domingo, 27 de agosto de 2017

Leonardo Padura: 'Não existe um mercado de livro em Cuba'.

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Entrevista/Leonardo Padura
 
Um dos escritores cubanos mais conhecidos no mundo, autor de “O homem que amava os cachorros” e dos quatro romances de “Estações Havana”, publicado no Brasil pela Boitempo, “Passado perfeito”, “Ventos de quaresma”, “Máscaras” e “Paisagem de outono”, Leonardo Padura, 61 anos, esteve em Porto Alegre como palestrante 
do ciclo Fronteiras do Pensamento. 
Descontraído, deu entrevista ao Caderno de Sábado.
(Juremir Machado da Silva)

Caderno de Sábado – O senhor falou recentemente sobre o poder da literatura. Existem ainda livros perigosos e que podem mudar o mundo?
Leonardo Padura – Não sei se conseguem mudar o mundo. Os grandes livros que fizeram isso não foram os de ficção. Foram a Bíblia, o Corão ou O Capital. Mas existem livros que mudam bastante a mente das pessoas. Obras que afetam os conhecimentos históricos ou dos sentimentos. Alguns livros podem ser perigosos para bem ou mal. Alguns são muito superficiais, mas têm capacidade de penetração como os best-sellers de Dan Brown ou “50 tons de cinza”. Outros fazem pensar. Quando li pela primeira vez “1984”, de George Orwell, fiquei profundamente comovido. Há uns oito anos, quando li “Vida e destino”, de Vassili Grossman, também me emocionei. Há, entendo eu, livros que podem ajudar a mudar as pessoas, transformar os seus leitores.

CS – Vivemos uma época de transição tecnológica. Qual será o futuro do texto escrito e dessas histórias capazes de mudar as pessoas?
Padura – Nas feiras de livros do mundo inteiro os escritores que mais fazem sucesso são os youtubers. É gente jovem que escreve para internet. Não sei esses jovens leitores se transformarão em leitores adultos. Quando eu era criança se começava a ler por clássicos que transmitiam um sentido ético da vida: “O conde de Monte Cristo”, “O Corsário negro”, as histórias de Jules Verne, mais tarde a “Odisseia”. Tudo isso contribuía para a nossa formação. São muitas as transformações em curso. Pessoalmente passei a ter problema para conservar uma imensa biblioteca com livros que talvez não volte a ler. Há cinco ou seis anos as editoras de impressos tiveram o pior momento. Já houve uma recuperação. Pelos próximos 20 anos haverá convivência entre o livro tradicional e o digital. Por fim, o digital vencerá por razões econômicas, culturais, logísticas. A questão é: o que vai acontecer com o mercado do livro? Se ele deixar de funcionar como agora será que valerá à pena investir cinco anos num romance? Só escreverão os professores universitários com verbas para pesquisas sobre coisas do tipo as qualidades térmicas do vidro fundido com raios ultravioletas? Quem escreverá com profundidade sobre o que Flaubert chamava de “alma das coisas”? Não estamos vivendo uma mudança de século, mas uma mudança de era. O desaparecimento do socialismo na Europa prendeu a atenção das pessoas e não se percebeu realmente a dimensão revolucionária da entrada na era digital. Muitas atividades humanas já mudaram ou desapareceram. Será lamentável se a arte de contar histórias, que nos acompanha há 30 séculos, desaparecer. Ela não pode se resumir a mais um game. Na época de Homero os homens se reuniam para ouvir um poeta cego contar a história da tomada de Troia. Somos o resultado dessa cultura e estamos dando um salto abismal.

CS – O senhor disse que numa investigação de romance policial não basta resolver o problema. É preciso também esclarecer uma situação. O que busca esclarecer com seus livros que mesclam ficção e história?
Padura – Tudo o que consiga, situações de fundo histórico, social, existencial. No meu novo livro, “A transparência do mal”, que acabei de enviar para a editora na Espanha, a preocupação de meu personagem Mario Conde, que é a minha, é de caráter existencial: como viver depois dos sessenta anos de idade? Como enfrentar o envelhecimento? Como a fé é capaz de fazer milagres? Como está a vida social e econômica em Cuba? O romance policial permite todo tipo de reflexão.

CS – Mario Conde é o seu alterego?
Padura – Conde faz o papel de meus olhos. Por meio dele, vejo o mundo que me cerca. Por estar muito perto de mim, sem ser meu alterego, ele me possibilita entender certas coisas mesmo sem as explicar.

CS – Um escritor que mescla ficção e história está na pós-verdade?
Padura – Não. O escritor faz um pacto com o leitor: conta-lhe uma mentira como se fosse verdade. O leitor lê como verdade sabendo que é mentira. Mas essa mentira pode ser também parte da verdade. É um jogo limpo. A pós-verdade é um jogo sujo. Dá-se por certo o que não é.

CS – O que busca esclarecer sobre a situação atual de Cuba?
Padura – Cuba não consegue encontrar um caminho econômico para se organizar. O Estado continua a ser o grande controlador da economia. Isso tem sido improdutivo e ineficiente. Um pequeno setor privado começa a mostrar produtividade e eficiência. O Estado trata de limitar e controlar suas ações. Por outro lado, as relações com os Estados Unidos voltaram, do ponto de vista retórico, com Donald Trump, ao estágio anterior a Obama. Nada mudou na economia. Não se recuou nem se avançou em relação ao fim do embargo econômico, que seria importante. O trabalhador privado em Cuba ganha cinco vezes mais que o público. Criou-se uma separação, uma distinção enorme no tecido social. Tudo isso num momento em que se supõe que Raúl Castro deixará o poder. Já anunciou que em 2018 não será mais presidente do país. Resta saber se vai continuar como secretário do Partido Comunista, que é quem manda.

CS – Como ainda é ser escritor em Cuba?
Padura – Ser escritor em Cuba é um ato de fé. Um escritor em Cuba precisa ter editoras fora do país que o publiquem. Ou precisa trabalhar em outras coisas para ganhar o seu sustento. Os direitos autorais pagos em Cuba não são suficientes para alguém viver. Cada vez se publica menos. Os escritores cubanos conhecidos são muito poucos. Não existe um mercado do livro em Cuba. Ainda será preciso criá-lo.

CS – Como está a questão da liberdade?
Padura –  A questão da liberdade ainda não está resolvida. Existe um espaço maior para a opinião. Mas não é total. Privilegia-se quem está mais perto do poder. Opiniões divergentes são rechaçadas, condenadas, castigadas. A imprensa pertence ao Estado. Há mais liberdade nos blogs. Um pouquinho de diversificação. Temos de ampliar esses espaços.

CS – A literatura brasileira chega em Cuba?
Padura — Muito pouco. Casa de las Americas se encarregava disso. Agora só restam os prêmios, que nem sempre coroam obras de primeira qualidade. Rubem Fonseca é um dos últimos brasileiros mais conhecidos.

CS – O senhor vive há 61 anos na mesma casa. Nunca pensou em sair?
Padura – Não. Em algum momento dos anos mais difíceis todo cubano pensou em partir. Eu só queria escrever. Precisava de tempo. Se pudesse ter comida melhor, um carro, ótimo. Se tivesse saído de Cuba, teria de trabalhar em outra coisa para viver. Fiquei para escrever.
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Fonte: http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2017/08/10171/caderno-de-sabado-entrevista-leonardo-padura/
Jornal Impresso: Caderno  de Sábado , 26 de agosto de 2017, pg. 1

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