Por que o engajamento sócio-político hoje é tão difícil?
1.
Estamos assistindo nos dias atuais a um preocupante recuo nas bases
populares e em vários movimentos sociais, em particular, de cariz
político, do engajamento por uma transformação da sociedade, seja a
nível nacional, seja a nível mundial. Importa reconhecer que vigora
pesado sentimento de impotência e também de melancolia. À parte desta
constatação, estamos igualmente assistindo nos países centrais (EUA e
Europa) a juventude universitária se rebelando contra a desproporcional,
indiscriminada e genocida reação do Estado de Israel contra a população
da Faixa de Gaza como resposta ao ato terrorista do Hamas a 7 de
outubro do ano passado.
O establishment político, dominante no mundo, a partir do
Norte Global, reage com violência inusitada contra os manifestantes. Na
Alemanha qualquer manifestação pro Palestina da Faixa de Gaza é
oficialmente proibida e logo reprimida ao menor sinal de apoio à causa
palestina e contra genocídio que lá está ocorrendo. Nos EUA a repressão
policial ganha expressões violentas contra estudantes e professores
universitários, até contra uma candidata à presidência do país.
Entre nós no Brasil e em geral na América Latina se nota marasmo e
ausência de manifestações públicas, sequer contra o genocídio, em
especial de 14 mil criancinhas e a morte de cerca 80 mil cidadãos sob os
pesados bombardeios israelenses, usando de forma criminosa a
Inteligência Artificial (IA) para assassinar determinadas pessoas e sua
inteira família, dentro de suas próprias casas.
Precisamos tentar entender o porquê essa inércia. Aduzo alguns pontos
que nos permitem vislumbrar algum entendimento da atual situação, seja
concernente à Ucrânia sendo arrasada pela brutalidade russa e seja ao
massacre e ao genocído na Faixa de Gaza.
2.
Vigora em grande parte da sociedade, em particular no Sul Global, mas
não excluindo porções no Norte Global, um forte sentimento de
impotência. Em primeiro lugar, objetivamente, o sistema capitalista em
sua expressão mais exacerbada do neoliberalismo da escola de
Viena/Chicago se impôs no mundo todo. Quem resiste sofre repressões
políticas, ideológicas e eventualmente golpes de estado como foi o caso
do impeachment da Dilma Russeff. Procura-se impor o que Carl Polanyi já
em 1944 chamou de A grande transformação: passar de uma
sociedade com mercado para uma sociedade de puro mercado. Vale dizer,
tudo vira mercadoria, a vida humana, órgãos, sementes, água, alimentos,
tudo e tudo é posto no mercado e ganha seu preço. Isso já fora previsto
em 1847 por Marx em A miséria da filosofia.
Esse fato objetivo gera uma reação subjetiva: começa-se ver o mundo
sem esperança, de que não há alternativa viável à essa enormidade
mundializada. Ela se exprime pela TINA (There is no Alternative):
“Não há outra Alternativa”. O efeito é um sentimento de impotência e de
desencanto recalcado. Daí se deriva uma atitude derrotista de que não
vale a pena ir contra o sistema, por ser grande demais e nós pequenos
demais.
Obrigam-se a fazer concessões para sobreviver num mundo profundamente
desigual e injusto, produtor de melancolia. Esta irrompe quando não se
percebe nenhuma luz no fim do túnel. Então, por que se engajar por algo
alternativo que não tem chance de triunfar? Este tipo de mundo não tem
jeito mesmo, pensam não poucos. Devemos nos adaptar a ele para sofrer o
menos possível.
Um segundo ponto é a estratégia perversa elaborada pelo sistema
dominante: criar uma cultura do consumo. Oferecer o maior número de
objetos desejáveis, mesmo que mais de 90% sejam totalmente fúteis e
desnecessários. Trata-se de manipular uma das forças mais poderosas da
psiqué humana: o desejo, cuja natureza já vista por Aristóteles e
confirmada por Freud é a de ser ilimitada.
Já foi dito por notáveis psicólogos (exemplo: Mary Gomes e Allen
Kenner) que “este é o maior projeto psicológico jamais produzido pela
espécie humana”: impedir que os cidadãos deixem de se considerar
cidadãos para se transformarem em simples consumidores e consumidores
viciados no consumo.
Para seduzi-los, gastam-se trilhões de dólares em propaganda pela
mídia de massa e com todos os recursos possíveis da sedução. Isto
representa seis vezes mais investimento anual necessário para garantir
alimentação, saúde, água e educação de qualidade para toda a humanidade.
É difícil imaginar perversidade maior. Mas ela é predominante no modo
de vida geral da humanidade que daí emergiu.
A impotência e a melancolia internalizadas fazem com que a maioria
das pessoas, lastimavelmente, dos jovens, não se animem a engajar-se
social e politicamente em algum movimento ou projeto de transformação. A
educação em instituições formais é decisiva para a socialização desta
leitura da realidade. Vandana Shiva, grande cientista e
ecologista-feminista da Índia a chama de “monocultura das mentes”. Essa
monocultura gera nos estudantes a convicção de que este mundo é bom e
desejável, consciências ingênuas que não se dão conta de que são
cooptados pelos sistema imperante e feitos seus reprodutores.
3.
Contra tudo isso Paulo Freire lançou seu projeto educativo e libertador, a começar com a Pedagogia do oprimido, Educação como prática da liberdade e concluindo com a Educação com amor e esperança.
Cunhou a expressão “esperançar”: não cruzar os braços (esperar que as
coisas por si mudem), mas criar as condições para que a esperança
alcance seus objetivos transformadores.
Como se libertar da consciência ingênua manipulada? Não basta apenas o
processo de conscientização, pois entender criticamente o que acontece,
não quer dizer mudar o que acontece. Temos que passar a uma prática
alternativa, enfrentar o sistema dominante com um paradigma de sociedade
diferente, igualitária, não consumista, mas solidária com um modo de
produção fundado nos ritmos da natureza (agroeologia e economia
circular) e outro tipo de democracia ecológico-social, de baixo para
cima, na qual se reconheçam os direitos da natureza e da Mãe Terra,
criando o Todo, a humanidade e a natureza incluídas na grande Casa
Comum, a Mãe Terra.[1]
*Leonardo Boff é teólogo, filósofo e escritor. Autor, entre outros livros, de A busca da justa medida: como equilibrar o planeta Terra (Vozes Nobilis). [https://amzn.to/3SLFBPP]
Seguidores de Michelle Bolsonaro e Nikolas Ferreira aprendem a participar em suas igrejas
Na semana passada, repercutiu nas redes sociais um estudo sobre o poder de engajamento de influenciadores evangélicos.
Pesquisadores da UFF e da UFRJ coletaram dados de 191 perfis durante
três meses. Dos dez nomes que mobilizaram mais participação, oito são
evangélicos. De onde vem essa força?
Igrejas e líderes evangélicos são corretamente criticados por usar a
religião para interferir na política. Mas é um equívoco retratar o
evangélico como alguém facilmente manipulável, que obedece calado o
comando de seus líderes. Membros trazem para suas comunidades visões de
mundo diferentes e interesses às vezes conflitantes. Por isso é oportuno
analisar igrejas como escolas de cidadania.
Diversos motivos explicam o crescimento rápido do número de evangélicos
no Brasil. Além do aspecto religioso, igrejas servem como associações
onde os moradores de um bairro podem atuar de forma organizada. É como
se a igreja fosse um pequeno país. Fiéis se organizam a partir de grupos
de trabalho chamados de "ministérios", especializados em áreas como
juventude, música e gestão, entre outros.
Quem participa tem mais prestígio nas redes de ajuda mútua de
sua comunidade. A maioria dos evangélicos brasileiros são pessoas de
baixa renda e subalternas; nos locais de trabalho, usam uniformes, seus
nomes são desconhecidos e eles apenas obedecem. A igreja subverte essa
realidade. Lá o fiel tem um nome, veste suas melhores roupas e, ao
participar, torna-se alguém reconhecido.
Em igrejas históricas, como a Metodista e a Luterana, há um ambiente
de igualdade radical. Ao ser batizada, a pessoa se torna membro e tem os
mesmos direitos para participar das tomadas de decisão. "É um processo
dinâmico de aprendizado democrático", diz o pastor e sociólogo Valdinei
Ferreira. "Ao acompanhar as assembleias, os membros aprendem regras parlamentares, como pedir a palavra, fazer uma intervenção, apresentar um projeto substitutivo e encaminhar propostas."
Mesmo em igrejas como a Universal, que possuem gestões mais
centralizadas, há espaço para a atuação de pequenas lideranças. "Apesar
da relação mais direta com as sedes nacionais, essas lideranças locais
agem de acordo com as necessidades de cada contexto", explica a
professora da UnB Jacqueline Teixeira.
Por que publicações de influenciadores como Michelle Bolsonaro e Nikolas Ferreira
geram mais engajamento que as de seus pares não evangélicos? Talvez a
resposta tenha menos a ver com eles e mais com seus seguidores.
Vale examinar: em que medida o ambiente participativo das
igrejas forja cidadãos mais atuantes, que abraçam o cristianismo como
ideologia?
* Antropólogo, autor de "Povo de Deus" (Geração 2020), criador do Observatório Evangélico e sócio da consultoria Nosotros - Imagem da Internet
Presidente
da autoridade monetária do Brasil, Roberto Campos Neto cita
‘preocupação’ com aquecimento do mercado de trabalho. Lógica remete à
Curva de Phillips, teoria de 1958
O desemprego no Brasil iniciou o ano de 2024 no menor patamar para o período em uma década. É o que revelaram dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) publicados na terça-feira (30).
No mesmo dia, o presidente do Banco Central usou a palavra “preocupação” ao comentar a situação do mercado de trabalho em entrevista ao canal CNN Brasil. Roberto Campos Neto falou na possibilidade de que o emprego aquecido alimente a inflação.
A relação entre desemprego e inflação é explorada por economistas há décadas.
Neste texto, o Nexo apresenta a discussão e o cenário brasileiro em 2024. Também ouve economistas que avaliam, com visões diferentes, o quadro e a preocupação de Campos Neto.
Inflação e desemprego no Brasil em 2024
No primeiro trimestre de 2024, a taxa de desemprego no Brasil ficou em 7,9%. Foi o menor número para o período desde 2014.
10 ANOS DE DESEMPREGO
A inflação, por sua vez, também entrou em 2024 em queda. Depois do ciclo de alta de preços que culminou em 2022, quando atingiu 12%, a inflação vem perdendo força no país.
Para conter os preços, o Banco Central elevou os juros básicos do país. Em 2023, com maior alívio na inflação, começou a cortar a taxa Selic.
Em 2024, a autoridade monetária expressa preocupação com a lentidão do alívio inflacionário, e já sinalizou que pode reduzir o ritmo de corte de juros.
10 ANOS DE INFLAÇÃO
A fala de Campos Neto e a reação do governo
Campos Neto expressou na terça-feira (30) preocupação com o impacto inflacionário do mercado de trabalho — sobretudo no setor de serviços.
“O Banco Central adora quando a gente tem um regime de emprego pleno […]. É nossa situação [atual], que melhorou muito e foi uma grande surpresa”, disse o presidente do órgão à CNN Brasil. “Mas a preocupação vem quando as empresas não conseguem contratar e você tem que começar a subir o salário. Se você sobe o salário para o mesmo nível de produção, isso significa que você está iniciando um processo inflacionário”, afirmou.
Essas indicações foram recebidas com críticas por membros do governo Luiz Inácio Lula da Silva e integrantes do PT. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, chegou a pedir publicamente que o Banco Central “não se assuste” com dados positivos de emprego. O temor é que o órgão freie o ciclo de corte da Selic por causa do mercado de trabalho aquecido.
Entenda o que é a Curva de Phillips
A relação entre desemprego e inflação é explorada por economistas desde meados do século 20. Em 1958, o economista neozelandês A.W. Phillips, da London School of Economics, publicou um artigo identificando uma relação inversa entre desemprego e inflação. Essa oposição ganhou o apelido de “Curva de Phillips”.
A lógica é que um desemprego mais baixo significa maiores salários e mais dinheiro circulando na economia, o que pressiona os preços — a partir da lógica da demanda e da oferta. Já quando o desemprego é alto, menos dinheiro circula e isso tira a pressão da inflação. Por isso a relação inversa entre as duas variáveis.
A Curva de Phillips virou tema central da teoria econômica, e foi analisada e destrinchada por inúmeros economistas desde então. Ela passou por uma série de transformações — a principal delas sendo a que incluiu a variável das expectativas na análise. Por décadas, diversos estudos tentaram analisar se a oposição entre desemprego e inflação é válida na prática, com resultados por vezes conflitantes.
A preocupação de Campos Neto sob análise
O Nexo conversou com dois economistas que avaliaram a preocupação de Campos Neto com possíveis impactos inflacionários do mercado de trabalho brasileiro em 2024.
Renan Pieri, economista da FGV-Eaesp (Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas)
André Biancarelli, professor do Instituto de Economia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas)
O que os estados do mercado de trabalho e dos preços no Brasil em 2024 dizem sobre a relação entre inflação e desemprego?
RENAN PIERI Ao longo da história, a Curva de Phillips teve comportamentos diferentes. Cada país tem a sua própria relação entre inflação e desemprego, e essa relação pode mudar ao longo do tempo. E além de inflação e desemprego, a relação também depende da expectativa de inflação dos agentes econômicos.
Não é toda melhora do mercado de trabalho que gera pressão inflacionária. Depende se a melhora veio de um choque de demanda ou de oferta. Se as empresas estão ficando mais produtivas, têm inovado e isso está melhorando o mercado de trabalho, pode haver até uma queda de preços, com mais oferta de produtos. Nesse cenário não seria preocupante. Mas se o mercado tem melhorado por conta de aumento de demanda [na economia], há uma pressão nos preços.
Está embutida na interpretação do Banco Central que estamos num período de demanda aquecida. E isso pode levar a alguma preocupação. Em termos gerais, um nível de ocupação mais alto sempre é um sinal de alerta para o Banco Central.
Estamos vendo uma melhora significativa do mercado de trabalho no Brasil. No cenário em que criamos mais postos de trabalho e o salário aumenta um pouco, isso pode sim criar alguma pressão sobre os preços. Para as empresas, mão de obra é um dos custos mais relevantes, principalmente no setor de serviços. Então se há mais gente ocupada e com salários mais altos, pelo menos uma parte disso pode ser repassada para preços. Estamos vendo isso também nos EUA.
ANDRÉ BIANCARELLI A Curva de Phillips talvez seja, na discussão de política monetária, a questão mais antiga em debate. É uma relação teórica que é objeto de controvérsia há muitas décadas. Nos últimos tempos, ela está sendo profundamente questionada, não só no Brasil, mas no mundo inteiro, principalmente depois da pandemia. É um debate que acontece particularmente nos EUA.
A manutenção de uma inflação baixa com uma taxa de desemprego que em outros tempos teria provocado uma inflação é uma novidade do pós pandemia, que tem desafiado e gerado debates bastante interessantes entre banqueiros centrais e acadêmicos do mundo inteiro. A novidade se dá no plano dos fatos e no plano da discussões. E tudo isso ainda está em aberto. Os Bancos Centrais estão navegando em águas desconhecidas no mundo inteiro. E não é uma controvérsia heterodoxa, digamos assim.
A diferença é que no Brasil, pelo perfil e estilo [de Campos Neto e do BC], navegar em águas desconhecidas na relação entre inflação e desemprego vai significar um excesso de conservadorismo. Da forma como o noticiário brasileiro reage a isso, parece muitas vezes que não é controverso que uma taxa de desemprego em queda seja um sinal de ameaça à inflação. Mas é algo que está sendo profundamente questionado por muitos economistas atualmente.
Como avalia a ‘preocupação’ de Roberto Campos Neto com o mercado de trabalho aquecido?
RENAN PIERI Há no mercado de trabalho algumas evidências de que a economia passa por um período aquecido que pode sim gerar uma pressão sobre os preços no futuro. Não é uma versão alta o suficiente para justificar, por exemplo, uma nova alta da Selic, mas pode ser suficiente para justificar um corte mais cauteloso do que antes.
A lei de autonomia do BC dá dois objetivos para o Banco Central perseguir. Um é a meta de inflação. O outro é o pleno emprego. Nessa visão, o Banco Central conseguiria “ajustar” o desemprego por mudanças na Selic. Mas tem um componente importante dessa história que são as expectativas.
Se fica claro que ele está mais preocupado com o desemprego do que com a meta de inflação, isso pode levar os agentes a acharem que a inflação vai ficar mais alta. Se eles acham que a inflação vai ficar mais alta, reajustam seus contratos para um cenário de preços mais altos. E aí a inflação mais alta acontece.
Tem sido uma tradição do Banco Central brasileiro sinalizar um compromisso forte com a meta de inflação. Nos poucos momentos desde 1999 [início do regime de metas de inflação] em que duvidamos do compromisso do BC com a meta, principalmente no governo Dilma, isso criou um ruído e a inflação mudou de patamar muito rápido. Então há essa tradição de focar na meta e, portanto, usar o instrumento principal — a taxa de juros — para atingir a meta, deixando o desemprego como questão secundária. A meu ver, tem sido uma estratégia bem sucedida. É muito perigoso o Banco Central tentar perseguir um ponto da Curva de Phillips [aceitar mais inflação para ter menos desemprego], porque isso pode mexer nas expectativas de inflação.
ANDRÉ BIANCARELLI Nem o debate prático e teórico permite uma afirmação peremptória de que o desemprego baixo vai gerar inflação, e nem a situação do mercado de trabalho brasileira atual é taxativa no sentido de que estejamos muito próximos do pleno emprego. É fato que o mercado de trabalho está num momento de relativo aquecimento. Mas ainda não é uma situação ideal — tanto do ponto de vista do número de pessoas procurando emprego, quanto do tipo de ocupação que tem sido gerado.
E a inflação brasileira está muito bem comportada. O que têm de ruim são as expectativas de inflação para frente. Mas a inflação corrente se comporta bem. E mesmo o receio do Roberto Campos Neto e de analistas de mercado de uma possível pressão do mercado de trabalho na inflação de serviços não se verifica.
No fundo, temos uma tentativa do Banco Central de elencar, nas suas declarações, motivos para que na próxima reunião do Comitê de Política Monetária [7 e 8 de maio] ele possa, sem causar grandes solavancos no dia, possivelmente optar por uma redução de taxa de juros um pouco menor. Junto com isso, ele elenca a questão internacional — que, para mim, é a mais importante — e a da mudança da meta fiscal [de 2025 e 2026].
Mas eu diria que quanto melhor estiver o mercado de trabalho, isso deveria, para um economista, ser motivo de comemoração, não de preocupação. Há um excesso de zelo, uma visão muito negativa de um fenômeno que tende a ser positivo. Reduzir o desemprego é um aspecto desejável da condução da política econômica como um todo, assim como reduzir a inflação. A situação é um pouco reveladora da forma como a condução da política monetária no Brasil talvez seja enviesada demais, achando um motivo para manter os juros altos.
Marta, a tarefeira, e Maria, a mística, em quadro de Vermeer de 1655
Foto: Jan Vermeer/Reprodução
Respeitar
o diretor e desrespeitar a faxineira é puro oportunismo cínico. Há
hierarquias variadas, todavia nunca percamos o horizonte de que todos os
seres humanos ao nosso redor são, por definição, seres humanos
Uma
limpa, cozinha e serve. A outra observa e aprende. A fisicamente ativa
tornou-se padroeira de todas as donas de casa e daqueles que hospedam
pessoas nos hotéis. A irmã atenta à palavra é o modelo da vida
contemplativa. No Evangelho, Jesus louva Maria, a que fica escutando o
que o Mestre fala. Diz que a ouvinte escolheu a parte que não será
tirada dela. Enquanto isso, Marta se inquieta com os afazeres.
Segundo
uma tradição, a atarefada fugiu para o sul da França. Instalada em
Tarascon, venceu um dragão. Os santos que matam dragões (sauróctonos
tais quais Jorge ou Marcelo de Paris) simbolizam a luta contra o
paganismo e o demônio. Continuou ativa.
Marta era uma
trabalhadora; Maria uma mística. A família de Betânia se completou com o
famoso Lázaro. Viraram um refúgio para Jesus. Ali tivemos três exemplos
complementares de comunidade religiosa: a fé que age, a que contempla e
aquela que ressuscita.
Fui a um casamento muito elegante na
Fundação Maria Luísa e Oscar Americano em fevereiro deste ano. A festa
foi perfeita, das mesas ao cardápio. Havia um batalhão de “Martas” ali.
Rondando com bandejas, auxiliando com travessas, recolhendo coisas:
muitas pessoas silenciosas e ágeis cuidavam do ambiente, para que tudo
ficasse agradável aos convidados. São muros de arrimo do que ocorre na
nossa vida. Em cada sala que adentro e, ali, noto limpeza, mesmo não
percebendo a figura de quem assim deixou, penso no imenso silêncio de
Marta.
O
curioso do trabalho braçal é que ele, quando perfeitamente eficaz, fica
invisível. Notamos, de imediato, uma sala muito suja. No entanto,
raramente nos damos conta do momento em que ela está sem pó. São
“fantasmas laborais”, que agem calados. Chegam antes, circulam
invisíveis, retiram-se sem ruído. Se funcionarem 100%, não serão
lembrados. Se houver uma falha, serão culpados.
Eu
gosto muito da expressão que usamos na classe média e alta do Brasil. A
comida é servida, a casa está limpa, tudo brilha, mas a pessoa que
recebe, elogiada, diz que tem boas “auxiliares”. No rigor da expressão, a
gentil senhora estaria no chão, encerando. Ao lado dela, uma
funcionária ajudaria com panos novos o afã da proprietária. Isso seria
uma “auxiliar”. O grosso do trabalho corre por minha conta; outras
pessoas a quem eu pago me “auxiliam”. Sabemos que não é assim. Para que
Maria escute, feliz, Marta deve trabalhar muito e, amiúde, sozinha.
Fui
educado para considerar digno todo trabalho honesto. Certa vez, fui dar
uma aula particular em um prédio de luxo. Na entrada, expliquei o que
eu iria fazer. O porteiro pediu que eu subisse pelo elevador de serviço.
Segui por ele. A dona da casa ficou horrorizada e ligou, com insultos,
para a portaria. Achei curioso: eu era um trabalhador que iria prestar
um serviço pago; a entrada não “ofenderia” minha honra. É uma herança
ruim da tradição escravocrata: o trabalho (especialmente o físico) é
algo estranho, que deve ser ocultado.
Temos
hierarquias sociais e de poder. Meu texto não as ataca. Fui contratado
por muitas instituições de ensino. Eu era um empregado e cumpria as
determinações de superiores. Teria recusado se alguma ofendesse aquilo
em que eu acredito. Também, eu recusaria uma ordem para algo ilícito.
Assim não ocorrendo, convivo bem com ambientes de chefes e de ordens.
Nunca me esqueço de uma proprietária de escola que ouviu uma professora
indicar como iria desenvolver uma filosofia pedagógica para o lugar onde
trabalhávamos. A dona ouviu e disse com atenção e calma: “Excelente!
Compre uma escola e faça do seu jeito”. Parecia o conselho de Assis
Chateaubriand quando um jornalista indicava mudanças no rumo das
empresas do célebre paraibano.
Aceito
hierarquias. Não sou ressentido com o poder. Exijo sempre o respeito ao
trabalho. Há cargos e poderes. A dignidade pertence, por igual, à
faxineira e à diretora. Não precisamos amar todas as pessoas no ambiente
laboral: basta respeitá-las.
Uma
senhora de estirpe elevada me contou que estimulava os filhos a não
terem patrão. Acho a vocação do empreendedorismo rara e muito
específica. Penso ser útil estimular todo mundo a crescer, a estudar, a
buscar desafios. Porém, se você vai abrir seu próprio negócio, deve
saber que negociar com fornecedores e atender clientes obriga-o a um
jogo de habilidades muito maior do que ter apenas um chefe. Empreenda,
se desejar. Descobrirá que o mundo tem um milhão de pequenos poderes,
quase todos problemáticos. Candidatando-se a um concurso público ou
buscando um arriscado negócio seu, busque o melhor de si, ao estilo de
uma Marta, diligente, valorizando sempre todos os que trabalham perto de
você. Respeitar o diretor e desrespeitar a faxineira, já escrevi, é
puro oportunismo cínico. Há hierarquias variadas, todavia nunca percamos
o horizonte de que todos os seres humanos ao nosso redor são, por
definição, seres humanos. Parece tautologia, mas é puro humanismo
sofisticado.
Por
fim: Marta é uma “tarefeira”. Ela precisa aprender com a irmã a parar e
pensar. Toda Maria só existe porque Marta está servindo. Toda Marta,
para crescer, precisa pensar como Maria. Precisamos aprender com uma e
outra. Tenho esperança de que possamos servir ao Mestre e... ouvi-lo.
* Historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades
O presidente da França apresentou sua visão apocalíptica em uma entrevista para a ‘The Economist’ no Palácio do Eliseu
Em 1940, após a França ter
sido derrotada pela blitzkrieg nazista, o historiador Marc Bloch
condenou as elites de seu país do período entre guerras por não terem
enfrentado a ameaça que se avizinhava. Hoje, Emmanuel Macron cita Bloch como um aviso de que as elites europeias estão presas na mesma complacência fatal.
O presidente da França apresentou sua visão apocalíptica em uma entrevista para a The Economist
no Palácio do Eliseu. Isso aconteceu dias após seu discurso sobre o
futuro da Europa - um maratona caótica de duas horas à la Castro, abordando desde aniquilação nuclear até uma aliança de bibliotecas europeias.
Os críticos de Macron o chamaram de uma mistura de campanha eleitoral, o
usual interesse próprio francês e a vaidade intelectual de um
presidente jupiteriano pensando em seu legado. Gostaríamos que
estivessem certos.
Na verdade, a mensagem de Macron é tão
convincente quanto alarmante. Em nossa entrevista, ele avisou que a
Europa enfrenta um perigo iminente, declarando que “as coisas podem
desmoronar muito rapidamente”. Ele também falou sobre a montanha de
trabalho pela frente para tornar a Europa segura. Mas ele é atormentado
pela impopularidade em casa e pelas relações ruins com a Alemanha.
Como
outros visionários sombrios, ele enfrenta o risco de sua mensagem ser
ignorada. A força motriz por trás do aviso de Macron é a invasão da Ucrânia. A guerra mudou a Rússia.
Desrespeitando o direito internacional, emitindo ameaças nucleares,
investindo pesadamente em armas e táticas híbridas, ela adotou “a
agressão em todos os domínios de conflito conhecidos”.
Em seu discurso na Sorbonne, você disse que “a Europa pode morrer”. O que isso significa de fato? O que está em jogo?
Eu
estava me referindo às palavras de Paul Valéry após a 1ª Guerra Mundial
sobre o fato de que agora sabemos que uma civilização pode morrer. Em
primeiro lugar, porque temos um risco militar e geopolítico, um risco de
segurança. A Europa não é a região mais segura do mundo, embora o
continente tenha um modelo de Forças Armadas sólido, abrangente e
eficaz, como o Exército francês.
No entanto, quando
olhamos para a Europa como um todo, vemos que ela investiu muito menos
em sua defesa e segurança do que os Estados Unidos ou a China, e que se encontra em um ambiente global em que a proliferação de conflitos está voltando: a Rússia, mas também o Irã
e outras potências. E não só a guerra de alta intensidade está voltando
ao solo europeu, como também está sendo travada por uma potência com
armas nucleares e com uma retórica beligerante. Tudo isso significa que a
Europa deve legitimamente se perguntar sobre sua proteção militar. E,
de fato, ela deve se preparar para não ter mais a mesma proteção dos
Estados Unidos, como eu disse em 2019. Temos de nos preparar para nos
proteger.
Em
segundo lugar, o desafio para a Europa é econômico e tecnológico. Não
pode haver grande potência sem prosperidade econômica, sem soberania
energética e tecnológica. Vimos isso no início dessa guerra de agressão,
quando o modelo de produção europeu dependia muito do gás russo, menos
para a França do que para os outros. Portanto, precisamos construir
nossa soberania, nossa autonomia estratégica, nossa independência em
termos de energia, materiais e recursos raros, mas também em termos de
habilidades e tecnologias essenciais. E já começamos a despertar.
Contribuímos muito para isso nos últimos anos, mas hoje ainda não
chegamos ao fim. Precisamos ser ainda mais poderosos, mais fortes e mais
radicais.
Somado
a isso está o fato de que a Europa não produz riqueza per capita
suficiente, em comparação com outras grandes potências, e nossa grande
ambição, em um momento em que os fatores de produção estão sendo
realocados, seja em tecnologia limpa ou inteligência artificial, é ser
um continente atraente para esses grandes investimentos. Nossa ambição é
garantir que essas tecnologias disruptivas não se desenvolvam primeiro
em outras regiões, seja porque são muito bem subsidiadas e incentivadas,
como nos Estados Unidos e por causa do investimento em massa na IA,
seja porque os fatores de produção são muito mais baratos lá, como nos
Estados Unidos ou na China.
Em
terceiro lugar, a Europa é afetada por essa crise das democracias.
Somos o continente que inventou a democracia liberal. Nossos sistemas
sociais são baseados nessas regras. No entanto, estamos sendo atingidos
pelas vulnerabilidades criadas pelas redes sociais, pela digitalização
de nossas sociedades e pela forma como a democracia funciona.
Vulnerabilidade democrática, especialmente em época de eleições, que
alimenta esse tipo de impulso antiliberal, ou iliberal, como dizemos
agora. Vulnerabilidade porque nossos jovens são expostos ao mau uso das
telas e da tecnologia digital e nossas sociedades são transformadas por
causa desse mau uso.
É esse triplo risco existencial para a nossa
Europa: um risco militar e de segurança; um risco econômico para a nossa
prosperidade; um risco existencial de incoerência interna e de
perturbação do funcionamento de nossas democracias. Portanto, esses são
os três riscos que se aceleraram nos últimos anos, sem dúvida de forma
muito intensa. Além disso, após a pandemia, subestimamos essas tensões,
embora a Europa tenha começado a reagir a elas, mas de forma muito
tímida ou, às vezes, um pouco tarde demais.
Você fala sobre essas forças que estão se reunindo. Elas levam a uma morte gradual? Ou uma morte súbita?
As
coisas podem desmoronar muito rapidamente. Na Europa e em qualquer
outro lugar, elas estão criando um aumento da raiva e do ressentimento.
Nossos compatriotas sentem isso. Isso alimenta o medo e a raiva, e isso
alimenta os extremos. As coisas podem acontecer muito mais rapidamente
do que pensamos e podem levar a uma morte mais brutal do que imaginamos.
O que mais me interessa é evitar esse movimento e mostrar que é
possível dar um salto adiante.
De fato, todas as decisões que
tomamos nos últimos anos são decisões que não tomávamos há dez anos.
Reagimos mais rápido, melhor e na direção certa. Mas há uma aceleração
tão grande dos riscos, das ameaças e do mal-estar de nossas sociedades,
que agora precisamos dar um passo muito maior. Basicamente, precisamos
criar um novo paradigma. Um novo paradigma geopolítico, econômico e
social para a Europa.
Vamos
voltar a cada um desses riscos, começando pela ameaça geopolítica ao
continente: a Rússia. Como você caracterizaria esse risco? Trata-se de
uma nova agressão por parte da Rússia? E como devemos reagir nesse caso?
A
Rússia é uma ameaça que conhecemos, que sempre vimos. Estou falando por
todos os europeus e particularmente pela Alemanha e pela França, porque
fomos responsáveis por salvar os acordos de Minsk e o processo da
Normandia. Fizemos bem em seguir o caminho diplomático. Não me arrependo
de nada do que foi feito durante todos esses anos. Essas medidas, sem
dúvida, desaceleraram as coisas e também nos permitiram criar demandas
europeias conjuntas em relação a Putin.
A
mudança também não deve ser subestimada. Na questão dos oblastos, a
Rússia tentou construir uma espécie de tela legal, que depois foi
abandonada. Muitas pessoas subestimaram a mudança que ocorreu entre
fevereiro e abril de 2022. Em fevereiro, a Rússia ainda estava tentando
formular uma narrativa que fosse compatível com o direito internacional,
com essa ideia de uma “operação especial”. Agora, a própria Rússia usa a
palavra “guerra” e reconhece o fato. Ela rompeu todas as estruturas e
basicamente retornou a uma lógica de guerra total.
Desde
2022, a Rússia vem acrescentando cada vez mais uma ameaça nuclear
explícita, às vezes desinibida, conforme expressado pelo próprio
presidente Putin, e tem feito isso sistematicamente. Ela acrescentou o
hibridismo, provocando e alimentando conflitos que às vezes estavam
latentes em outras zonas. Acrescentou agressões e ameaças no espaço e no
mar, e acrescentou ameaças e ataques cibernéticos e de informação em
uma escala sem precedentes, que decidimos, juntamente com nossos
parceiros europeus, revelar pela primeira vez.
Hoje, a Rússia se
tornou uma potência superequipada que continua a investir maciçamente em
armas de todos os tipos e que adotou uma postura de não conformidade
com o direito internacional, de agressão territorial e de agressão em
todos os domínios conhecidos de conflito. Atualmente, ela também é uma
potência de desestabilização regional onde quer que esteja. Portanto,
sim, a Rússia, por meio de seu comportamento e de suas escolhas,
tornou-se uma ameaça à segurança dos europeus. Apesar de todos os
esforços feitos pela França, mas também pela Alemanha e pelos Estados Unidos.
Qual
é o prazo? O que acontecerá se a Rússia tentar atacar outro país que
não seja membro da Otan? Nós, europeus, membros da Otan, reagiremos?
Cada vez temos que fazer isso de acordo com as circunstâncias. O caso surgiu na Ucrânia, um país que não é membro da Otan,
mas está em solo europeu, a 1.500 quilômetros de nossas fronteiras. Em
outra ação sem precedentes, os europeus reagiram em 24 horas,
reunindo-se no mesmo dia da invasão. Na época, a França ocupava a
presidência [do Conselho da UE]. Imediatamente impusemos sanções e
decidimos o princípio de apoiar a Ucrânia.
Somado a isso está o
que decidimos em 26 de fevereiro com todos os chefes de Estado e de
governo, os cerca de 20 que estavam aqui, europeus e não europeus, aqui
em Paris, e que foi seguido por ações. Saúdo hoje o compromisso muito
forte, em especial dos canadenses e americanos, juntamente com os
britânicos e os membros da UE. Juntos, decidimos ir ainda mais longe, em
outras palavras, fabricar na Ucrânia, treinar na Ucrânia, proteger
melhor as fronteiras de Belarus e da Moldávia e também realizar a
manutenção em solo ucraniano. Também criamos novas coalizões, como a de
mísseis de médio alcance, que já produziu resultados iniciais com
capacidades superiores, e as entregas que faremos até o verão. O que eu
também queria reabrir em 26 de fevereiro era essa famosa ambiguidade
estratégica, que deve convencer Putin de que estamos determinados e que
ele terá de contar com nossa determinação.
O senhor mantém o que disse sobre a possibilidade de enviar tropas terrestres para a Ucrânia?
Com
certeza. Como eu disse, não estou descartando nada, porque estamos
enfrentando alguém que não está descartando nada. Sem dúvida, fomos
muito hesitantes ao definir os limites de nossa ação para alguém que não
tem mais nenhum e que é o agressor! Nossa capacidade é ter
credibilidade, continuar a ajudar, dar à Ucrânia os meios para resistir.
Mas nossa credibilidade também depende da capacidade de dissuadir, não
dando visibilidade total ao que faremos ou não faremos.
Caso
contrário, nos enfraqueceremos, que é a estrutura na qual temos operado
até agora. Na verdade, muitos países disseram, nas semanas seguintes,
que entendiam nossa abordagem, que concordavam com nossa posição e que
essa posição era positiva. Tenho um objetivo estratégico claro: A Rússia
não pode vencer na Ucrânia. Se a Rússia vencer na Ucrânia, não haverá
segurança na Europa. Quem pode imaginar que a Rússia vai parar por aí?
Que segurança haverá para os outros países vizinhos, Moldávia, Romênia,
Polônia, Lituânia e outros? E por trás disso, que credibilidade terão os
europeus que gastaram bilhões, disseram que a sobrevivência do
continente estava em jogo e não se deram os meios para deter a Rússia?
Portanto, sim, não devemos descartar nada, porque nosso objetivo é que a
Rússia nunca consiga vencer na Ucrânia.
O
senhor acha que outros líderes acabarão tendo que compartilhar sua
posição sobre esse assunto para que a Rússia seja finalmente dissuadida?
Você
nunca deve se envolver em ficção política. Mas estou convencido de uma
coisa: essa é a condição básica para a segurança europeia e a
credibilidade militar. Portanto, se a Rússia decidir ir além, todos nós
teremos que nos fazer essa pergunta. É por isso que eu queria esse
alerta estratégico para meus colegas, mas também para nossas nações. A
França é um país que realizou intervenções militares, inclusive nos
últimos tempos. Enviamos vários milhares de soldados para o Sahel para
combater o terrorismo, que poderia ter representado uma ameaça para nós.
Fizemos isso a pedido de Estados soberanos.
Se
os russos rompessem as linhas de frente, se houvesse uma solicitação
ucraniana - o que não é o caso hoje -, teríamos legitimamente que nos
fazer essa pergunta. Portanto, acho que descartar essa possibilidade a
priori é não aprender as lições dos últimos dois anos. Na cúpula da Otan
no verão de 2022, todos nós descartamos a entrega de tanques, mísseis
de ataque profundo e aeronaves. Agora estamos todos no processo de fazer
isso, então seria errado descartar o resto. Mas, acima de tudo, seria
errado, em termos de credibilidade e dissuasão em relação aos russos,
descartar essa possibilidade. A propósito, observo que a agressividade
da resposta russa ao que eu disse mostrou que isso estava surtindo o
efeito desejado, ou seja, dizendo: Não pense que vamos parar por aqui se
você não parar.
Outros
líderes europeus parecem ter perdido a compreensão da importância do
hard power no mundo. Isso se deve à infantilização? Por terem
terceirizado sua segurança para os americanos?
Ouça,
acho que você sempre deve se lembrar de onde veio. Não estou dando
lições a ninguém. A França foi libertada [durante a Segunda Guerra
Mundial] com seus aliados e graças à sua resistência interna. Ela
emergiu com a mesma coragem e generosidade internacional de nossos
aliados, que poderiam ter nos deixado de lado. Estávamos muito
enfraquecidos. A guerra nos colocou no centro do sistema internacional e
nos ajudou a construir um exército forte. E a França se equipou com uma
gramática estratégica e capacidades militares que são o produto dessa
história. Adquirimos armas nucleares muito cedo, o que nos deu uma forma
de maturidade estratégica. Nossos amigos britânicos também têm isso,
com um relacionamento mais próximo com os Estados Unidos da América.
E
quanto ao restante da Europa, quem pode julgar? Em um mundo que se move
tão rapidamente, achamos que tudo é rápido. Temos uma Europa
reunificada que é o produto dos últimos 35 anos, mas alguns de seus
membros viveram sob o jugo soviético de 1947 a 1990 e sentem que foram
abandonados pelo Ocidente. E desde 1990, essa Europa tem pensado em sua
segurança essencialmente em termos do escudo americano e da Otan. Eu
disse isso em suas colunas na entrevista de 2019 [a “morte cerebral” da
Otan], e assumo total responsabilidade pelo que disse. Isso não permite
que a Europa tenha uma estrutura de segurança comum, um conceito comum,
porque nos coloca na posição de pensar sobre nossa segurança apenas por
meio de um aliado que está sendo solicitado a pensar sobre isso, a
carregar muito do fardo, os Estados Unidos da América. Acima de tudo,
isso coloca a Europa em pé de igualdade com a Rússia, é claro, mesmo que
estejamos de fato em pé de igualdade com a Rússia hoje por causa da
guerra na Ucrânia.
Portanto,
há de fato um despertar estratégico na Europa como resultado da
agressão russa. Esse despertar está ocorrendo de várias maneiras.
Estamos vendo isso hoje com a proposta de capacidade apresentada pelos
alemães, o escudo europeu de defesa antimísseis. Ou com a Polônia, que
diz estar pronta para receber armas nucleares da Otan. Acho que nós,
europeus, precisamos nos sentar à mesa e criar uma estrutura coerente. É
isso que venho dizendo desde 2017. Como europeus, precisamos descobrir
como podemos defender nosso espaço com credibilidade e como, de maneira
crível e sustentável, podemos construir uma garantia de segurança para
cada um dos Estados-membros - como eu disse em Bratislava -, inclusive
para os países do flanco leste da Europa. Mas essa estrutura é muito
mais ampla do que o que está sendo feito atualmente na Otan. O que eu
gostaria de ver é uma discussão dentro da estrutura da Comunidade
Política Europeia. Os senhores têm em volta da mesa todos os países da
Europa, no sentido mais amplo do termo, e temos uma base para a
discussão com os acordos de cooperação existentes entre os
estados-membros da UE, mas também com a cooperação bilateral. O mais
estrutural para nós nesse aspecto é, sem dúvida, o que temos com o Reino Unido e os tratados de Lancaster House.
E
com relação a essas questões, o que o senhor poderia construir
concretamente em termos de defesa e segurança com os britânicos?
Depois,
vamos analisar o conceito estratégico correto para lidar com eles
juntos. Queremos ter capacidades equivalentes? Queremos ter limites
defensivos? Queremos ter capacidades ofensivas equivalentes que nos
permitam nos defender enquanto permanecemos em um espaço não balístico e
não nuclear? Queremos também uma capacidade de dissuasão, com dois
países que hoje a possuem, a saber, o Reino Unido e a França? E então,
depois de definirmos esse conceito de segurança, que ainda precisa ser
discutido, negociado e definido: o que fazemos com os sistemas de defesa
aérea? Quais deles são úteis contra quais mísseis? Em que capacidade e
para que finalidade? Que capacidades de disparo de médio e longo alcance
queremos? Temos alguns dos melhores fabricantes para fazer isso. Que
programa europeu vamos lançar? Há ainda a questão de como queremos usar
nossa capacidade nuclear, sem perder nossa soberania. Tudo isso deve ser
levado em conta.
Esse
é um debate grande, belo e existencial que os europeus devem ter, e que
não se reduz à União Europeia. É um debate que cada estado-membro deve
ter, mantendo sua soberania em termos de suas próprias capacidades, mas
também concordando em combinar essas soberanias para apresentar uma
resposta conjunta em escala continental. E essa resposta conjunta terá
de envolver vínculos de solidariedade, como os que já temos na estrutura
da Otan, com o Artigo 5, e na estrutura do Tratado da União Europeia,
com o Artigo 42-7. É também a única maneira de dissipar as ambiguidades
existentes e aliviar o fardo americano. E é a única maneira de fazermos
as escolhas industriais certas na Europa.
O
senhor está dizendo que, com o Reino Unido, está pronto para ter uma
discussão muito mais aprofundada, mesmo antes das eleições gerais no
Reino Unido, sobre uma cooperação de segurança aprimorada para toda a
Europa?
Antes
de mais nada, temos uma cooperação bilateral. Ela é essencial e acho
que faz do Reino Unido um parceiro privilegiado da França. Em segundo
lugar, quero que aprofundemos essa parceria. Em terceiro lugar, essa
parceria existe, está sobre a mesa. Mas acho que precisamos de uma
discussão estratégica aprofundada com todos os europeus que estiverem
preparados para isso.
Com o Reino Unido, a Noruega e outros países que não fazem parte da União Europeia, sobre segurança?
E
sobre a dissuasão nuclear da França? O senhor está preparado para ter
uma discussão agora com seus parceiros europeus sobre como estender a
dissuasão francesa à Europa?
A
dissuasão está no centro da soberania. Portanto, a dissuasão nuclear
francesa, inclusive por meio de suas regras de engajamento, é a
quintessência da soberania do povo francês, porque é o Presidente da
República, como chefe das forças armadas, quem define o engajamento
dessa força nuclear em todos os seus componentes e quem define os
interesses vitais da França. Não se trata de mudar isso. Mas é uma
questão de dizer, pela natureza de nossos interesses vitais e pelas
escolhas que fazemos, nossa geografia, que estamos contribuindo para a
credibilidade da defesa europeia. Portanto, temos uma estrutura
estratégica. O Presidente Mitterrand foi o primeiro a indicar que a
Europa era um de nossos interesses vitais.
Sem
entrar em maiores detalhes, sem criar elementos de sistematicidade e de
acordo com uma linha de raciocínio que também é conhecida por nossos
parceiros e que cria limites para eles. Porque essa é precisamente uma
escolha soberana feita pela França e seu presidente. Mas acho que se
quisermos construir um conceito estratégico eficaz e confiável de defesa
conjunta, que é o pré-requisito para uma estrutura de segurança
conjunta para os europeus, as armas nucleares devem ser incluídas no
debate, dentro dos limites conhecidos que regem seu uso e sem
alterá-los. Portanto, proponho dizer que temos essa capacidade, ela
existe e deve ser levada em conta e compreendida por nossos parceiros
para evitar a duplicação e evitar a escalada, que seria inútil quando
temos essas capacidades, mas sem compartilhá-las. Considerando as
sensibilidades políticas de diferentes países e nossas próprias regras
de engajamento.
Em
termos práticos, como convencer os dois países da linha de frente, a
Polônia, por exemplo, que pode duvidar da garantia americana e pensar
que, em um mundo em que as armas nucleares estão se tornando mais
comuns, em que a Coreia do Sul tem uma arma nuclear ou o Japão tem uma
arma, como convencer a Polônia de que não precisa de uma arma nuclear
própria e convencer a Rússia de que a garantia que você está oferecendo é
confiável?
Essas
são duas perguntas muito importantes. A primeira é sobre armas
nucleares e proliferação. Acho que nós, europeus e americanos,
precisamos fazer um novo esforço maciço, e espero trazer os chineses a
bordo também. A China
tem um interesse objetivo em fazer uma parceria conosco nessa questão.
Precisamos retomar a luta contra a proliferação nuclear. Precisamos
agora reconstruir uma estrutura para gerenciar a desestabilização
regional, a atividade balística e o programa nuclear do Irã. Isso é
absolutamente fundamental e precisamos voltar a exercer pressão para
evitar a proliferação nuclear. O segundo ponto é que muitos dos países
que você mencionou podem ter capacidade, mas não têm capacidade nuclear
propriamente dita. Há países que podem ter bombas nucleares, mas sob a
decisão e o guarda-chuva americanos, o que é muito diferente das
capacidades britânicas ou francesas. Vocês [os britânicos] têm uma
escolha soberana e, no caso da França, controle total sobre o processo e
nenhuma dependência. É muito importante fazer a distinção entre os
dois.
Estou
convencido e farei todos os esforços, pelo menos no que diz respeito à
França, para discutir esse assunto com os americanos, os chineses e
todos aqueles que estão dispostos a trabalhar para combater a
proliferação. Porque um mundo em que cada vez mais Estados controlam
capacidades nucleares e militares nucleares é um mundo de perigo e
desordem. Então, temos interesse, no dia seguinte [à guerra da Rússia na
Ucrânia], na estrutura de segurança conjunta que vamos elaborar para o
continente. A Europa deve estar à mesa para negociá-la e discutir as
garantias de segurança. Com relação às implantações balísticas, haverá
elementos de limitação - em todo caso, essa é a gramática com a qual
convivemos até agora - de armas nucleares, que certamente também devem
envolver os americanos. E também haverá um diálogo sobre a natureza das
parcerias que os europeus terão dentro da estrutura da Otan e da União
Europeia, mas mais sólidas do que as que estabelecemos no passado. Mas
isso será no dia seguinte.
Por
último, estou convencido de que se os europeus aprenderem a coordenar
melhor as suas capacidades, se continuarem a armar-se, se reforçarem a
sua “intimidade estratégica”, graças à Otan, claro, mas indo mais longe
do que o fazemos atualmente, seremos mais credíveis face à Rússia. Temos
credibilidade porque temos duas potências nucleares europeias entre os
países europeus que são atualmente membros da Otan. Para muitos outros, a
garantia americana hoje, e espero que amanhã, de um quadro comum de
segurança e de uma defesa comum credível, de um aggiornamento profundo,
de uma força económica e de uma base industrial e tecnológica de defesa
europeia maciça. É por isso que este é também um dos elementos mais
importantes. Um dos pontos fortes da Rússia atual é o facto de poder
investir muito e produzir muito, porque organizou a sua base. É um
esforço a longo prazo que é insustentável em termos militares. Dedicar
um terço do seu orçamento à defesa não é sustentável para um país cujo
produto interno bruto é inferior ao da França, da Alemanha ou do Reino
Unido. Se nos unirmos, somos capazes de o fazer, e é por isso que o
famoso adágio é mais verdadeiro do que nunca: “a força está nos
números”. É a força dos europeus.