quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

Os fins da democracia

Vladimir Safatle*
 
Os fins da democracia 
(Arte: Andreia Freire)

Conferência pronunciada no seminário “Os fins da democracia” enquanto manifestantes gritavam pelo cancelamento do evento e defendiam valores da tradição, da família e da propriedade:

O que significa trazer esta discussão sobre “Os fins da democracia: estratégias populistas, ceticismo em relação à democracia e a procura pela soberania popular” para o Brasil do final de 2017? Não seria possível começar este simpósio sem colocar, de forma explícita, tal questão. A sua maneira, ela ressoa outra questão, a saber, o que pode ainda a universidade? O quanto ela ainda é capaz de mobilizar e levar a sociedade a ver o que muitos gostariam de não ver. Pois é fato que poucos foram os simpósios feitos em nosso país que tenham sido alvo de tanta ameaça e pressão por cancelamento quanto o nosso. E se um simpósio acadêmico, quando associado a uma instituição de grande alcance público, como o Sesc, pode provocar tantas reações, então há de se perguntar se o lugar social da universidade é tão extemporâneo quanto alguns gostariam de nos fazer acreditar. Pois, por trás do diagnóstico contemporâneo da obsolescência da universidade, há também o desejo de que assim seja, de que a universidade reconheça sua pretensa irrelevância e, como se diz, adapte-se. 

No entanto, no horizonte do Brasil do final de 2017, um horizonte que não diz respeito apenas a nosso país, já que vários de seus traços são partilhados por outros países, setores importantes da vida universitária têm usado sua força para ressoar o fato de que nossa redemocratização sempre incompleta, nossa transição infinita ruim em direção a uma democracia nunca vista produziu, ao final, um regime de cinismo e de guerra civil implícita. Assim, se estamos atualmente a discutir os fins da democracia em seu duplo sentido é porque poucos foram os países como o Brasil que se debateram de forma tão explícita contra sua impotência em dar forma institucional a uma soberania popular substantiva. Desde o final da ditadura, com sua campanha de Diretas Já, o Brasil se mostra como um país, como dizia Florestan Fernandes, da contrarrevolução permanente, da capacidade em gestar acordos de elite que afastem a possibilidade de verdadeiras incorporações políticas populares.

Mas isto não poderia ser feito sem as múltiplas estratégias de silêncio, que vão das mais discretas às mais violentas. E uma das mais violentas dessas estratégias foi usada agora, quando grupos organizados, com apoio de estruturas internacionais (haja vista o site que circulou uma petição de cancelamento da palestra de Judith Butler ser sediado na Espanha e financiado por fontes não identificadas), se voltaram contra uma atividade de debate como a nossa. Não se tratava de protesto contra certas ideias, mas de pressão visando ao simples cancelamento.

Esses que lutaram para nos impedir de falar não temeram em dizer que falavam em nome da “maioria esmagadora do povo brasileiro”. Ou seja, a lógica é afirmar que eles são o “povo”, com seus pretensos valores saudáveis, seus hábitos trabalhadores, enquanto nós, especialmente intelectuais e artistas, seríamos a verdadeira elite ociosa que vive de dinheiro público, de benesses de fundações privadas internacionais, propagando comportamentos viciosos e doentios. Enquanto eles ficam calados diante do sistema neoliberal de blindagem das elites financeiras que drenam as riquezas do país e tomaram de assalto o poder político, procurando chantagear a soberania popular através da ameaça da “desconfiança dos mercados”, eles querem fazer acreditar que artistas e intelectuais seriam os verdadeiros sanguessugas da riqueza nacional, em uma clássica reedição dos ataques nazistas contra o “bolchevismo cultural”. 

Como se vê, a estratégia gira em torno de quem é capaz de constituir o “povo” como ator político e, com isso, designar quem está fora do “povo” como enunciador. Nesse sentido, nada mais adequado para um seminário que visa, entre outras coisas, discutir exatamente as estratégias populistas e sua hegemonia atual. Por isso, talvez seja o caso inverter suas acusações e lembrar que há, sim, momentos em que as estratégias populistas são necessárias, mesmo que provisoriamente necessárias. Uma lembrança que pode nos levar a dizer àqueles que procuram simplesmente nos calar, dizer em alto e bom som: “Não, vocês não são o Brasil”. 

Vocês habitam um outro país, um país inominável e infame que não se incomoda em ser defendido por Sergio Fleury, por oligarcas que passam seus cargos públicos de pai para filho, por Filinto Müller, por militares com sanha golpista inconfessa. Um país que sonha em acalmar seus medos apelando à violência de Estado, que delira com o comunismo saindo por todos os poros. Não é a primeira vez na história brasileira que vocês procuram nos calar, nem que seja apelando à violência, à tortura, ao desaparecimento. Basta perguntar quantos destes que hoje estão protestando não sonham com um golpe militar que pudesse nos apagar de vez e nos expulsar mais uma vez deste território. Vocês já atiraram em nós mais de uma vez. Qualquer pessoa sensata não duvidaria que isto pode ser feito uma segunda vez.
Esse país sem nome que procurou nos calar não se deixa afetar com as verdadeiras violências sexuais contra mulheres, travestis, homossexuais e crianças; é completamente indiferente à espoliação da classe trabalhadora através de aparatos legais desenvolvidos para retirar toda capacidade de organização e luta de quem recebe salários miseráveis e humilhações cotidianas. Um país que nunca se afetou por seus próprios genocídios indígenas e por seu racismo que, como se diz aqui, não existe já que louvamos a miscigenação. Esse país, no entanto, nunca foi o Brasil. 

Contra este país há um outro, sempre existiu um outro que se chama Brasil e que sempre lutou para emergir. Para quem não sabe onde está este país que sejam lembrados os gritos de revolta de Zumbi, a tenacidade de Pagu, o espírito inquebrantável de Luis Carlos Prestes, os cabanos, os que lutaram de todas as formas contra a ditadura militar, Marighella, os camponeses mortos em suas lutas por terra, os estudantes que ocupam escolas contra seu fechamento. Todos esses que nos ensinaram e nos ensinam que é melhor morrer de pé do que viver de joelhos. Este país é enorme, mas muitos querem nos fazer acreditar que ele não existe, que ele é fraco. Contra estes que querem nos colonizar através da imagem de nossa pretensa fraqueza, há de se lembrar: nós já estivemos aqui antes, nós já fomos ameaçados outras e inúmeras vezes e continuamos aqui, sem ser calados. Pois, no fundo, sabemos, como disse uma vez Walter Benjamin: 

“O passado traz consigo um índice misterioso, que o impele à redenção. Pois não somos tocados por um sopro do ar que foi respirado antes? Não existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram? Não têm as mulheres que cortejamos irmãs que elas não chegaram a conhecer? Se assim é, existe um encontro secreto, marcado entre as gerações precedentes e a nossa. Alguém na terra está à nossa espera. Nesse caso, como a cada geração, foi-nos concedida uma frágil força messiânica para a qual o passado dirige um apelo. Esse apelo não pode ser rejeitado impunemente.” 
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*Vladimir Pinheiro Safatle é um filósofo e professor chileno-brasileiro, livre-docente da Universidade de São Paulo. Notabilizou-se ao grande público sobretudo por sua atividade como colunista no jornal Folha de S. Paulo.
Fonte:  https://revistacult.uol.com.br/home/vladimir-safatle-os-fins-da-democracia/ 06/12/2017

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