segunda-feira, 28 de agosto de 2017

DITADURA DA NOVIDADE

 Juremir Machado da Silva*
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PINTURA CUBISTA: Picasso / Factory in horta de Ebbo
 
Quem não se sente, vez ou outra, dilacerado sem que nada esteja acontecendo ou talvez justamente por isso? Quem não se sente rasgado por dentro, corroído por uma insatisfação sem motivo, disposto a largar tudo, mulher e filhos, emprego e projetos, conta bancária e Netflix, para viver novas e improváveis emoções? Quem não se vê no espelho deformado como um quadro cubista, a imagem estilhaçada, o corpo esquartejado, a alma partida? Quem não se vê e não se culpa por essas ideias malsãs, esses delírios imorais, essas viagens imóveis?

Num minuto, eterno como a desesperança, a pessoa quer enterrar o cotidiano, cortar laços essenciais, mudar o que lutou para construir, desatar o nó amarrado ao longo de uma vida de sonhos e de combates. No outro, contraditório como todo ser humano que não se blindou contra as batidas do coração e o fluxo sanguíneo, agarra-se ao seu pequeno grande mundo como quem se apega ao último fiapo de luz na escuridão do futuro. Há os que rompem e se arrependem, há os que jamais rompem e se arrependem, há os que nunca se arrependem, esses talvez sejam os mais perigosos, esse talvez seja o maior perigo dentro de nós. Vivemos em sociedades que estimulam o desejo de ruptura e cultuam a novidade.

Estamos preparados para isso? Somos diariamente chicoteados com as emoções alheias mais hiperdimensionadas. Ou delegamos às celebridades a vivência do que nos escapará como um devaneio ou nos jogamos no abismo das expectativas em tom de pesadelo. Ou sabiamente aprendemos a não viver sem desejos, mas também a não nos deixar dominar por desejos que escravizam com preço em lugar de valores. A doença da nossa época é a depressão. Como não se deprimir num mundo que exige de nós agilidade, desempenho, mudança permanente e sucesso total? Como não titubear diante de uma máquina de comparações impiedosas? Entramos de fato na era da obsolescência programada e descobrimos que o ser humano é o mais perecível dos “objetos”.

Quem não acorda no meio da noite acossado por perguntas que antes pareciam meramente retóricas e assustam como espectros impressionantemente realistas e palpáveis: por quanto tempo ainda vou servir? Já sou ultrapassado? Tenho condições de me atualizar? Quando serei descartado? Quando os jovens arautos da antiga modernidade, essa ideologia do novo, me declararão superado e me enviarão para o depósito dos seres inservíveis como um 386 ou um Classic da Apple?

Quem não rumina saídas, retiradas estratégicas, projetos de autonomia, um sítio, uma pousada, uma casa na praia, um café e até uma livraria?

Quem não se sente como um dependente vivendo um dia depois do outro na esperança de nunca recair? Quem não se sente como um belo vaso rachado, uma porcelana cuja pintura vai perdendo a intensidade, uma aquarela cuja paisagem vai se tornando uma simples evocação? Eu me sinto assim certos dias sem sol ou sem manchetes de derrubar governo. Tenho arroubos de metamorfose, surtos de mutação, anseios de transformação. Vou do inseto de Kafka a borboletas azuis. Num átimo.
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* Sociólogo. Prof. Universitário. Escritor. Colunista do Correio do Povo
Fonte: http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2017/08/10177/ditadura-da-novidade/
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