quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

Amadeu Baptista: ‘Não acredito na inspiração, mas na perseverança’


Amadeu, quando é que surgiu a sua vontade de escrever poesia e de publicar?
Escrever é uma coisa, publicar é outra, bem diferente.
Quanto à questão da escrita, para ser franco, não sei quando a vontade de escrever teve início. Não tenho na memória o momento exacto em que, por auto-recreação, comecei a escrever. Nesse tempo, um instante longínquo da infância, apenas sei que não houve qualquer premeditação para a escrita, aconteceu porque aconteceu, talvez por deslumbramento pelas palavras, ou encantamento pelos seus ritmos, ou outra coisa qualquer que me prendeu a atenção e me fez seguir em frente. Talvez por refinamento de um gozo pessoal que me fazia descobrir as coisas do mundo, sem grande consciência de que isso estava a acontecer. Uma espécie de descoberta em que tudo se incluía, das palavras à componente sexual, em equilíbrio e/ou em desequilibro com as coisas com que fui confrontado nessa remota idade. Um tempo em que nada se declina, afinal, se se dá o caso de nos atingir. E, atingindo-nos, uma coisa que me foi invadindo as ideias e o corpo, como um bálsamo ou um vírus a que não se escapa. E, entretanto, sublinhar que mais do que a componente da escrita que se experiencia, ou não, o que importa é a experiência da leitura que se descobre na infância, a leitura das casas e das ruas, das noite e dos dias, do calor e do frio, de quem nos rodeia e ama ou despreza: a leitura lustral do mundo sem a qual nunca viremos a escrever coisa nenhuma.

Publicar só muito mais tarde ocorreu, primeiro esparsamente, numa ou noutra página literária extemporânea e, depois, porque a oportunidade surgiu e, impunemente, quis ceder a essa vaidade. Publiquei o meu primeiro livro em 1982 e, neste ano de 2017, foi dada a lume uma grande antologia das minhas coisas, 35 anos de actividade literária. No meu caso, digo-o sem grandes certezas, talvez publicar, ao longo de tantos anos, advenha, apenas, da vontade de, livro a livro, ir pondo o que faço em perspectiva, por um lado e, por outro, pela vontade de partilhar com os outros o meu esforço de leitura do mundo e das suas abrangências. É um pouco como fazer, fase a fase, o ponto de situação de um trabalho que nos dominou e domina, e que se vai apurando a cada ano que passa.

Onde é que, por norma, encontra a inspiração para escrever as suas obras?
Não acredito na inspiração, mas na perseverança. Não escrevo nunca premeditadamente e se a minha poesia vem de algum lado, presumo que seja dessa obsessão fatídica pela escrita que sempre esteve presente na minha vida. Uma obsessão que é eixo e pedra angular, para o bem ou para o mal, de tudo o que ponho nos poemas, numa tentativa tenaz de, pela arte, acertar na vida e nos seus abismos.

Quais as temáticas mais presentes na sua escrita?
A poesia não se circunscreve a qualquer temática e é de todas elas fio condutor e resultado. Há o amor, há a morte, há a liberdade, há a justiça, etc., há um pouco de tudo que possa considerar-se temática, no âmbito da poesia e da criatividade. E há também o que se propõe como novidade e desconstrói as ideias que tínhamos formuladas sobre certa ordem estética estabelecida, em nós e nos outros. Em poesia, esse será porventura o maior desafio e a maior vitória, e a maior derrota, numa dialética irreversível a que é impossível escapar. Termino um livro e logo quero escrever um outro que possa desdizer-me ou ampliar-me. Um inferno, portanto.
 

Que aspectos destacaria relativamente à sua mais recente obra; “Ondina”?
“Ondina” é um longo poema que pretende homenagear Maria Ondina Braga, uma autora de obscuros clarões que me fascinam. A homenagem fica no livro, com versos que querem acompanhar a vida alucinantemente humilde desta singularíssima mulher, dona de uma obra que espero não caia no esquecimento, como com tantos autores magníficos tem vindo a acontecer. Além do mais é, ainda, uma tentativa de levar uma técnica poética a outro limite, uma vez que é neste livro que mais longe levo a vertente dramática e teatral numa forma poeticamente assumida.

Quais os momentos mais marcantes no seu percurso enquanto escritor?
Tudo o que está na minha cabeça sobre o meu percurso enquanto escritor me designa como alguém que está sempre no fio da navalha, a tentar compor um concerto e um desconcerto infindável, com o conhecimento de que é o próximo livro o que será mais marcante quando me puser a escreve-lo. Não mando nada na minha poesia, se há momentos marcantes para referir serão os que me levaram a determinado poema, com gosto e com desgosto de o ter sofrido e, obviamente, o que está ainda por fazer e terá que ser feito até que as minhas capacidades o permitam.

O que é, para si, um bom livro?
O que me mostra e ensina o abismo e não faz qualquer concessão, a ponto de, entre o que leio e o que vivo, não sobejarem ilusões de qualquer tipo, ampliando, entretanto, a experiência da vida. De um livro quero que me deixe sem fôlego até à asfixia, permitindo-me que assim possa levar a sua leitura até ao fim.

E o que faz de um escritor um bom escritor?
Não alinho nesta premissa e não aposto neste jogo: um mau escritor não é um escritor e um bom escritor não é mais que um escritor. Estas dicotomias servirão ao mercado dos livros e ao seu folclore, mas não servem à minha consciência, que tenta sempre distanciar-se da infantilização dos termos que a indústria propõe e alimenta, desvirtuando a literatura e manchando indelevelmente a sua nobreza intrínseca.

Para terminar, gostaríamos que nos indicasse os seus 7 escritores de eleição e os 7 livros que, indubitavelmente, recomendaria.
Autores: Camões, Gil Vicente, António Vieira, Fernando Pessoa, Ruy Belo, Jorge de Sena. O sétimo da lista reparte-se do modo mais abrangente possível por todos os poetas portugueses e estrangeiros que tive oportunidade de ler: tantos que não é possível enumerá-los.
Livros: Ilidia, de Homero; Epigramas, de Marcial; A Divina Comédia, de Dante; Obra lírica, de Camões; Cidadela, de Antoine Saint-Exupéry, Todos os poemas, de Ruy Belo; Poesia, de Jorge de Sena.
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Fonte:  https://escritores.online/entrevistas/amadeu-baptista/

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