sexta-feira, 11 de agosto de 2017

SOBREVIVÊNCIA DA ESPERANÇA


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 Filósofo francês Roger-Pol Droit escreveu "Tolerância" em forma de diálogo, 
para refletir inquietudes da atualidade

Em tempos de terrorismo e xenofobia, não é fácil explicar que a tolerância é um valor que se pode e deve exercitar. Essa explicação é a tarefa a que o filósofo francês Roger-Pol Droit se dedica em "Tolerância" (Contexto, 96 págs., R$ 25). Para Droit, o espaço em que decidem as medidas de segurança e as garantias de liberdade nas democracias moderna é incerto e tênue. A busca do equilíbrio é feita de tatear e envolve erros, avanços e recuos.

Com a ameaça do terrorismo às democracias ocidentais, a urgência de exercitar a tolerância aumenta, mas também a necessidade de debater quais são os limites entre o tolerável e o intolerável, diz Droit. Para tanto, porém, é preciso ser capaz de entender o que queremos dizer com essa palavra. Mas o filósofo nascido em 1949 alerta que a definição do termo não é tão simples como parece.

Escrito em forma de diálogo, uma das estruturas mais tradicionais da literatura filosófica, o livro de Droit encena um encontro intergeracional, em que o filósofo busca desenvolver as inquietudes que povoam a mente de qualquer pessoa no mundo atual. "Tento me colocar na cabeça ou na pele de alguém que não está habituado à reflexão filosófica, às interrogações”, afirma.

Apoiando-se no filósofo alemão Ernst Bloch (1885-1977), Droit encerra afirmando que o que caracteriza a história da humanidade é a subsistência da esperança, por pior que seja o cenário em determinado momento. "Sempre há um segundo ato, uma continuação. É por isso que Dante escreve na porta do inferno 'Deixai toda esperança, vós que entrais': quem não tem mais esperança são os condenados.”

Valor: O senhor defende que se pode praticar e treinar a tolerância. Como é esse treino?
Roger-Pol Droit: A tolerância é algo que se deve colocar em prática, não só ter nas ideias. Como se virar com outras pessoas que não têm as mesmas convicções ou modo de vida. Como fazer que o desacordo não se transforme em confronto. Isso não implica suprimir o desacordo, mas ser capaz de conviver com ele. A vida em comum se inventa tateando. Não temos a tolerância de uma vez por todas, como se houvesse uma verdade pronta. São coisas que se praticam. Há muitos casos atuais, como as cantinas escolares na França, em que se discute se deve ser servido porco para todos; se deve haver pratos vegetarianos; se, com isso, estamos cedendo a pressões religiosas ou respeitando os modos de vida.

Valor: Existe uma base comum em que se pode fundar a tolerância?
Droit: Voltaire [1694-1778], no tratado sobre a tolerância, vê as coisas de um jeito simples demais. Ele acha que a tolerância se baseia na ideia de que, no fundo, todos pensam a mesma coisa. As disputas giram em torno de detalhes. Creio que não é assim. Não acho que um judeu, um cristão, um muçulmano, um hindu, estejam de acordo nas questões de fundo. Podem se entender para viver em conjunto, mas há desacordos insuperáveis. Como fazer para, sem estar de acordo, coexistir?

Valor: Às vezes os intolerantes invocam as liberdades da tolerância para ter o direito de ser intolerantes...
Droit: Não podemos deixar alguém se servir das liberdades da democracia para suprimir essas liberdades. É nesse sentido que não há possibilidade de deixar uma livre expressão para o nazismo, o racismo... É um contrassenso. A tolerância tem um componente de reciprocidade. Uma tolerância sem limite não tem sentido. A tolerância só tem sentido em relação a limites com aquilo que é intolerável, e esses limites são objeto de debate. A reciprocidade é central. Não há tolerância a qualquer coisa, mas dentro da possibilidade de coexistência de opiniões incompatíveis.

Valor: Desde 2015, a França vive em estado de urgência. O novo governo pretende introduzir os dispositivos da exceção na lei comum. Como o senhor vê a perenização do estado de urgência?
Droit: A questão é a relação entre a segurança pública e as liberdades dos indivíduos. Esse é o problema das democracias, atacadas pelos jihadistas. O caso da França é um estado de urgência prolongado na medida dos atentados, os que aconteceram e os que foram evitados. Quanto aceitamos de redução das nossas liberdades para estar em segurança? Se for a totalidade, vivemos em regime de ditadura. Se é a totalidade da liberdade que é mantida, estamos expostos a riscos. Toda a questão está em saber onde se situa o limite. Para mim, não é um incômodo ter um passaporte biométrico, se isso me permite viajar com segurança. Mas o poder dado à polícia de fazer buscas e parar pessoas sem controle judiciário é preocupante. O problema está ligado à situação, não podemos esquecer o que está acontecendo. O jihadismo quer destruir os pilares dos nossos sistemas sociais.

Valor: E quanto ao direito comum? A perda de direitos torna-se independente da ameaça real. Se amanhã o Estado Islâmico é derrotado, os dispositivos seguem na lei.
Droit: É o risco ao qual estão expostas as democracias. Não só as ameaças terroristas, mas também um endurecimento de seus sistemas políticos. O equilíbrio é muito estreito.

Valor: O senhor coloca como primeiro nível da tolerância o sentido fisiológico, ou seja, ser capaz de se adaptar a uma influência do meio externo. Não estaria se desenvolvendo uma tolerância fisiológica à perda de liberdades, ao ponto de as pessoas aceitarem o autoritarismo?
Droit: Esse é o equilíbrio instável em que estamos permanentemente. Se acentuamos as liberdades dos cidadãos, nós os colocamos em perigo. Por exemplo, a liberdade de manifestação: se deixamos que todas aconteçam, expomos as pessoas ao risco de ser agredidas por um terrorista. Mas, se proibimos todas, a democracia é que está em risco. Estamos nessa zona cinzenta, em que é difícil equilibrar os extremos.

Valor: Até o ano passado, a ascensão de movimentos intolerantes no Ocidente parecia imbatível, com as vitórias de Donald Trump e do Brexit. Temia-se o crescimento dos nacionalistas na Alemanha, na França, na Holanda, na Áustria. Todos esses tiveram desempenhos abaixo do esperado. O recuo é duradouro?
Droit: Espero que seja, mas não estou seguro disso. Desconfio de conclusões feitas a partir de efeitos de superfície. Não creio que a eleição de Trump ou o Brexit tenham marcado mudanças radicais, ou que [o presidente da França, Emmanuel] Macron e o recuo da direita alemã suprimam os populismos. Há tensões de fundo no mundo contemporâneo e no interior delas há flutuações. Seria um erro dizer que o que se passa há alguns meses é uma inflexão da história. No longo prazo, os protecionismos avançam, as instituições internacionais resistem. Essas tensões devem continuar por bastante tempo.

Valor: O senhor lançou um livro relacionando a caminhada ao pensamento. Neste ano, um movimento político com a caminhada no nome (En Marche) obteve uma vitória na política francesa, elegendo o presidente e a maioria parlamentar. O que o senhor associa à noção da caminhada?
Droit: Entre o modo como os humanos caminham e o pensamento filosófico há uma ligação importante. Começamos a andar nos desequilibrando, caindo um pouco, e a caminhada é sempre a recuperação de um início de queda. Não se pode andar, como no pensamento filosófico, sem passar por um desequilíbrio que em seguida é recuperado. Não há imobilidade possível. Com ou sem razão, o movimento En Marche tem importância simbólica ao expressar que a imobilidade é nefasta e é preciso recuperar a possibilidade de avançar por desequilíbrios. São eles que vão conseguir isso? Isso é outra história.

Valor: Parece haver uma onda de movimentos parecidos, de Macron ao americano Bernie Sanders, passando pelo inglês Jeremy Corbyn e os novos partidos espanhóis. Os sistemas políticos ocidentais estão sendo redesenhados?
Droit: Claramente há coisas que se redistribuem. Mas é efeito temporário ou movimento de fundo? Tudo que podemos constatar é que há no discurso uma crise da relação entre direita e esquerda, um desejo de saída desse antagonismo. Mas ainda é um antagonismo forte na sociedade. Muitos se classificam como de direita ou esquerda, e a redistribuição das cartas, como na França, provavelmente é algo mais efêmero que um movimento de fundo. Com outras etiquetas, as disputas entre direta e esquerda vão prosseguir.

 Philippe Wojazer / AP
O presidente francês, Emmanuel Macron, em evento de caridade em Paris; para Droit, 
"o movimento En Marche tem importância simbólica ao expressar que a imobilidade é nefasta"

Valor: Existe uma relação entre as condições concretas de vida das sociedades e o nível de intolerância? Por exemplo, o desemprego?
Droit: A relação existe, mas seria simplista fazer delas a causa direta. Temos o hábito de exagerar na leitura dos fenômenos pela moldura econômica. O terrorismo jihadista não é expressão da miséria. Os pilotos do 11 de Setembro eram diplomados e oriundos de meios afluentes. Há um contexto de fanatismo religioso que é diferente das condições econômicas. A tolerância é também uma questão individual, de humano a humano. Existe o problema abstrato, geopolítico: o que fazer com os outros em geral. Mas também o que fazer com meu vizinho, com quem vivo e trabalho. Há uma distância entre as relações das pessoas e os blocos imaginários que temos na cabeça.

Valor: Hannah Arendt [1906-1975] sugere que o que falta aos intolerantes é pensar. O pensamento tem o poder levar à tolerância?
Droit:
Não é o pensamento em geral, já que todos os seres humanos pensam, mas para onde o dirigimos. No filme "Shoah" [1985], de Claude Lanzmann, o condutor dos trens de Auschwitz, afinal, respeita seu cronograma. Deve conduzir tantos trens por dia, a tal hora. É o respeito ao trabalho, sem pensar em mais nada, que lhe permite conduzir tantas pessoas rumo à morte. Se ele pensasse no sentido do que está fazendo, talvez não conseguisse obedecer.

Valor: Também existe a crença no poder da cultura, ao abrir horizontes, de promover a tolerância. O senhor concorda?
Droit: Sim e não. É um elemento, mas não o central. Uso o exemplo dos restaurantes, quando há não só a cozinha local, mas de vários lugares do mundo. Pode-se suportá-la, no sentido de se resignar, ou inquietar-se, dizendo que não se come mais como antes, ou se alegrar de provar coisas diferentes. O exemplo pode se estender para a cultura em geral. Ou aceitamos a coexistência de modo resignado, ou provamos um pouco, ou nos entusiasmamos. O importante é pensar seu próprio lugar como um ponto em um conjunto, com outras maneiras de agir, viver, comer... É uma educação espiritual. É fácil sermos tolerantes se somos céticos. Mas se tenho convicções fortes e devo aceitar que há outras convicções, incompatíveis com a minha, entro em algo que necessita uma compreensão, um esforço sobre mim.

Valor: Este é um livro para o público amplo. Como o senhor vê o papel da divulgação filosófica numa era julgada anti-intelectual?
Droit
: Uma era anti-intelectual não é uma era em que paramos de pensar. Um tempo sem perguntas seria o fim da humanidade. Se os intelectuais são menos escutados, isso nos obriga a encontrar maneiras de falar para o público não profissional, mas dotado de razão. Esses livros são jogos de pensamento, buscando um terreno comum entre a reflexão filosófica e outros seres humanos que se interessam por questões importantes.
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Reportagem Por Diego Viana | Para o Valor, de Paris
Fonte: http://www.valor.com.br/cultura/5075772/sobrevivencia-da-esperanca 11/08/2017.

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