sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Rochas, mares, solidões


Eliana Cardoso* 
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A mãe disse que o avô queria falar comigo. Fui à casa dele ouvir que não devia me mudar para o Rio de Janeiro com o Júlio. O avô conhecia o pai do moço: um louco varrido. Loucura corre na família e eu me arrependeria. Melhor ficar em Belo Horizonte, o avô disse. E sem me perguntar coisa alguma, me estendeu a mão para que a beijasse.

Naquele tempo os netos pediam a benção ao avô em beija-mão, um costume que me parece distante e do qual andava esquecida até começar a coluna de hoje.

Não ouvi o conselho. Fazia dois anos que, separada do pai do meu filho, me decidira a mudar de biografia e não ia voltar atrás. Poucos dias depois, eu, meu menino e o futuro companheiro, de mala e cuia, prontos para o mundo e o mar, partimos de ônibus. Lembro bem da sensação com que deixei a rodoviária em Belo Horizonte. O coração ia leve, pois felicidade não tem peso: é pluma voando, são borboletas amarelas - como as que rodearam Meme e Mauricio Babilonia em "Cem Anos de Solidão"- e me prometiam vida nova.

Júlio trabalhava no Ipea, e eu ia terminar o curso de economia na PUC. Ele e nossos amigos gostavam tanto de "Cem Anos de Solidão" que nossa forma de dizer alô passou a ser a frase de Úrsula, repetida por José Arcádio Segundo:

El tiempo pasa".

E a resposta, claro, era a mesma que Úrsula oferece:

"Pero no tanto".

Um ano depois da mudança, Júlio teve um surto paranoico e precisou ser internado. Deixou de herança o livro de Garcia Márquez comprado em Buenos Aires. Carreguei-o comigo em muitas mudanças e, neste ano de 2017, quando o lançamento da primeira edição completou 50 anos, achei que chegara a hora de reler o livro. Não o encontrei nas minhas estantes e comprei a tradução de Eric Nepomuceno (Editora Record), que vem com o discurso de Garcia Márquez ao receber o Prêmio Nobel e uma bela introdução na qual Nepomuceno fala de seus encontros com o autor.

Às vezes me pergunto quem são as pessoas que ainda leem livros de 450 páginas. Devem ser poucas, pois como regra muitos "círculos de leitura" em São Paulo escolhem 150 páginas como teto mensal. Mesmo assim, há quem volte no encontro seguinte se lamentando de que "não deu tempo de acabar". Eu não devia reprovar essa gente. Afinal, quando Macondo desaparecia em pavoroso redemoinho de poeira, "Aureliano pulou onze páginas para não perder tempo em fatos demasiado conhecidos". E ainda "deu outro salto para se antecipar às predições e averiguar a data e as circunstâncias de sua morte".

A narrativa de Garcia Márquez - que flui como um rio de crônicas ininterruptas contando a história de Macondo - começa com José Arcadio Buendía e termina, cem anos depois, com Aureliano Babilonia, misturando coisas reais e fantásticas, da mesma maneira como fazemos quando misturamos nossas experiências e percepções. Em seu discurso no dia em que recebeu o Nobel, disse Garcia Márquez: "Poetas e mendigos, músicos e profetas, guerreiros e malandros, todos nós criaturas dessa realidade desaforada, tivemos que pedir muito pouco à imaginação, porque para nós o maior desafio foi a insuficiência de recursos convencionais para tornar nossa vida acreditável. Esse é, amigos, o nó da nossa solidão".

Até às páginas finais, o romance parece escrito por um narrador onisciente. Na conclusão, o leitor descobre a história como desdobramento das profecias do cigano Melquíades, que a gravou em sânscrito. No seu último ato, Aureliano decifra os pergaminhos e lê o instante que vive, "profetizando a si mesmo no ato de decifrar a última página dos pergaminhos, como se estivesse se vendo num espelho falado". Percebe que naquele instante, a história de Macondo e dos Buendía será apagada da memória da humanidade, porque "as estirpes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma segunda chance sobre a terra".


Como o título torna evidente, o tema dominante é a solidão. No princípio, não se trata da sua forma trágica, mas da autonomia característica do lugar isolado do mundo conhecido, marca da pureza e da inocência e também da libertação das misérias cotidianas, momento que coincide com a criação. Macondo começa a existir livre dos conquistadores espanhóis, da burocracia e das culturas indígenas, porque sua gente vive na solidão do isolamento e no frescor da novidade que o romance oferece. Depois chegarão o Estado, a religião, o capitalismo e as guerras.

Mas o romance não fala apenas do isolamento coletivo. Há ainda a solidão individual experimentada por cada personagem. A forma mais triste está na loucura: o primeiro José Arcadio permanece amarrado a uma árvore, falando em uma língua estrangeira, perdido em seus pensamentos. E para evitar o perigo da contaminação, Úrsula diz ao marido que, se ele deve ficar louco, que fique louco sozinho. (E me arrepia pensar que disse o mesmo ao Júlio).

A expressão máxima da solidão se encontra na conquista do poder absoluto pelo Coronel Aureliano, cuja frieza interior lhe destroça os ossos. E ele ordena que se marque um círculo de giz em torno dele para que ninguém se aproxime em momento algum.

No caso de Amaranta, ela resulta da negação. A virgindade, da qual ela não desiste, se encontra representada na mão enfaixada que sinaliza sua solidão até a morte.

Todos os outros personagens também sofrem de alguma forma de solidão. Sua expressão mais dramática se encontra na de Aureliano, literalmente sozinho, preso dentro da casa, mesmo quando já não há mais ninguém para fingir que o guarda. Nada resta a Aureliano a não ser decifrar os pergaminhos de Melquíades.

Na ciência, na filosofia ou na política, o homem tenta separar ilusão e realidade. Existe um paradoxo na dependência dessa separação para as conquistas científicas ao mesmo tempo em que o homem continua a tirar sua força psicológica do poço espiritual dos mitos. Ao recusar o paradoxo, Garcia Márquez conquista sua vitória. Para ele, as percepções são expressões da realidade e dela não se distinguem. Quando Meme cai de amores por Mauricio Babilonia e se vê cercada por um enxame de borboletas amarelas, não vale perguntar se elas são reais ou imaginárias. No mundo de Garcia Márquez a distinção não importa. As borboletas estão lá.

E, assim, o autor quebra a distinção entre símbolo e realidade. O resultado é que a distinção convencional entre linguagem figurativa e literal perde o sentido. Os termos literários convencionais se tornam inadequados para descrever essa fusão literal e metafórica da língua. "Não temos termos técnico-literários prontos para abordar o estranho modo de contemplação ativa que está no cerne deste processo de composição [...]. Não há ponto de vista nessa narrativa [...]. Não há fluxo de consciência, nem estilo indireto livre. Não há ordem inicial, desafiada e, finalmente, restaurada. Nem digressões. A linha narrativa persegue sua própria lógica interna sem distração e sem realismo ou fantasia. As grandes imagens - os fantasmas que envelhecem e morrem, o amante que emana borboletas amarelas - não são símbolos nem metáforas, mas simplesmente desenham a própria linha narrativa, em sua inexorável progressão temporal e sua teimosa rejeição de qualquer distinção entre o subjetivo e o objetivo, o sentimento interior e o mundo externo", escreveu Frederic Jameson, autor de "The Antinomies of Realism" (disponível em e-book).

Também se pode ler "Cem Anos de Solidão" do ponto de vista da política, em particular a da Colômbia, com sua guerra institucionalizada entre liberais e conservadores. Aureliano Buendía fez 32 guerras civis e perdeu todas. Sim, seria possível falar de política, mas seria outra resenha.

Antes que eu me vá, coração, mais um pequeno parágrafo. Talvez você tenha ficado curioso a respeito do que se passou com o Júlio. Ele voltou da clínica inchado depois do longo tratamento com choques de insulina e nós nos separamos. O tempo passou, ele se casou com outra mulher e eu com outro homem.
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* Eliana Cardoso, economista e escritora, escreve neste espaço quinzenalmente
E-mail:eliana.anastasia@gmail.com
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