sábado, 13 de janeiro de 2018

Catherine Millet: “É preciso deixar de pensar que a mulher é sempre uma vítima”


A escritora francesa Catherine Millet, em sua casa, em abril de 2016.

Catherine Millet, promotora do manifesto contra o #MeeToo, denuncia seus métodos e consequências

A escritora francesa Catherine Millet, em sua casa, em abril de 2016. Aurimages
Seu manifesto conseguiu semear o caos na França e em boa parte do mundo. A escritora e crítica de arte Catherine Millet (Bois-Colombes, 1948), autora do best-seller A Vida Sexual de Catherine M., é uma das cinco mulheres por trás do manifesto contra o #MeToo, assinado por 100 personalidades da cultura francesa, lideradas pela atriz Catherine Deneuve, a cantora Ingrid Caven e a editora Joëlle Losfeld. Millet diz que esse movimento, que rotula de “puritano”, favorece a volta da “moral vitoriana”. Ela defende “a liberdade de importunar”, inclusive no sentido físico, considerando-a indispensável para assegurar a herança da revolução sexual. É o que afirma em seu escritório parisiense, um quarto cheio de catálogos amontoados onde o telefone não para de tocar desde que começou a dirigir a revista Art Press, que cofundou em 1972.

Pergunta: Vocês esperavam as violentas reações que o texto provocou?
Resposta: Absolutamente. Só quisemos reagir ante a palavra das feministas radicais, que era a única que líamos na imprensa. Aquilo nos incomodava, pois não era um ponto de vista que compartilhássemos e porque, ao nosso redor, conhecíamos muitas mulheres que não pensavam assim. No meu entender, você não fica traumatizada durante anos porque um homem tocou na sua coxa. A ideia era contar que nem todas as mulheres reagimos da mesma forma ante gestos que podemos considerar grosseiros ou indelicados.

P. Criticaram sua falta de solidariedade em relação às outras mulheres...
R. Ninguém pede a um homem que compartilhe as opiniões de todos os demais homens do planeta. Isso é impossível. Não estamos dizendo que achamos bom que estuprem as mulheres; o que fazemos é mostrar os deslizes cometidos por esse movimento. Por exemplo, questionar certos homens por atos mínimos e que tiveram consequências graves em suas carreiras. Foi criado um tribunal público onde eles nem ao menos tiveram a chance de se defender. De repente, tivemos a sensação de que todos os homens eram porcos. É preciso estar na pele dos que sofreram violência sexual, mas também pensar nos homens que foram vítimas de acusações muito rápidas e com sérias consequências para suas vidas profissionais.

“Se me estuprassem, tentaria esquecer”

P. Ressaltando as disfunções do movimento e não seus acertos, vocês não correm o risco de prejudicar essa tomada de consciência sobre a violência sexual e os abusos de poder, que seu próprio manifesto considera “necessária”?
R. As feministas não dizem que a palavra foi libertada? Então, se é assim, nossa palavra vale o mesmo que a delas. A censura que esse caso pôde provocar me parece ridícula. É muito grave que se remova um ator de um filme [Kevin Spacey, substituído por outro ator em Todo o Dinheiro do Mundo após ser acusado de agressões sexuais]. São métodos que me fazem lembrar os do stalinismo...

P. Seu movimento fala de “uma onda purificadora” que acabaria instalando “uma sociedade totalitária”. Não é um pouco excessivo?
R. Justamente, você cita uma frase que eu escrevi. Em todo texto polêmico há um pouco de exagero, mas eu o assumo totalmente. Vejo surgir um clima de inquisição, em que cada um vigia seu vizinho, como acontecia nos regimes soviéticos, e depois o denuncia nas redes sociais. Todos os cantos da sociedade estão sob vigilância, incluindo nossa esfera íntima...

“A codificação de nossas relações é impossível, a não 
ser que nos transformemos em robôs”

P. Essas acusações não são o resultado de uma Justiça imperfeita, por causa das prescrições de crimes e da falta de provas?
R. Concordo, mas esse não é o melhor método. Se cada cidadão faz justiça com as próprias mãos, retornamos aos tempos do faroeste. A Justiça tem defeitos, e é inegável que não dá conta de tudo, mas vivemos numa sociedade que aceita que é ela a encarregada de julgar, não um tribunal popular. Nisso eu sou radical.

P. A senhora foi acusada de antifeminista. É de fato?
R. Se falamos desse feminismo específico, realmente sou contra. Mas hoje existem várias correntes feministas... Me sinto mais próxima das feministas que integram o sexo em seu discurso — que costumam ser mais jovens que eu — do que das que expressam, através do movimento #MeToo, posições radicais que nunca compartilhei, nem agora nem durante os anos setenta. O feminismo continua sendo muito justificado no entorno social. Por exemplo, no que se refere à igualdade salarial. Também defendo essa igualdade na liberdade sexual, isso damos por certo...

P. Vocês também são criticadas por serem quase todas brancas e burguesas. Por defenderem, no final das contas, uma postura elitista.
R. Sim, nos criticaram por não andarmos de metrô. Na verdade, eu pego o metrô várias vezes por dia. Quando era mais jovem, certa vez um homem passou a mão em mim no transporte público, e nem por isso morri ou me tornei uma inválida.... Entre as signatárias do manifesto, há uma mistura geracional e de origens. Por outro lado, as mulheres que nos atacam também são intelectuais e universitárias, assim como nós. Catherine Deneuve deve ter um modo de vida um tanto diferente, mas todas as demais somos bastante parecidas com as que nos atacam...

“A censura já não provém de círculos extremamente conservadores, mas de mulheres que 
se consideram feministas”

P. Considera que o famoso “direito de importunar” que o texto defende é mais importante que o direito de não ser importunado?
R. É que as duas coisas andam juntas.... Quando um homem te incomoda, você tem a liberdade de lhe dizer que pare com isso. Temos a capacidade de dizer que não. Por outro lado, importunar é uma palavra bastante leve. Não é o mesmo que assediar, nem de longe. Alguém pode importunar você fumando do seu lado num lugar público...

P. Não é o mesmo grau de intrusão que tocar em alguém.
R. Sei que criticaram muito essa palavra, mas abram os dicionários. Veja, vou buscá-la... [procura a definição em seu tablet]. Importunar é sinônimo de incomodar, aborrecer, causar desconforto, irritar...

P. Mas a senhora entende que existam mulheres que não querem ser importunadas quando passeiam pela rua ou vão ao metrô?
R. Não. Acredito que há uma margem em que o comportamento dos demais pode acontecer sem que seja considerado um crime. Você pode achar desagradável e reclamar, mas nem por isso é um crime. E, como tal, não quero que esteja regulado, nem por uma moral superior nem pela lei. É preciso aceitar que existem impertinentes na vida. Essas mulheres parecem almejar uma sociedade utópica e regulada nos mínimos detalhes, onde um homem deverá tomar precauções antes de se dirigir a uma mulher. A codificação de nossas relações é impossível, a não ser que nos transformemos em robôs.

P. A senhora afirma que esse direito de importunar é indispensável para garantir a liberdade sexual. Em que sentido?
R. Numa relação entre dois indivíduos, sempre há um momento confuso e ambíguo, em que um dos dois não sabe muito bem o que quer. Quando um homem tentava me seduzir, às vezes sentia uma atração que não era grande o suficiente para ceder de imediato. Um momento de dúvida. Às vezes você acaba cedendo; em outras, não. Essas mulheres dizem que um “não” sempre é definitivo, mas eu acredito que existam nuances. Às vezes, os homens têm uma oportunidade se insistirem novamente.

“Se comparo minhas possibilidades com a vida que minha 
mãe teve, numa única geração 
ganhamos muito”

P. Seu movimento denuncia um retorno à moral vitoriana. De novo: não é um pouco exagerado, numa sociedade em que a sexualidade é onipresente?
R. Há tempos acredito que, quanto mais liberdade existe no discurso e na circulação de imagens, mais se exasperam os setores que a consideram incômoda – e sua reação se torna cada vez mais violenta. O surpreendente é que essa vontade de censura já não provém de círculos extremamente conservadores, mas de mulheres que se consideram feministas. Não sei se você viu as duas meninas que pediram ao Metropolitan de Nova York que retirasse um quadro de Balthus: eram duas jovens modernas e provavelmente de esquerda...

P. São casos pontuais, que já ocorriam muito antes do movimento #MeToo. Pintores como Balthus e Schiele, ao qual seu texto também se refere, geram escândalos há décadas. Não tomam a exceção como se fosse a regra?
R. Sim, mas acredito que devemos reagir com rapidez, pois os efeitos podem ser imediatos. Veja o caso desse professor norte-americano demitido por mostrar imagens do século XVIII, provavelmente um tanto libertinas, aos alunos. Alguns dos pais as haviam considerado pornográficas!

P. “Lamento muito não ter sido estuprada, porque assim poderia dar fé de que um estupro também pode ser superado”, disse a senhora em dezembro. Sua frase gerou um enorme escândalo. Se arrepende de tê-la pronunciado?
R. Não. Foi uma formulação um tanto cômica e sem reflexão, mas só porque não queria me expressar com um tom excessivamente grave. Tendo a vida sexual que tive, na qual contei com muitos companheiros diferentes — alguns deles, perfeitos desconhecidos —, sempre disse que, se me encontrasse numa situação de estupro, não me defenderia. Assim sofreria menos riscos, pois conseguiria neutralizar a violência do agressor. Se a violência desse ato tivesse me transtornado, acredito contar com a capacidade moral suficiente para superar esse fato e tentar esquecê-lo. Essa é minha resposta pessoal. Há pouco tempo, li uma entrevista de uma advogada que havia sido estuprada quando jovem e que desaconselhava suas clientes a denunciar e processar, porque isso só te faz prisioneira do sofrimento. Salvo em casos em que haja consequências físicas graves, acredito que a mente consegue vencer o corpo.

“Vejo surgir um clima de inquisição, em que cada 
um vigia seu vizinho”

P. Não acha que um estupro também tem consequências psicológicas?
R. Elas existem para algumas mulheres, mas não para todas. É preciso deixar de pensar que a mulher é sempre uma vítima. Pode ser vítima desse ato num instante, mas também pode encontrar a capacidade de reagir...

P. Uma das signatárias do texto, a filósofa Peggy Sastre, é autora de um ensaio intitulado A Dominação Masculina Não Existe. Concorda com isso?
R. Existe, mas não em todas as partes. Em nossa sociedade, atualmente e na classe média, as mulheres contam com um grande poder. No âmbito doméstico, com frequência são elas que impõem sua vontade dentro do casal, por causa da culpabilidade dos homens jovens e do fato de trabalharem e serem economicamente livres...

P. Então, onde persiste a dominação masculina?
R. Vou esquivar a pergunta... Houve tantos avanços nas últimas décadas... Se comparo minhas possibilidades com a vida que minha mãe teve, numa única geração ganhamos muito. Mas as feministas continuam interessadas em nos fazer acreditar que nossa sociedade é unicamente patriarcal. Isso não é verdade. Acho que também existe um matriarcado...

P. Considera que o patriarcado é coisa do passado?
R. Digamos que foi drasticamente reduzido.
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Reportagem por  / París 12 JAN 2018 
Fonte:  https://brasil.elpais.com/brasil/2018/01/12/cultura/1515761428_968192.html 

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