riqueza e a educação.

Um dos mitos instaurados é que se dá dinheiro aos pobres para gastar com qualquer coisa. Não, na realidade se dá dinheiro para dar-lhes a possibilidade de tomar boas decisões. Um grande número de pessoas vai tomar más decisões, mas a outro grupo estará dando uma possibilidade, a partir de um incentivo, de sair de uma situação de pobreza, de tomar decisões como a de mandar os filhos à escola, vaciná-los, dar-lhes de comer. Sem esse ingresso, isso não aconteceria.

Também chama a atenção que a tecnologia arranca de nós a possibilidade de guardar recordações. Como o uso da tecnologia afeta as aprendizagens?
Estamos apenas começando a conviver com estas novas tecnologias, então é muito difícil saber como elas afetam a nossa aprendizagem. O que se sabe, isso sim, é sobre uma questão que se chama memória transativa: qualquer cérebro tenta gastar a menor quantidade de energia possível nas atividades a ela destinadas. Guardar informação é um trabalho: é prestar atenção, entender, produzir conexões no cérebro, conservá-las no tempo. Um dos recursos que o cérebro tem é depositar sua própria memória em outra pessoa; a pessoa realiza memória transativa com pessoas próximas com as quais tem um vínculo forte.

É muito forte pensar nisso, porque o que agora acontece é que o celular, a internet, o Google, a nuvem ou os discos rígidos têm uma série de coisas que os seres humanos não têm. Primeiro, grande capacidade de armazenar informação. Também é instantâneo. O que muitos cientistas propõem é que o nosso cérebro, em vez de fazer memória transativa com os humanos, está fazendo com a tecnologia. Então, seu cérebro, para que vai querer guardar a capital de um país, o dia da morte de San Martín, um aniversário ou um telefone, se tudo isso encontro nas tecnologias? Se essas redes de pensamento estão no celular, deve ir ao celular, ver a informação e, a partir disso, produzir ideias. É bastante terrível porque essa comodidade poderia dar lugar a um cérebro pouco treinado.

No entanto, você apóia a tecnologia aplicada à educação.
Parece-me um problema o fato de que deleguemos à tecnologia a responsabilidade de guardar muita informação, porque as gerações mais novas nascem com a tecnologia e podem se fazer a seguinte pergunta: para que vou precisar me lembrar disto se tudo está na internet? E outra coisa terrível é que, se a tecnologia já está inserida na juventude, se não começa a entrar na escola, a escola fica fracionada, analógica. Por isso, o fato de que todas as crianças tenham um computador na escola me parece uma coisa incrível, e o próximo passo é que se deem conteúdos para que esse computador possa ser usado corretamente.

Devemos encontrar o modo para que o sistema educativo em geral possa chegar a isso, porque uma professora de 50 ou 60 anos não viveu com esse conhecimento. Agora os jovens têm à disposição milhões de fontes de internet que em muitos casos não foram conferidos, e isso é perigoso. Mesmo que, ligado à questão das situações novas, do ponto de vista tecnológico, quando se encaram determinadas temáticas de uma maneira que os jovens não esperam, as aprendizagens são melhor consolidadas. A tecnologia proporciona muitíssimas possibilidades de ir um pouco além. Talvez com o quadro-negro e as atividades atuais da escola, as surpresas sejam mais limitadas, mas, o que acontece, por exemplo, se um rapaz usa capacete de realidade virtual para uma aula de história da Revolução de Maio? Toda a vida vai se lembrar do dia em que lhe puseram um capacete de atividade virtual e viu Belgrano.

Há muitas estratégias que podem ser utilizadas, que estão ligadas ao entretenimento, mas, através do conhecimento, podem ser usadas de uma maneira atrativa. Agora existe o conceito de gameficação ou jogabilidade: que tudo seja feito em formato de jogo. Por exemplo, quando você joga futebol ou play, sabe que tem a possibilidade de perder, mas também de jogar novamente. Isso não é transferido para a escola, para os processos em que se você vai mal na escola parece ser definitivo e não entende que há milhares de possibilidades, muito além de que tenha ido mal em uma determinada matéria. Não se utiliza o jogo no sistema educativo. Existe um vazio que se deve ao avanço tão rápido da tecnologia e da ciência.

Como vê a relação entre a ciência e a educação?
Em geral, a ponte que existe entre a ciência e a educação é a necessidade de que os estudantes incorporem temáticas científicas, como fazer um experimento para que entendam a fotossíntese, mas não como um recurso para melhorar as aprendizagens. Hoje, começamos a entender que pode haver outra maneira de olhar as coisas: no sistema educativo existe um grande número de professores interessados em incorporar estes conhecimentos aos processos de ensino.

Por outro lado, o ambiente científico vê na escola a possibilidade de divulgar os conhecimentos que são produzidos no laboratório. Incorporou-se um fascínio da escola pela ciência. Há um contágio dos docentes que sentem que caminhos juntos. O que tentei fazer com o livro é um pouco isso: transmitir meu fascínio pelo tema e compartilhar minha contribuição científica mínima para a educação.

Atualmente, há vários neurocientistas que ganharam notoriedade pública por oferecerem respostas para problemas de educação, marketing, empresas ou biologia. A que se deve este fenômeno?
O fenômeno, aqui na Argentina, tem três raízes, para mim. Uma delas é que há uma escola psicanalítica muito forte no país, que veio no começo de 1900 e segue até hoje com milhares de psicólogos explicando todo tipo de fenômeno. Embora a psicanálise proponha a divisão entre consciente e inconsciente, tudo passa por algum lado da sua mente. Por isso, a neurociência procura responder em qual lugar se encontra essa consciência e inconsciência. A isto se soma o aumento na quantidade de cientistas, a abertura da carreira de pesquisador e à vinda de cientistas de fora.

O outro motivo é que a Argentina é um país muito interessado nas questões médicas. Tradicionalmente, sempre teve uma escola médica muito forte. A quantidade de escolas, comparada com outros países de um nível socioeconômico similar, é altíssima. Há um fascínio pelo conhecimento no país. Temos prêmios Nobel ligados ao conhecimento como não se vê em outros países, cientistas argentinos muito bem avaliados lá fora. Então, olhando dessa perspectiva, é fácil dar uma explicação. Mas me parece que o contexto político-científico é chave, incorporou-se uma temática que não existia antes.

Por que pensa que se recorre particularmente à neurociência como disciplina, quando há outras correntes de pensamento, como a psicanálise, que estudam o cérebro?
A neurociência avançou muitíssimo nos últimos anos, não apenas aqui, mas em nível mundial. A tecnologia permitiu conhecer o que o seu cérebro faz no momento em que está fazendo alguma atividade, e isto começou a dar sustentação a muitas outras perguntas. Nos últimos anos deu passos gigantescos que geraram um enorme volume de informações. Se fizer uma checagem das revistas que estão ligadas à neurociência há muitas descobertas basicamente porque se sabe pouco. A neurociência começou a dar respostas onde não havia.

Pouquíssimo tempo atrás aconteceu algo terrível comigo e que me marcou profundamente: fomos fazer uma capacitação em um colégio de Mendoza e uma diretora nos disse: “eu ia me aposentar; há 40 anos dou aulas e nunca me tinha dado conta de que a criançada tem cérebro”. O sistema educativo não contemplava os conhecimentos sobre o cérebro e isso não por culpa do sistema educativo, mas porque não se sabia. Há 15 anos, se perguntava a um cientista onde se guarda uma lembrança, como se guarda, o que acontece em um sonho, e ele não sabia responder.

O eixo do conhecimento se deslocou e há um volume de informação que provoca fascínio por estar relacionado a algo tão próximo com o seu cérebro. Há arestas do ponto de vista social, da tomada de decisões, da memória e da aprendizagem. É muito fácil baixar essa informação porque dá respostas concretas a coisas que lhe acontecem cotidianamente. Embora abstrata, a neurociência é muito empática, porque todo o tempo é atravessada pela conduta.
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 * A entrevista é de Gonzalo Olaberría e publicada por Página/12, 30-11-2015. A tradução é de André Langer.
Fonte:  http://www.ihu.unisinos.br/noticias/549812-nenhuma-lembranca-e-verdadeira-entrevista-com-fabricio-ballarini

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