quinta-feira, 2 de novembro de 2017

Michael Ash: “Espantosamente, desde a crise nada mudou”


"Não quero excluir a existência de desonestidade e de conspirações, mas não creio que tenha sido a característica fundamental do caminhar para a crise", diz Michael Ash
 "Não quero excluir a existência de desonestidade e de conspirações, mas não creio que tenha sido 
a característica fundamental do caminhar para a crise", diz Michael Ash DR

O economista norte-americano Michael Ash alerta que tanto as regulações como os desequilíbrios económicos actuais são semelhantes aos vividos antes da crise de 2007/2008.

Uma nova crise financeira internacional, ao estilo da vivida há uma década é neste momento provável, alerta Michael Ash, professor na Universidade de Massachusetts. O economista norte-americano juntou-se este ano a Francisco Louçã, economista e ex-líder do Bloco de Esquerda, para lançar o livro “Sombras - A Desordem Financeira na Era da Globalização”. Nessa obra, traça-se um cenário pessimista em relação à forma como os mercados continuam desregulamentados e ensaia-se uma explicação para o facto de, mesmo depois da crise, pouco ter mudado.
Tivemos depois da crise muitas intenções de aumentar a regulação, de evitar que os bancos fiquem grandes demais. Mas, agora, passados 10 anos, é pouco evidente que tenha havido mudanças significativas. É mesmo assim?
Não é um mau resumo da situação. As pessoas ficaram chocadas que fosse possível que se verificasse uma crise com a dimensão e profundidade da de 2007/2008. A crise trouxe muitas dificuldades a um número muito significativo de pessoas e as suas origens e causas foram muito claras, nomeadamente a desregulação da banca e a crescente desigualdade. No entanto, espantosamente, desde a crise nada mudou. Acabámos por ficar muito aquém do desejável na tentativa de regular o sistema financeiro e ainda tivemos uma resposta à crise económica e financeira que pareceu ser uma coisa mais saída do final dos anos XIX do que do século XX ou XXI. Foi uma resposta de austeridade, de deixar os Estados liquidarem-se lentamente em vez de intervirem de formas que no passado tiveram um sucesso evidente.

Os bancos centrais responderam de forma diferente...
Mas acabámos por ficar com um modelo de governação económica muito dependente da política monetária. E abandonámos a política orçamental, a ideia de que um governo pode actuar de forma contra-cíclica por via da despesa. Fizemos todas as nossas apostas na capacidade de os bancos centrais responderem, o que ajudou a que tivéssemos uma crise muito mais longa e dolorosa do que aquilo que precisávamos.

E, agora, se nada mudou, estamos em risco de poder acontecer tudo outra vez da mesma maneira, é isso?
Sim, infelizmente. Tanto as regras como os desequilíbrios anteriores à crise continuam a estar presentes. Em relação às regras do jogo, olhamos agora para os Estados Unidos e o que é que vemos? Há um recuo no modesto incremento de regulação que foi feito logo a seguir à crise de 2007/2008, nomeadamente a legislação Dodd-Frank que introduziu pequenas restrições nas actividades não vigiadas da banca. Quando foi implementada esta legislação, ela foi sempre muito contestada pelo sector financeiro e pela representação política do sector financeiro e agora vai mesmo ser retirada. Portanto, faltam-nos neste momento regras que sejam melhores do que aquelas que existiam no momento do crash. E, ao mesmo tempo, os desequilíbrios que existiam antes da crise estão a formar-se outra vez. Nos Estados Unidos temos vindo a assistir, do lado financeiro, a uma subida muito significativa do valor das acções e a taxas de juro muito baixas, e do lado real da economia, a um aumento da desigualdade e a uma redução da concorrência. Não quero estar a dizer que um novo colapso está a chegar ou que chegará nos próximos meses, mas o que é certo é que não houve capacidade para reforçar os mecanismos de protecção, o que torna provável que uma nova crise aconteça.

Porque é que houve esta incapacidade para mudar as regras?
Há a força das ideias e a força material. A força das ideias é o facto de, nos 40 anos anteriores à crise, a doutrina económica que protege o sistema financeiro se ter enraizado de forma muito forte, rejeitando interpretações neo-keynesianas dos mercados financeiros e colocando uma enorme fé nos mercados como a melhor forma de organizar a sociedade. É possível identificar o rasto dessas ideias. Primeiro no mundo académico, depois nas elites da governação, como os bancos centrais e os governos, e depois na aplicação na prática das políticas. Portanto, quando a crise chegou, estas ideias tinham passado a ser vistas como senso comum. E isso é muito difícil de reverter. No lado material, assistimos ao aumento das portas giratórias, em que os agentes se movimentam do governo para o sector privado e do sector privado para o governo. Umas vezes uma pessoa está num papel de regulação, depois está num papel de maximizar os lucros, penso que é muito difícil conseguir fazer as duas coisas independentemente. Há uma grande influência do sector privado, nomeadamente do sector financeiro, nos governos e em particular nas partes dos governos que estão encarregues de regular o sector financeiro.

Quando fala desta força material, parece estar implícita uma acusação de um determinado nível de corrupção ou tráfico de influências. Não são demasiadas pessoas para se poder fazer este tipo de acusações?
Aquilo que eu digo não significa que estejamos perante uma conspiração ou que tenhamos corrupção, no sentido em que se possa fazer uma acusação de corrupção em tribunal. Mas há uma orientação no sentido de assumir novos riscos, de adoptar novos instrumentos financeiros, tornando o sistema mais susceptível a crises. E não é preciso que haja agentes individuais que estejam a violar alguma lei, mas a combinação das ideias – as de que é positivo deixar a finança funcionar desta maneira – e dos interesses materiais cria as condições para colapsos como o de 2007-2008.

Mas, no mínimo, há uma acusação de desonestidade...
Muitos destes comportamentos são individualmente racionais e legalmente correctos. A questão é que, ao criar cada elo da cadeia, há um determinado ganho para os agentes envolvidos, que depois, tudo junto, fazem com que existam vulnerabilidades muito significativas em todo o sistema. E os reguladores podem olhar para cada um dos elos e dizer que todos estão bem, que havia duas partes no negócio que concordaram com as condições, mas a verdade é que tudo junto conduz a vulnerabilidades. É óbvio que também há incidentes em que a desonestidade existe, como por exemplo, o escândalo da Euribor. Não quero excluir a existência de desonestidade e de conspirações, mas não creio que tenha sido a característica fundamental do caminhar para a crise.

Um dos argumentos dados para a falta de acção no controlo do sistema financeiro é a de que impor agora mais regulação e diminuir a dimensão dos bancos poderia acabar por conduzir a uma crise. É possível?
Parece-me que essa é uma área em que se nota a influência das ideias de que falei há pouco. O que é preciso é desenvolver competência e capacidade nos reguladores, para colocá-los ao nível em que se encontravam entre os anos 50 e 70, num período de forte crescimento. Não se cria uma crise por restaurar esse nível de regulação. Nos Estados Unidos, tem-se visto reguladores que têm como tarefa a protecção dos consumidores a ser forçados a enfrentar uma oposição muito forte de representantes de interesses muito minoritários.

  "A mobilidade dos capitais internacionais 
ameaça a capacidade doméstica para a regulação 
e para a democracia."

E é possível reduzir a dimensão do sector financeiro sem desencadear uma crise? Em muitos países, incluindo Portugal, há o medo de que se os governos não ajudarem os bancos em dificuldades, a consequência será uma crise.
Uma das coisas que pedimos no livro é que os banqueiros actuem como banqueiros e avaliem os pedidos de empréstimos pelos seus méritos, em oposição a um sistema em que o dinheiro é transferido através de um circuito complexo e que, talvez, com sorte, acabe por ser usado de uma forma produtiva. O que é preciso é encontrar forma de aproximar mais quem empresta de quem pede emprestado, para tornar estes créditos mais produtivos e garantir que existe uma maior probabilidade de serem pagos. Eliminar os agentes intermédios da finança sombra torna o sistema mais seguro e coloca-o numa posição de poder garantir mais crescimento e servir os interesses da sociedade.

Um país com a dimensão de Portugal, sozinho, conseguiria fazer mudanças significativas?
Os fluxos internacionais de capital tornam muito difícil a um único país unilateralmente controlar os capitais. Por isso, a coordenação é muito importante. E para países europeus de pequena dimensão é óbvio que é necessário que a União Europeia e o Banco Central Europeu sejam chamados a coordenar uma resposta nos sistemas financeiros. Mas para além disso, penso que seria possível e importante reduzir a capacidade para a ocorrência de fluxos de capital. E esta é até uma área em que se registou uma mudança depois da crise de 2007-2008, com instituições como o FMI, que durante décadas fazia campanhas contra controlos de capital e está agora bastante aberto à ideia de que os controlos podem ser úteis. A mobilidade dos capitais internacionais ameaça a capacidade doméstica para a regulação e para a democracia.

No meio das crises, assistimos a períodos de crescimento forte, impulsionados também pelo sector financeiro. Não reconhece algum mérito às inovações financeiras que têm vindo a ser lançadas?
Paul Volcker [ex-presidente da Reserva Federal norte-americana] disse uma vez que as caixas automáticas eram a única coisa útil que os bancos inventaram nos últimos 20 anos. E de facto, muitas das inovações financeiras que vão surgindo são na verdade formas de encontrar novos locais de extracção. E quanto menos competitiva for a inovação, melhor. A melhor forma de evitar isto é termos uma espécie de inspecção das inovações, como aquela que acontece por exemplo com os produtos farmacêuticos. E verificar-se-ia se a inovação era segura, se introduzia novos riscos sistémicos, qual era o seu propósito e se resolveria algum problema em concreto. Assim, as inovações úteis poderiam ser postas à prática, mas muitas das inovações que temos visto não passariam este tipo de risco.

  "E a democracia por vezes dá voltas inesperadas, 
neste caso, 
em direcção ao populismo de direita."


Dizem no livro que Donald Trump é um sinal da crise no sistema. Mas que consequências para o sistema é que pode ter a sua eleição?
A eleição de Trump – e também se pode dizer o mesmo por exemplo sobre o Brexit – representa a enorme frustração populista com a forma como têm vindo a ser geridas as economias nacionais e globais durante os últimos 40 anos: aumento da desigualdade, redução da concorrência, o declínio da qualidade da protecção social. Trump foi muito eficaz em termos eleitorais a beneficiar dessa frustração. Mas quando olhamos para o pacote de políticas que Donald Trump pretende implementar é basicamente mais do mesmo. Vemos o seu gabinete e reparamos que o sector financeiro está muito bem representado. Analisamos as medidas aplicadas e notamos que uma das poucas alterações legislativas que foram realizadas até agora é precisamente o recuo em várias das regras previstas na legislação Dodd-Frank e a eliminação de outros esforços de regulação. E portanto, se a eleição é em parte um resultado da frustração, parece extremamente improvável que o resultado venha a ser uma satisfação das necessidades dos eleitores.

Os partidos à esquerda, e em particular os representantes da social democracia, não conseguiram absorver os frutos dessa frustração...
Essa é uma das questões: porque é que os partidos sociais democratas se movimentaram para tão longe daqueles que são tradicionalmente os seus eleitores, com uma orientação diferente ao nível de questões como a regulação ou o mercado de trabalho, deixando uma parte grande da população sem um mediador entre eles e a exigência dos mercados. Houve lugares onde os partidos sociais democratas adoptaram o credo nos mercados de uma forma ainda mais entusiasta do que os partidos à direita. Nos EUA, por exemplo, o que teve como consequência a liberalização financeira do final dos anos 90. E a democracia por vezes dá voltas inesperadas, neste caso, em direcção ao populismo de direita.
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