quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

Avareza, causa e efeito do capitalismo

Marcia Tiburi*
Avareza, causa e efeito do capitalismo 
(Arte: Andreia Freire)

Toda ideologia é movida por afetos. Assim como há afetos positivos, há afetos negativos. Do mesmo modo, além de afetos políticos, existem afetos econômicos. O capitalismo, sob cujo signo vivemos, é regido pelo afeto da avareza. 

Do retorno do Brasil ao mapa da fome (do qual, a propósito, havia saído em 2014) às medidas de austeridade adotadas em diversos países, da recente ameaça de diminuição do salário mínimo ao cancelamento de direitos que ocorre diariamente, estamos diante da lógica da avareza. O capitalista é um pão-duro que calcula quanto custam seus filhos, funcionários ou cidadãos; um pão-duro que vive do controle de corpos e de desejos e que, para isso, precisa apertar o cinto ou o pescoço conforme a potência e a consequente periculosidade dos agentes que não aderem à sua lógica.

A avareza é causa e efeito do capitalismo. Sem avareza não existe o capitalismo. Jesus de Nazaré pregava o amor, um afeto contrário à avareza, profundamente ligado à generosidade e em tudo anticapitalista. Da paz hinduísta ao sexo livre dos hippies, vemos surgir o contrário da avareza, o esbanjamento. Quando se trata de afetos, só é possível pregar. Não é possível argumentar. Hoje a avareza fala por si e traduz todos os discursos da indústria e do mercado. 

Guy Debord dizia que o espetáculo é a relação social mediada por imagens. Podemos dizer que o capitalismo é a relação social mediada pela avareza. A avareza é um tipo de afeto que regula o todo das relações enquanto relações sociais, sejam elas institucionais, sejam relações interpessoais.

O princípio de morte do capitalismo, sua capacidade de destruição relaciona-se com a lógica da avareza. Ela é a micrológica que rege a vida cotidiana na qual vemos medir-se centavo por centavo, célula por célula e cabeça por cabeça. O incômodo da classe média com as políticas sociais define a heresia de governos que não sustentaram a avareza capitalista até as últimas consequências, a morte dos pobres. 

A micrológica da medida reduz todas as coisas à forma mercadoria. O roubo se torna a grande heresia contra a propriedade privada que representa a força de lei da avareza. No entanto, se a própria propriedade privada se ergue sobre o roubo, nada acontece, pois a avareza é a confirmação da dominação de classe.

A sacralização dos centavos ou a lógica da picuinha

Na esfera pública, a avareza impera como economia contra a política, enquanto, na esfera da vida privada, ela se dá como sacralização dos centavos. Qualquer gesto de generosidade nos deixa surpresos, porque, na lógica da avareza, ninguém tem coragem de tratar o dinheiro como se fosse algo menos importante. Nessa lógica, é preciso dar aos mendigos um mínimo, para que não esbanjem e, nem por um segundo, pensem que são mais do que parecem ser.

A “picuinha” é o princípio lógico. Junto à lógica da opressão, do estupro, da lógica binária do bem e do mal, dos reducionismos em geral, do ciúme e da inveja, a picuinha tem uma validade absoluta. Reduzido a resquício, o outro – corpo e linguagem – é medido milimetricamente para não ultrapassar limites aos quais está condenado. A estética burguesa dos shoppings centers, a mania obsessiva dos consumidores, a ração do prefeito de São Paulo são medidas contra qualquer excesso. A exuberância é controlada por quem pode pagar por ela. Faz parte da lógica da picuinha reservar a exuberância que todos desejam para uns poucos enquanto ela é deturpada em ostentação. 

As condições ideológicas e psicossociais para que o capitalismo se mantenha sustentam-se sobre a avareza. O “pobre de direita” é a vítima da avareza que torna ele mesmo um avarento. A avareza informa sobre a satisfação possível, produz a sensação de um superego forte, capaz de sobreviver com pouco. 

É a compensação pela miséria do espírito que acoberta a miséria concreta da vida em sociedade. 
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* Artista plástica, filósofa, professora de Filosofia e escritora.
Fonte:  https://revistacult.uol.com.br/home/marcia-tiburi-avareza-causa-e-efeito-do-capitalismo/06/12/2017

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