sexta-feira, 4 de agosto de 2017

Tantos crepúsculos perdidos

Juremir Machado da Silva*
A frase mais bonita que li na vida é um verso de Pablo Neruda: “Nós perdemos também este crepúsculo”. Quantos crepúsculos cada um de nós perdeu na vida? Eu perdi crepúsculos preenchendo formulários, uma das coisas que mais odeio no mundo. Perdi crepúsculos tentando convencer burocratas a ouvir a voz da razão, o grito da emoção ou o sussurro do desespero. Perdi crepúsculos ouvindo críticas burras e elogios insinceros. Perdi um crepúsculo por causa de um doutor que me atacava por transformar minhas lembranças em crônicas quando, segundo ele, deveria dar dicas de leitura ou ser útil à sociedade. Perdi um crepúsculo respondendo a quem me chamava de petista e outro a quem me rotulava de reacionário. Perdi tantos crepúsculos me justificando.

Perdi crepúsculos pensando em ser o que não sou para satisfazer os que gostariam de fazer de mim o que só a eles interessaria. Perdi um crepúsculo adotando estratégias de sobrevivência quando apenas desejava que a vida me levasse. Perdi muitos crepúsculos digerindo as frases condescendentes de figuras odiosas que só queriam me envenenar com suas falsas solidariedades.

Perdi crepúsculos por frases assim:

– Você é feio, mas inteligente.
– Agora, sim, fizeste um livro bom.
– Gosto quando tu não imitas o Verissimo.
­– Vai pra Cuba, comunista safado.

Já perdi crepúsculos por não suportar racismo, homofobia e brincadeiras sobre aspectos físicos das pessoas. Já perdi crepúsculos por me dar conta de que me contradigo e também cometo preconceitos. Já perdi crepúsculos quando revisores de livros tentaram mudar meu estilo de escrever por considerar minha frase e minha sintaxe estranhas. Já perdi crepúsculos quando recebi telefonemas de homens dizendo que iriam me capar por causa de meu livro “História regional da infâmia: o destino dos negros farrapos e outras iniquidades brasileiras”. Perdi um crepúsculo lindo quando me fechei para a poesia porque me disseram que ser poeta era coisa ultrapassada. Perdi belos crepúsculos moderando mensagens de ódio de haters que queriam me desestabilizar.

Eu perdi um dos mais belos crepúsculos quando não saí para caminhar por não ter tempo a perder só pensando em ganhar mais mesmo vivendo menos. Perdi um crepúsculo cheio de barras vermelhas quando me deixei dominar pelos ressentimentos e fiquei me preparando para combates que jamais deveriam ter sido travados. Perdi um crepúsculo quando não fechei o livro, não abri o coração, não estendi a mão, não abracei, não beijei e não permiti que a vida me levasse por aí como um pássaro voando de uma árvore para outra. O mais belo crepúsculo que perdi foi aquele em que esperaste por mim com um livro de poesia aberto sobre a grama, cada letra sumindo com o sol se apagando, enquanto eu manuseava uma calculadora e tentava entender o mundo da vida a partir da análise fatorial. Eu perdi tantos crepúsculos que não vi a noite chegar, o dia nascer, o tempo passar, a vida escorrer.

Só me dei conta disso quando a última lâmpada se apagou no prédio vizinho. Na escuridão, ouvia-se Charlie Parker. Era sublime. Não perdi tempo ontem com Temer. Decidi que tudo estava resolvido.
Seria um crepúsculo no pior sentido: ocaso da moralidade e da democracia.

Triunfo da obscuridade.
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* Jornalista. Sociólogo. Escritor. Prof. Universitário. 
Fonte: http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2017/08/10102/tantos-crepusculos-perdidos/
Imagem da Internet

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