domingo, 10 de dezembro de 2017

Quem sou eu

Lya Luft*

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Não foi a primeira vez que, em tantos anos, me perguntaram isso assim diretamente. "D. Lya, quem é a senhora?" ou: "Afinal, quem é Lya Luft?". 

Ah, eu queria saber. Ou não quero correr esse perigo? Desde menina, essa curiosidade: quem sou eu, quem somos nós, a família, os amigos, essas pessoas todas, o que faz o vento soprar, as nuvens ficarem vermelhas, a chuva cair, alguém adoecer? (Muito pequena, eu só sabia que morriam passarinhos e borboletas.) 

Quero saber, isso me interessa? O que sei, ou penso, é que sou cada dia, cada hora, cada riso, cada pranto, cada golpe, cada perda, cada carinho. Talvez nem queira descobrir, eu que tanto escrevi sobre esse mistério que somos todos nós, mergulhados num enigma infinito, e de vez em quando nos afogando nele. Não sei, de verdade. 

Mas, em geral, fui o que chamam uma pessoa legal. Nada de mais: péssima aluna, teimosa, pouco ambiciosa, que diferença fazia tirar o primeiro lugar na turma (isso naqueles tempos aparecia no boletim), ou a mais conversadeira, a que ria fora de hora, a que não prestava atenção? O bom mesmo era ser a mais divertida, e talvez aquela com alguns segredos. Por exemplo, as coisas que eu lia em casa, além das castíssimas revistas de amor, como Cinderela e outras. Pegava livros à vontade da biblioteca do pai, ou a da mãe, esta na sala. Romances na sala, teatro grego, filosofia, naturalmente Direito, no escritório do pai. Alguns, considerados "fortes", ficavam bem em cima, onde sem escada eu não alcançaria. Curiosidade e medo. Ao rés do chão, uma fileira longa de livrinhos amarelos, finos, capa mole, a série de histórias de detetive que meu pai dividia comigo e me fizeram gostar até hoje de séries como Criminal Minds ou SVU (não vivo só de Goethe ou Machado!). 

Colegas não tinham ideia dessas minhas leituras bizarras, que em geral eu nem entendia bem, mas achava - especialmente teatro grego - lindo todo aquele sofrimento. Volumes e volumes de história, que eu adorava, enquanto na escola não conseguia decorar as datas mais simples. Um velho professor certa vez disse que eu "aprendia pra trás", isto é, ou intuía na hora, ou, quanto mais me explicavam, menos entendia. Era verdade, e continua assim. 

Uma coisa eu sabia que era e sempre serei: amadora de livros. Quero ficar em paz acomodada na poltrona ou no sofá, pés em cima da mesinha (Melanie, minha mimadíssima spitz encolhida ao lado), lendo, lendo, lendo. Descobrindo que não há muitas respostas - mas o desejo de saber me mantém viva, apesar do assalto que arrancou sem anestesia um pedaço do meu coração recentemente. Primeiro, porque há toda essa família que eu amo, e eles a mim. Algumas amizades essenciais, que seguram minha mão ainda que pelo whats. O parceiro aguenta com delicadeza meu silêncio, a falta das bobagens e palhaçadas habituais, mas quem sabe elas retornam. E esse filho que se foi, para não sei onde, e que - isso eu acredito - ainda nos enxerga, nos ama, e não quereria ver sua mãe feito um trapo que mal sai da cama e passa o dia enrolada num velho robe. 

Por todos eles e, sim, pelo leitor que lê isto, e quem sabe vai ler este novo livro, meio órfão, A Casa Inventada - que acaba de nascer, eu devo ser alguma pessoa. Esta pessoa.
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* Escritora. Tradutora. Colunista da ZH
Fonte: http://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/gruporbs/acessivel/materia.jsp?cd=a706b4d72de0eae9e9682f3ba03adfd7 09/12/2017
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