domingo, 11 de março de 2018

Luc Ferry: “Maio de 1968 não era uma revolução política, mas social”

Foto: Carla Ruas / CPMemória

Filósofo consagrado, autor de best-sellers  como ‘Aprender a Viver: Tratado de Filosofia para uso das jovens gerações’, ministro da Educação da França de 2002 a 2004, durante a presidência de Jacques Chirac, Luc Ferry é um dos mais acerbos críticos do movimento estudantil de maio de 1968, que explodiu na França e se espalhou pelo mundo mudando comportamentos e corroendo a estrutura autoritária dos costumes vigentes. Nesta entrevista ,ainda não publicada na revista francesa de esquerda “Le Nouvel  Observateur”, no ano do cinquentenário de maio de 1968, 
ele faz o grande balanço.
 
CS − Em maio de 1968, o que o senhor estava fazendo?
Luc Ferry – Eu tinha 17 anos, havia o ensino médio desde o começo, não conseguia suportar o autoritarismo, o lado militar da minha infância, e preparei minha candidatura livre ao BAC (exame de saída do nível médio obrigatório para quem pretenda acesso ao ensino superior), através da educação a distância. Então, eu era bastante atípico, fora do que Agostinho Cochin chamava de “sociedades do pensamento”, aqueles clubes que desempenharam um papel tão importante em 1789 e novamente em maio de 68. Meu pai era gaullista, ele escapou quatro vezes dos campos nazistas onde sofreu tortura atroz e viu coisas horríveis. Ele havia lutado na guerra civil espanhola com Malraux, de quem ele era próximo, ao lado dos republicanos, e dificilmente eu poderia vê-lo como um “canalha fascista”, pois tive dificuldade em admirar o castrismo ou a Revolução cultural chinesa, com 60 milhões de mortes…

CS − Em 1985, você publicou com Alain Renaut, uma acusação severa contra maio de 68 − “Pensamento 68: Ensaio sobre o anti-humanismo contemporâneo”. Trinta e três anos depois deste livro, sua opinião evoluiu sobre o movimento de maio?
Ferry – Não, pelo contrário, tudo veio confirmar nossa análise que não era nem de direita nem esquerda, mas, eu acho, simplesmente lúcida. Em essência, dissemos que maio de 1968 não era uma revolução política, mas social, e que, por trás dos discursos revolucionários, era uma sociedade hiper-liberal que se aproximava. Eu basicamente tomava a noção de “dessublimação repressiva” de Marcuse: os valores e as autoridades tradicionais deveriam ser desconstruídos, por assim dizer, liquefeitos, para que pudéssemos entrar na era do consumo de massa. Porque nada dificulta tanto o consumo como a sublimação e os valores tradicionais. Os jovens de 68 cantaram um discurso marxista-leninista em concreto armado, com os famosos slogans do tipo “eleições são armadilhas para bestas”, mas sob o disfarce de um objetivo coletivo e revolucionário, foi a aspiração individualista de prazer e consumo que explodiu como nunca. Além disso, os slogans disseram tudo: “goze sem parar”, “sob os paralelepípedos, a praia”, “é proibido proibir”, “viver sem tempo morto”, etc. A prova disso é que o sistema político não mudou uma vírgula, ainda estamos na constituição de 1958. Foi a sociedade que mudou e, em grande parte, graças à direita liberal. Foi o presidente Giscard d’Estaing quem concedeu o direito de voto aos 18 anos, consagrando a vitória da juvenilismo. Foi ele quem estabeleceu a igualdade homem/mulher no código da família, é ele novamente quem pede a Simone Veil uma lei sobre o aborto, enfim, todas as reformas que são, obviamente, legados de 68. Quanto aos rebeldes de 68, com poucas raras exceções, eles foram atuar na publicidade, no cinema, nos negócios ou mesmo Senado, na burocracia estatal e na socialdemocracia, ou até em sindicatos patronais. Em suma, em lugares de dinheiro e poder.

CS − Que culpa o senhor atribui a maio de 68?
Ferry – Nada. Eu não sou moralista. Procuro entender o que aconteceu, isso é tudo, e o que aconteceu foi inscrito na lógica do capitalismo tão inteligentemente analisada por Schumpeter: experimentamos um século XX de desconstrução de autoridades e valores tradicionais, uma desconstrução que era essencial para o crescimento do consumo. Se nossos filhos tivessem os valores de nossos bisavôs, eles não estariam voltados como estão hoje para o consumo em massa. Dessublimação, portanto, mas repressiva no sentido de que os destinava a esses famosos “tempos de aluguel de cérebro vazio” de que falava um ex-chefe da TF1 (principal rede privada de televisão da França).

CS − Denunciamos maio de 68 como o triunfo do individualismo. Mas o movimento também não levou ao advento das ONGs e a uma nova solidariedade?
Ferry – Sim, é claro, mas o que caracteriza o engajamento em associações e ONGs é precisamente o individualismo, o compromisso à la carte, o oposto do que foi obediência à linha dogmática e intangível dos partidos tradicionais. Pode-se ter militância, sim, mas entramos e saímos como e quando queremos. Deixar o Partido Comunista Francês na década de 1960 era uma tragédia pessoal que poderia levar ao suicídio. Estamos hoje nas antípodas da militância revolucionária.

CS − Na sua opinião, houve uma traição das promessas de maio de 68, ou o movimento já carregava o vírus de todas as críticas que sofreria, inclusive da sua parte?
Ferry – Não eram senões, mas a sua lógica básica, a da inovação destrutiva. Os rebeldes de 68 foram os “cornos” da história. Eles queriam mudar o mundo, criar uma sociedade anticapitalista, sem classe, sem exploração e alienação, e eles deram à luz o mundo liberal em que agora vivem como peixes na água. O mesmo acontece com a arte contemporânea: os artistas são da esquerda, mas os compradores de direita e, no fim, os boêmios e os burgueses se reconciliaram na figura da inovação destrutiva.

CS − Realmente não há contribuição positiva de maio de 68?
Ferry – Novamente, tento entender, não julgar. Agora, é óbvio que a desconstrução das autoridades tradicionais necessariamente tem efeitos emancipatórios que eu sou o primeiro a aprovar: a emancipação das mulheres, dos homossexuais, as leis Auroux (aprovadas em 1984, tratam da liberdade dos trabalhadores nas empresas), por exemplo. Eu não sou, ao contrário da maioria dos antigos admiradores de 68, como meus camaradas Alain Finkielkraut ou Michel Onfray, por exemplo, um antimoderno, pelo contrário. Defendi o casamento gay mesmo nas páginas do jornal “Le Figaro” e sempre me alegro com os avanços da liberdade. Mas seria absurdo não ver que o preço foi alto, especialmente na escola.

CS − O senhor, que foi ministro da Educação, não acha que maio de 1968 teve efeitos benéficos sobre o ensino e, mais geralmente, sobre o relacionamento com as crianças?
Ferry – Não. Ao contrário, na educação é que maio de 68 foi um verdadeiro desastre, especialmente por causa da famosa “reforma educacional”. Precisamos compreender que existem dois setores totalmente tradicionais na educação: proficiência linguística e civilidade. Mas é claramente nessas duas áreas que a nossa escola está em dificuldade. Por quê? Simplesmente porque as regras da gramática, como as de cortesia, são puramente patrimoniais, 100% tradicionais. Nenhum de nós inventou nem a língua francesa nem as fórmulas de etiqueta que servem para terminar uma carta. A criatividade de gramática tem um nome: erros ortográficos. Hoje, pagamos nessas duas áreas a desconstrução das tradições.

CS − Como explica que 50 anos depois, a nostalgia de 68, continua tão forte?
Ferry – Todos os velhos, em todas as gerações, lamentam a perda da juventude. Laudator temporis acti, “louvor dos tempos passados”, disse meu velho amigo Jerphagnon para se divertir com isso. Já vemos isso nos autores gregos e latinos. Livre do totalitarismo do Leste como dos regimes fascistas da América Latina, Espanha, Grécia e Portugal, o mundo é infinitamente melhor hoje do que nos anos 60. Não fosse o Estado Islâmico, o mundo atual seria quase idílico em comparação com o de antes, então essa nostalgia não passa para mim de mais um sinal de senilidade entre outros.
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Reportagem Por Juremir Machado da Silva / Correio do Povo impresso, Caderno de Sábado, 10/03/2018 p. 4 e 5
Fonte:  http://www.correiodopovo.com.br/blogs/dialogos/2018/03/1573/luc-ferry-maio-de-1968-nao-era-uma-revolucao-politica-mas-social/

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