terça-feira, 7 de maio de 2024

O mundo sem esperança

 Por Leonardo Boff*

Por que o engajamento sócio-político hoje é tão difícil?

1.

Estamos assistindo nos dias atuais a um preocupante recuo nas bases populares e em vários movimentos sociais, em particular, de cariz político, do engajamento por uma transformação da sociedade, seja a nível nacional, seja a nível mundial. Importa reconhecer que vigora pesado sentimento de impotência e também de melancolia. À parte desta constatação, estamos igualmente assistindo nos países centrais (EUA e Europa) a juventude universitária se rebelando contra a desproporcional, indiscriminada e genocida reação do Estado de Israel contra a população da Faixa de Gaza como resposta ao ato terrorista do Hamas a 7 de outubro do ano passado.

O establishment político, dominante no mundo, a partir do Norte Global, reage com violência inusitada contra os manifestantes. Na Alemanha qualquer manifestação pro Palestina da Faixa de Gaza é oficialmente proibida e logo reprimida ao menor sinal de apoio à causa palestina e contra genocídio que lá está ocorrendo. Nos EUA a repressão policial ganha expressões violentas contra estudantes e professores universitários, até contra uma candidata à presidência do país.

Entre nós no Brasil e em geral na América Latina se nota marasmo e ausência de manifestações públicas, sequer contra o genocídio, em especial de 14 mil criancinhas e a morte de cerca 80 mil cidadãos sob os pesados bombardeios israelenses, usando de forma criminosa a Inteligência Artificial (IA) para assassinar determinadas pessoas e sua inteira família, dentro de suas próprias casas.

Precisamos tentar entender o porquê essa inércia. Aduzo alguns pontos que nos permitem vislumbrar algum entendimento da atual situação, seja concernente à Ucrânia sendo arrasada pela brutalidade russa e seja ao massacre e ao genocído na Faixa de Gaza.

2.

Vigora em grande parte da sociedade, em particular no Sul Global, mas não excluindo porções no Norte Global, um forte sentimento de impotência. Em primeiro lugar, objetivamente, o sistema capitalista em sua expressão mais exacerbada do neoliberalismo da escola de Viena/Chicago se impôs no mundo todo. Quem resiste sofre repressões políticas, ideológicas e eventualmente golpes de estado como foi o caso do impeachment da Dilma Russeff. Procura-se impor o que Carl Polanyi já em 1944 chamou de A grande transformação: passar de uma sociedade com mercado para uma sociedade de puro mercado. Vale dizer, tudo vira mercadoria, a vida humana, órgãos, sementes, água, alimentos, tudo e tudo é posto no mercado e ganha seu preço. Isso já fora previsto em 1847 por Marx em A miséria da filosofia.

Esse fato objetivo gera uma reação subjetiva: começa-se ver o mundo sem esperança, de que não há alternativa viável à essa enormidade mundializada. Ela se exprime pela TINA (There is no Alternative): “Não há outra Alternativa”. O efeito é um sentimento de impotência e de desencanto recalcado. Daí se deriva uma atitude derrotista de que não vale a pena ir contra o sistema, por ser grande demais e nós pequenos demais.

Obrigam-se a fazer concessões para sobreviver num mundo profundamente desigual e injusto, produtor de melancolia. Esta irrompe quando não se percebe nenhuma luz no fim do túnel. Então, por que se engajar por algo alternativo que não tem chance de triunfar? Este tipo de mundo não tem jeito mesmo, pensam não poucos. Devemos nos adaptar a ele para sofrer o menos possível.

Um segundo ponto é a estratégia perversa elaborada pelo sistema dominante: criar uma cultura do consumo. Oferecer o maior número de objetos desejáveis, mesmo que mais de 90% sejam totalmente fúteis e desnecessários. Trata-se de manipular uma das forças mais poderosas da psiqué humana: o desejo, cuja natureza já vista por Aristóteles e confirmada por Freud é a de ser ilimitada.

Já foi dito por notáveis psicólogos (exemplo: Mary Gomes e Allen Kenner) que “este é o maior projeto psicológico jamais produzido pela espécie humana”: impedir que os cidadãos deixem de se considerar cidadãos para se transformarem em simples consumidores e consumidores viciados no consumo.

Para seduzi-los, gastam-se trilhões de dólares em propaganda pela mídia de massa e com todos os recursos possíveis da sedução. Isto representa seis vezes mais investimento anual necessário para garantir alimentação, saúde, água e educação de qualidade para toda a humanidade. É difícil imaginar perversidade maior. Mas ela é predominante no modo de vida geral da humanidade que daí emergiu.

A impotência e a melancolia internalizadas fazem com que a maioria das pessoas, lastimavelmente, dos jovens, não se animem a engajar-se social e politicamente em algum movimento ou projeto de transformação. A educação em instituições formais é decisiva para a socialização desta leitura da realidade. Vandana Shiva, grande cientista e ecologista-feminista da Índia a chama de “monocultura das mentes”. Essa monocultura gera nos estudantes a convicção de que este mundo é bom e desejável, consciências ingênuas que não se dão conta de que são cooptados pelos sistema imperante e feitos seus reprodutores.

3.

Contra tudo isso Paulo Freire lançou seu projeto educativo e libertador, a começar com a Pedagogia do oprimido, Educação como prática da liberdade e concluindo com a Educação com amor e esperança. Cunhou a expressão “esperançar”: não cruzar os braços (esperar que as coisas por si mudem), mas criar as condições para que a esperança alcance seus objetivos transformadores.

Como se libertar da consciência ingênua manipulada? Não basta apenas o processo de conscientização, pois entender criticamente o que acontece, não quer dizer mudar o que acontece. Temos que passar a uma prática alternativa, enfrentar o sistema dominante com um paradigma de sociedade diferente, igualitária, não consumista, mas solidária com um modo de produção fundado nos ritmos da natureza (agroeologia e economia circular) e outro tipo de democracia ecológico-social, de baixo para cima, na qual se reconheçam os direitos da natureza e da Mãe Terra, criando o Todo, a humanidade e a natureza incluídas na grande Casa Comum, a Mãe Terra.[1]

*Leonardo Boff é teólogo, filósofo e escritor. Autor, entre outros livros, de A busca da justa medida: como equilibrar o planeta Terra (Vozes Nobilis). [https://amzn.to/3SLFBPP]

Fonte:  https://aterraeredonda.com.br/o-mundo-sem-esperanca/?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=novas_publicacoes&utm_term=2024-05-07

segunda-feira, 6 de maio de 2024

Por que influenciadores evangélicos engajam mais?

 Por Juliano Spyer*

Religião em debate: 'evangélicos são plurais, conservadorismo é mito'

Seguidores de Michelle Bolsonaro e Nikolas Ferreira aprendem a participar em suas igrejas

Na semana passada, repercutiu nas redes sociais um estudo sobre o poder de engajamento de influenciadores evangélicos.

Pesquisadores da UFF e da UFRJ coletaram dados de 191 perfis durante três meses. Dos dez nomes que mobilizaram mais participação, oito são evangélicos. De onde vem essa força?


Igrejas e líderes evangélicos são corretamente criticados por usar a religião para interferir na política. Mas é um equívoco retratar o evangélico como alguém facilmente manipulável, que obedece calado o comando de seus líderes. Membros trazem para suas comunidades visões de mundo diferentes e interesses às vezes conflitantes. Por isso é oportuno analisar igrejas como escolas de cidadania.


Diversos motivos explicam o crescimento rápido do número de evangélicos no Brasil. Além do aspecto religioso, igrejas servem como associações onde os moradores de um bairro podem atuar de forma organizada. É como se a igreja fosse um pequeno país. Fiéis se organizam a partir de grupos de trabalho chamados de "ministérios", especializados em áreas como juventude, música e gestão, entre outros.

Quem participa tem mais prestígio nas redes de ajuda mútua de sua comunidade. A maioria dos evangélicos brasileiros são pessoas de baixa renda e subalternas; nos locais de trabalho, usam uniformes, seus nomes são desconhecidos e eles apenas obedecem. A igreja subverte essa realidade. Lá o fiel tem um nome, veste suas melhores roupas e, ao participar, torna-se alguém reconhecido.

Em igrejas históricas, como a Metodista e a Luterana, há um ambiente de igualdade radical. Ao ser batizada, a pessoa se torna membro e tem os mesmos direitos para participar das tomadas de decisão. "É um processo dinâmico de aprendizado democrático", diz o pastor e sociólogo Valdinei Ferreira. "Ao acompanhar as assembleias, os membros aprendem regras parlamentares, como pedir a palavra, fazer uma intervenção, apresentar um projeto substitutivo e encaminhar propostas."

Mesmo em igrejas como a Universal, que possuem gestões mais centralizadas, há espaço para a atuação de pequenas lideranças. "Apesar da relação mais direta com as sedes nacionais, essas lideranças locais agem de acordo com as necessidades de cada contexto", explica a professora da UnB Jacqueline Teixeira.

Por que publicações de influenciadores como Michelle Bolsonaro e Nikolas Ferreira geram mais engajamento que as de seus pares não evangélicos? Talvez a resposta tenha menos a ver com eles e mais com seus seguidores.

Vale examinar: em que medida o ambiente participativo das igrejas forja cidadãos mais atuantes, que abraçam o cristianismo como ideologia?

* Antropólogo, autor de "Povo de Deus" (Geração 2020), criador do Observatório Evangélico e sócio da consultoria Nosotros  - Imagem da Internet

Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/juliano-spyer/2024/05/por-que-influenciadores-evangelicos-engajam-mais.shtml?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=newscolunista

O desemprego baixo atual pode impactar os preços, como diz o BC?

Por Marcelo Roubicek

 Roberto Campos Neto, de óculos, terno e gravata, está sentado olhando para o lado. É um homem branco de cerca de 50 anos.OTO: Adriano Machado/REUTERS - 15.FEV.2023


Presidente da autoridade monetária do Brasil, Roberto Campos Neto cita ‘preocupação’ com aquecimento do mercado de trabalho. Lógica remete à Curva de Phillips, teoria de 1958

O desemprego no Brasil iniciou o ano de 2024 no menor patamar para o período em uma década. É o que revelaram dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) publicados na terça-feira (30).

No mesmo dia, o presidente do Banco Central usou a palavra “preocupação” ao comentar a situação do mercado de trabalho em entrevista ao canal CNN Brasil. Roberto Campos Neto falou na possibilidade de que o emprego aquecido alimente a inflação.

A relação entre desemprego e inflação é explorada por economistas há décadas.

Neste texto, o Nexo apresenta a discussão e o cenário brasileiro em 2024. Também ouve economistas que avaliam, com visões diferentes, o quadro e a preocupação de Campos Neto.

Inflação e desemprego no Brasil em 2024

No primeiro trimestre de 2024, a taxa de desemprego no Brasil ficou em 7,9%. Foi o menor número para o período desde 2014.

10 ANOS DE DESEMPREGO

Trajetória da taxa de desemprego no Brasil. Forte alta em 2020 e 2021, depois queda relativamente constante até 2024.

A inflação, por sua vez, também entrou em 2024 em queda. Depois do ciclo de alta de preços que culminou em 2022, quando atingiu 12%, a inflação vem perdendo força no país.

Para conter os preços, o Banco Central elevou os juros básicos do país. Em 2023, com maior alívio na inflação, começou a cortar a taxa Selic.

Em 2024, a autoridade monetária expressa preocupação com a lentidão do alívio inflacionário, e já sinalizou que pode reduzir o ritmo de corte de juros.

10 ANOS DE INFLAÇÃO

Trajetória de inflação e metas no Brasil. Forte alta entre 2020 e 2022, depois queda relativamente estável até 2024.

A fala de Campos Neto e a reação do governo

Campos Neto expressou na terça-feira (30) preocupação com o impacto inflacionário do mercado de trabalho — sobretudo no setor de serviços.

“O Banco Central adora quando a gente tem um regime de emprego pleno […]. É nossa situação [atual], que melhorou muito e foi uma grande surpresa”, disse o presidente do órgão à CNN Brasil. “Mas a preocupação vem quando as empresas não conseguem contratar e você tem que começar a subir o salário. Se você sobe o salário para o mesmo nível de produção, isso significa que você está iniciando um processo inflacionário”, afirmou.

FOTO: Jonas Pereira/Agência SenadoEdifício-sede do Banco Central, em Brasília

Edifício-sede do Banco Central, em Brasília

A fala de Campos Neto ecoa outras sinalizações recentes do Banco Central. O Comitê de Política Monetária do órgão inseriu um trecho similar na ata da reunião de 19 e 20 de março.

Essas indicações foram recebidas com críticas por membros do governo Luiz Inácio Lula da Silva e integrantes do PT. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, chegou a pedir publicamente que o Banco Central “não se assuste” com dados positivos de emprego. O temor é que o órgão freie o ciclo de corte da Selic por causa do mercado de trabalho aquecido.

Entenda o que é a Curva de Phillips

A relação entre desemprego e inflação é explorada por economistas desde meados do século 20. Em 1958, o economista neozelandês A.W. Phillips, da London School of Economics, publicou um artigo identificando uma relação inversa entre desemprego e inflação. Essa oposição ganhou o apelido de “Curva de Phillips”.

A lógica é que um desemprego mais baixo significa maiores salários e mais dinheiro circulando na economia, o que pressiona os preços — a partir da lógica da demanda e da oferta. Já quando o desemprego é alto, menos dinheiro circula e isso tira a pressão da inflação. Por isso a relação inversa entre as duas variáveis.

A Curva de Phillips virou tema central da teoria econômica, e foi analisada e destrinchada por inúmeros economistas desde então. Ela passou por uma série de transformações — a principal delas sendo a que incluiu a variável das expectativas na análise. Por décadas, diversos estudos tentaram analisar se a oposição entre desemprego e inflação é válida na prática, com resultados por vezes conflitantes.

A preocupação de Campos Neto sob análise

O Nexo conversou com dois economistas que avaliaram a preocupação de Campos Neto com possíveis impactos inflacionários do mercado de trabalho brasileiro em 2024.

  • Renan Pieri, economista da FGV-Eaesp (Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas)
  • André Biancarelli, professor do Instituto de Economia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas)

O que os estados do mercado de trabalho e dos preços no Brasil em 2024 dizem sobre a relação entre inflação e desemprego?

RENAN PIERI Ao longo da história, a Curva de Phillips teve comportamentos diferentes. Cada país tem a sua própria relação entre inflação e desemprego, e essa relação pode mudar ao longo do tempo. E além de inflação e desemprego, a relação também depende da expectativa de inflação dos agentes econômicos.

Não é toda melhora do mercado de trabalho que gera pressão inflacionária. Depende se a melhora veio de um choque de demanda ou de oferta. Se as empresas estão ficando mais produtivas, têm inovado e isso está melhorando o mercado de trabalho, pode haver até uma queda de preços, com mais oferta de produtos. Nesse cenário não seria preocupante. Mas se o mercado tem melhorado por conta de aumento de demanda [na economia], há uma pressão nos preços.

Está embutida na interpretação do Banco Central que estamos num período de demanda aquecida. E isso pode levar a alguma preocupação. Em termos gerais, um nível de ocupação mais alto sempre é um sinal de alerta para o Banco Central.

Estamos vendo uma melhora significativa do mercado de trabalho no Brasil. No cenário em que criamos mais postos de trabalho e o salário aumenta um pouco, isso pode sim criar alguma pressão sobre os preços. Para as empresas, mão de obra é um dos custos mais relevantes, principalmente no setor de serviços. Então se há mais gente ocupada e com salários mais altos, pelo menos uma parte disso pode ser repassada para preços. Estamos vendo isso também nos EUA.

ANDRÉ BIANCARELLI A Curva de Phillips talvez seja, na discussão de política monetária, a questão mais antiga em debate. É uma relação teórica que é objeto de controvérsia há muitas décadas. Nos últimos tempos, ela está sendo profundamente questionada, não só no Brasil, mas no mundo inteiro, principalmente depois da pandemia. É um debate que acontece particularmente nos EUA.

A manutenção de uma inflação baixa com uma taxa de desemprego que em outros tempos teria provocado uma inflação é uma novidade do pós pandemia, que tem desafiado e gerado debates bastante interessantes entre banqueiros centrais e acadêmicos do mundo inteiro. A novidade se dá no plano dos fatos e no plano da discussões. E tudo isso ainda está em aberto. Os Bancos Centrais estão navegando em águas desconhecidas no mundo inteiro. E não é uma controvérsia heterodoxa, digamos assim.

A diferença é que no Brasil, pelo perfil e estilo [de Campos Neto e do BC], navegar em águas desconhecidas na relação entre inflação e desemprego vai significar um excesso de conservadorismo. Da forma como o noticiário brasileiro reage a isso, parece muitas vezes que não é controverso que uma taxa de desemprego em queda seja um sinal de ameaça à inflação. Mas é algo que está sendo profundamente questionado por muitos economistas atualmente.

Como avalia a ‘preocupação’ de Roberto Campos Neto com o mercado de trabalho aquecido?

RENAN PIERI Há no mercado de trabalho algumas evidências de que a economia passa por um período aquecido que pode sim gerar uma pressão sobre os preços no futuro. Não é uma versão alta o suficiente para justificar, por exemplo, uma nova alta da Selic, mas pode ser suficiente para justificar um corte mais cauteloso do que antes.

A lei de autonomia do BC dá dois objetivos para o Banco Central perseguir. Um é a meta de inflação. O outro é o pleno emprego. Nessa visão, o Banco Central conseguiria “ajustar” o desemprego por mudanças na Selic. Mas tem um componente importante dessa história que são as expectativas.

Se fica claro que ele está mais preocupado com o desemprego do que com a meta de inflação, isso pode levar os agentes a acharem que a inflação vai ficar mais alta. Se eles acham que a inflação vai ficar mais alta, reajustam seus contratos para um cenário de preços mais altos. E aí a inflação mais alta acontece.

Tem sido uma tradição do Banco Central brasileiro sinalizar um compromisso forte com a meta de inflação. Nos poucos momentos desde 1999 [início do regime de metas de inflação] em que duvidamos do compromisso do BC com a meta, principalmente no governo Dilma, isso criou um ruído e a inflação mudou de patamar muito rápido. Então há essa tradição de focar na meta e, portanto, usar o instrumento principal — a taxa de juros — para atingir a meta, deixando o desemprego como questão secundária. A meu ver, tem sido uma estratégia bem sucedida. É muito perigoso o Banco Central tentar perseguir um ponto da Curva de Phillips [aceitar mais inflação para ter menos desemprego], porque isso pode mexer nas expectativas de inflação.

ANDRÉ BIANCARELLI Nem o debate prático e teórico permite uma afirmação peremptória de que o desemprego baixo vai gerar inflação, e nem a situação do mercado de trabalho brasileira atual é taxativa no sentido de que estejamos muito próximos do pleno emprego. É fato que o mercado de trabalho está num momento de relativo aquecimento. Mas ainda não é uma situação ideal — tanto do ponto de vista do número de pessoas procurando emprego, quanto do tipo de ocupação que tem sido gerado.

E a inflação brasileira está muito bem comportada. O que têm de ruim são as expectativas de inflação para frente. Mas a inflação corrente se comporta bem. E mesmo o receio do Roberto Campos Neto e de analistas de mercado de uma possível pressão do mercado de trabalho na inflação de serviços não se verifica.

No fundo, temos uma tentativa do Banco Central de elencar, nas suas declarações, motivos para que na próxima reunião do Comitê de Política Monetária [7 e 8 de maio] ele possa, sem causar grandes solavancos no dia, possivelmente optar por uma redução de taxa de juros um pouco menor. Junto com isso, ele elenca a questão internacional — que, para mim, é a mais importante — e a da mudança da meta fiscal [de 2025 e 2026].

Mas eu diria que quanto melhor estiver o mercado de trabalho, isso deveria, para um economista, ser motivo de comemoração, não de preocupação. Há um excesso de zelo, uma visão muito negativa de um fenômeno que tende a ser positivo. Reduzir o desemprego é um aspecto desejável da condução da política econômica como um todo, assim como reduzir a inflação. A situação é um pouco reveladora da forma como a condução da política monetária no Brasil talvez seja enviesada demais, achando um motivo para manter os juros altos.

Fonte:  https://www.nexojornal.com.br/expresso/2024/05/05/desemprego-baixo-precos-bc?utm_medium=email&utm_campaign=Nexo%20%20Hoje%20-%2020240506&utm_content=Nexo%20%20Hoje%20-%2020240506+CID_f8054d0b50e4a4ab540bf66e97b2625e&utm_source=Email%20CM&utm_term=Leia%20sobre%20o%20tema

domingo, 5 de maio de 2024

Toda Maria só existe porque Marta está servindo. Toda Marta, para crescer, tem de pensar como Maria

Por Leandro Karnal

Marta, a tarefeira, e Maria, a mística, em quadro de Vermeer de 1655 

Marta, a tarefeira, e Maria, a mística, em quadro de Vermeer de 1655  
Foto: Jan Vermeer/Reprodução

Respeitar o diretor e desrespeitar a faxineira é puro oportunismo cínico. Há hierarquias variadas, todavia nunca percamos o horizonte de que todos os seres humanos ao nosso redor são, por definição, seres humanos

Uma limpa, cozinha e serve. A outra observa e aprende. A fisicamente ativa tornou-se padroeira de todas as donas de casa e daqueles que hospedam pessoas nos hotéis. A irmã atenta à palavra é o modelo da vida contemplativa. No Evangelho, Jesus louva Maria, a que fica escutando o que o Mestre fala. Diz que a ouvinte escolheu a parte que não será tirada dela. Enquanto isso, Marta se inquieta com os afazeres.

Segundo uma tradição, a atarefada fugiu para o sul da França. Instalada em Tarascon, venceu um dragão. Os santos que matam dragões (sauróctonos tais quais Jorge ou Marcelo de Paris) simbolizam a luta contra o paganismo e o demônio. Continuou ativa.

Marta era uma trabalhadora; Maria uma mística. A família de Betânia se completou com o famoso Lázaro. Viraram um refúgio para Jesus. Ali tivemos três exemplos complementares de comunidade religiosa: a fé que age, a que contempla e aquela que ressuscita.

Fui a um casamento muito elegante na Fundação Maria Luísa e Oscar Americano em fevereiro deste ano. A festa foi perfeita, das mesas ao cardápio. Havia um batalhão de “Martas” ali. Rondando com bandejas, auxiliando com travessas, recolhendo coisas: muitas pessoas silenciosas e ágeis cuidavam do ambiente, para que tudo ficasse agradável aos convidados. São muros de arrimo do que ocorre na nossa vida. Em cada sala que adentro e, ali, noto limpeza, mesmo não percebendo a figura de quem assim deixou, penso no imenso silêncio de Marta.

O curioso do trabalho braçal é que ele, quando perfeitamente eficaz, fica invisível. Notamos, de imediato, uma sala muito suja. No entanto, raramente nos damos conta do momento em que ela está sem pó. São “fantasmas laborais”, que agem calados. Chegam antes, circulam invisíveis, retiram-se sem ruído. Se funcionarem 100%, não serão lembrados. Se houver uma falha, serão culpados.

Eu gosto muito da expressão que usamos na classe média e alta do Brasil. A comida é servida, a casa está limpa, tudo brilha, mas a pessoa que recebe, elogiada, diz que tem boas “auxiliares”. No rigor da expressão, a gentil senhora estaria no chão, encerando. Ao lado dela, uma funcionária ajudaria com panos novos o afã da proprietária. Isso seria uma “auxiliar”. O grosso do trabalho corre por minha conta; outras pessoas a quem eu pago me “auxiliam”. Sabemos que não é assim. Para que Maria escute, feliz, Marta deve trabalhar muito e, amiúde, sozinha.

Fui educado para considerar digno todo trabalho honesto. Certa vez, fui dar uma aula particular em um prédio de luxo. Na entrada, expliquei o que eu iria fazer. O porteiro pediu que eu subisse pelo elevador de serviço. Segui por ele. A dona da casa ficou horrorizada e ligou, com insultos, para a portaria. Achei curioso: eu era um trabalhador que iria prestar um serviço pago; a entrada não “ofenderia” minha honra. É uma herança ruim da tradição escravocrata: o trabalho (especialmente o físico) é algo estranho, que deve ser ocultado.

Temos hierarquias sociais e de poder. Meu texto não as ataca. Fui contratado por muitas instituições de ensino. Eu era um empregado e cumpria as determinações de superiores. Teria recusado se alguma ofendesse aquilo em que eu acredito. Também, eu recusaria uma ordem para algo ilícito. Assim não ocorrendo, convivo bem com ambientes de chefes e de ordens. Nunca me esqueço de uma proprietária de escola que ouviu uma professora indicar como iria desenvolver uma filosofia pedagógica para o lugar onde trabalhávamos. A dona ouviu e disse com atenção e calma: “Excelente! Compre uma escola e faça do seu jeito”. Parecia o conselho de Assis Chateaubriand quando um jornalista indicava mudanças no rumo das empresas do célebre paraibano.

Aceito hierarquias. Não sou ressentido com o poder. Exijo sempre o respeito ao trabalho. Há cargos e poderes. A dignidade pertence, por igual, à faxineira e à diretora. Não precisamos amar todas as pessoas no ambiente laboral: basta respeitá-las.

Uma senhora de estirpe elevada me contou que estimulava os filhos a não terem patrão. Acho a vocação do empreendedorismo rara e muito específica. Penso ser útil estimular todo mundo a crescer, a estudar, a buscar desafios. Porém, se você vai abrir seu próprio negócio, deve saber que negociar com fornecedores e atender clientes obriga-o a um jogo de habilidades muito maior do que ter apenas um chefe. Empreenda, se desejar. Descobrirá que o mundo tem um milhão de pequenos poderes, quase todos problemáticos. Candidatando-se a um concurso público ou buscando um arriscado negócio seu, busque o melhor de si, ao estilo de uma Marta, diligente, valorizando sempre todos os que trabalham perto de você. Respeitar o diretor e desrespeitar a faxineira, já escrevi, é puro oportunismo cínico. Há hierarquias variadas, todavia nunca percamos o horizonte de que todos os seres humanos ao nosso redor são, por definição, seres humanos. Parece tautologia, mas é puro humanismo sofisticado.

Por fim: Marta é uma “tarefeira”. Ela precisa aprender com a irmã a parar e pensar. Toda Maria só existe porque Marta está servindo. Toda Marta, para crescer, precisa pensar como Maria. Precisamos aprender com uma e outra. Tenho esperança de que possamos servir ao Mestre e... ouvi-lo. 

* Historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Fonte:  https://www.estadao.com.br/cultura/leandro-karnal/toda-maria-so-existe-porque-marta-esta-servindo-toda-marta-para-crescer-tem-de-pensar-como-maria/

‘A Europa corre um risco mortal’, diz Emmanuel Macron em entrevista

Por The Economist 
TOPSHOT - French President Emmanuel Macron speaks during a press conference at the end of the international conference aimed at strengthening Western support for Ukraine, at the Elysee presidential palace in Paris, on February 26, 2024. The meeting at the Elysee Palace will be a chance for participants to "reaffirm their unity as well as their determination to defeat the war of aggression waged by Russia in Ukraine", the French presidency said. (Photo by GONZALO FUENTES / POOL / AFP)
Entrevista comEmmanuel MacronPresidente da França

O presidente da França apresentou sua visão apocalíptica em uma entrevista para a ‘The Economist’ no Palácio do Eliseu

Em 1940, após a França ter sido derrotada pela blitzkrieg nazista, o historiador Marc Bloch condenou as elites de seu país do período entre guerras por não terem enfrentado a ameaça que se avizinhava. Hoje, Emmanuel Macron cita Bloch como um aviso de que as elites europeias estão presas na mesma complacência fatal.

O presidente da França apresentou sua visão apocalíptica em uma entrevista para a The Economist no Palácio do Eliseu. Isso aconteceu dias após seu discurso sobre o futuro da Europa - um maratona caótica de duas horas à la Castro, abordando desde aniquilação nuclear até uma aliança de bibliotecas europeias. Os críticos de Macron o chamaram de uma mistura de campanha eleitoral, o usual interesse próprio francês e a vaidade intelectual de um presidente jupiteriano pensando em seu legado. Gostaríamos que estivessem certos.

Na verdade, a mensagem de Macron é tão convincente quanto alarmante. Em nossa entrevista, ele avisou que a Europa enfrenta um perigo iminente, declarando que “as coisas podem desmoronar muito rapidamente”. Ele também falou sobre a montanha de trabalho pela frente para tornar a Europa segura. Mas ele é atormentado pela impopularidade em casa e pelas relações ruins com a Alemanha.

O presidente da França, Emmanuel Macron, espera pela primeira-ministra da Estônia, Kaja Kallas, no Palácio do Eliseu, em Paris, França
O presidente da França, Emmanuel Macron, espera pela primeira-ministra da Estônia, Kaja Kallas, no Palácio do Eliseu, em Paris, França  Foto: Geoffroy Van Der Hasselt/AFP

Como outros visionários sombrios, ele enfrenta o risco de sua mensagem ser ignorada. A força motriz por trás do aviso de Macron é a invasão da Ucrânia. A guerra mudou a Rússia. Desrespeitando o direito internacional, emitindo ameaças nucleares, investindo pesadamente em armas e táticas híbridas, ela adotou “a agressão em todos os domínios de conflito conhecidos”.

Agora, a Rússia não conhece limites, ele argumenta. Moldávia, Lituânia, Polônia, Romênia ou qualquer país vizinho poderiam ser seus alvos. Se vencer na Ucrânia, a segurança europeia estará em ruínas.

Leia, abaixo, a íntegra da entrevista.

Em seu discurso na Sorbonne, você disse que “a Europa pode morrer”. O que isso significa de fato? O que está em jogo?

Eu estava me referindo às palavras de Paul Valéry após a 1ª Guerra Mundial sobre o fato de que agora sabemos que uma civilização pode morrer. Em primeiro lugar, porque temos um risco militar e geopolítico, um risco de segurança. A Europa não é a região mais segura do mundo, embora o continente tenha um modelo de Forças Armadas sólido, abrangente e eficaz, como o Exército francês.

No entanto, quando olhamos para a Europa como um todo, vemos que ela investiu muito menos em sua defesa e segurança do que os Estados Unidos ou a China, e que se encontra em um ambiente global em que a proliferação de conflitos está voltando: a Rússia, mas também o Irã e outras potências. E não só a guerra de alta intensidade está voltando ao solo europeu, como também está sendo travada por uma potência com armas nucleares e com uma retórica beligerante. Tudo isso significa que a Europa deve legitimamente se perguntar sobre sua proteção militar. E, de fato, ela deve se preparar para não ter mais a mesma proteção dos Estados Unidos, como eu disse em 2019. Temos de nos preparar para nos proteger.

Em segundo lugar, o desafio para a Europa é econômico e tecnológico. Não pode haver grande potência sem prosperidade econômica, sem soberania energética e tecnológica. Vimos isso no início dessa guerra de agressão, quando o modelo de produção europeu dependia muito do gás russo, menos para a França do que para os outros. Portanto, precisamos construir nossa soberania, nossa autonomia estratégica, nossa independência em termos de energia, materiais e recursos raros, mas também em termos de habilidades e tecnologias essenciais. E já começamos a despertar. Contribuímos muito para isso nos últimos anos, mas hoje ainda não chegamos ao fim. Precisamos ser ainda mais poderosos, mais fortes e mais radicais.

Somado a isso está o fato de que a Europa não produz riqueza per capita suficiente, em comparação com outras grandes potências, e nossa grande ambição, em um momento em que os fatores de produção estão sendo realocados, seja em tecnologia limpa ou inteligência artificial, é ser um continente atraente para esses grandes investimentos. Nossa ambição é garantir que essas tecnologias disruptivas não se desenvolvam primeiro em outras regiões, seja porque são muito bem subsidiadas e incentivadas, como nos Estados Unidos e por causa do investimento em massa na IA, seja porque os fatores de produção são muito mais baratos lá, como nos Estados Unidos ou na China.

O presidente da França, Emmanuel Macron, discursa em uma universidade em Guangzhou, China
O presidente da França, Emmanuel Macron, discursa em uma universidade em Guangzhou, China  Foto: Thibault Camus/AP

Em terceiro lugar, a Europa é afetada por essa crise das democracias. Somos o continente que inventou a democracia liberal. Nossos sistemas sociais são baseados nessas regras. No entanto, estamos sendo atingidos pelas vulnerabilidades criadas pelas redes sociais, pela digitalização de nossas sociedades e pela forma como a democracia funciona. Vulnerabilidade democrática, especialmente em época de eleições, que alimenta esse tipo de impulso antiliberal, ou iliberal, como dizemos agora. Vulnerabilidade porque nossos jovens são expostos ao mau uso das telas e da tecnologia digital e nossas sociedades são transformadas por causa desse mau uso.

É esse triplo risco existencial para a nossa Europa: um risco militar e de segurança; um risco econômico para a nossa prosperidade; um risco existencial de incoerência interna e de perturbação do funcionamento de nossas democracias. Portanto, esses são os três riscos que se aceleraram nos últimos anos, sem dúvida de forma muito intensa. Além disso, após a pandemia, subestimamos essas tensões, embora a Europa tenha começado a reagir a elas, mas de forma muito tímida ou, às vezes, um pouco tarde demais.

O presidente da França, Emmanuel Macron, discursa na Universidade de Lund, em Malmo, Suécia
O presidente da França, Emmanuel Macron, discursa na Universidade de Lund, em Malmo, Suécia  Foto: Ludovic Marin/AFP

Você fala sobre essas forças que estão se reunindo. Elas levam a uma morte gradual? Ou uma morte súbita?

As coisas podem desmoronar muito rapidamente. Na Europa e em qualquer outro lugar, elas estão criando um aumento da raiva e do ressentimento. Nossos compatriotas sentem isso. Isso alimenta o medo e a raiva, e isso alimenta os extremos. As coisas podem acontecer muito mais rapidamente do que pensamos e podem levar a uma morte mais brutal do que imaginamos. O que mais me interessa é evitar esse movimento e mostrar que é possível dar um salto adiante.

De fato, todas as decisões que tomamos nos últimos anos são decisões que não tomávamos há dez anos. Reagimos mais rápido, melhor e na direção certa. Mas há uma aceleração tão grande dos riscos, das ameaças e do mal-estar de nossas sociedades, que agora precisamos dar um passo muito maior. Basicamente, precisamos criar um novo paradigma. Um novo paradigma geopolítico, econômico e social para a Europa.

Vamos voltar a cada um desses riscos, começando pela ameaça geopolítica ao continente: a Rússia. Como você caracterizaria esse risco? Trata-se de uma nova agressão por parte da Rússia? E como devemos reagir nesse caso?

A Rússia é uma ameaça que conhecemos, que sempre vimos. Estou falando por todos os europeus e particularmente pela Alemanha e pela França, porque fomos responsáveis por salvar os acordos de Minsk e o processo da Normandia. Fizemos bem em seguir o caminho diplomático. Não me arrependo de nada do que foi feito durante todos esses anos. Essas medidas, sem dúvida, desaceleraram as coisas e também nos permitiram criar demandas europeias conjuntas em relação a Putin.

Um poder de paz, um poder de equilíbrio. A mudança que ocorreu é que a Rússia mudou, e nós tivemos que nos adaptar a ela. A Rússia fez escolhas. Ela fez uma escolha em 2014, mas foi um evento limitado. Mas, acima de tudo, fez uma escolha radical em uma escala completamente diferente em fevereiro de 2022, a de mudar completamente a lógica, em outras palavras, de abandonar o respeito pelo direito internacional e a participação em fóruns internacionais. Desde 2022, o próprio Vladimir Putin não pôs os pés em uma cúpula do G20 e foi excluído do G8, que se tornou o G7 em 2014. Ele decidiu violar o direito internacional ao violar as fronteiras internacionalmente reconhecidas de um membro permanente do Conselho de Segurança. Até esse ponto, e com tanta consistência, isso não tem precedentes. Ela também cometeu crimes de guerra, novamente com uma força sem precedentes. Foi o país que lançou essa guerra de agressão contra um país soberano em solo europeu.

O presidente da França, Emmanuel Macron, senta ao lado do presidente da Rússia, Vladimir Putin, e do presidente da Ucrânia, Volodmir Zelenski, no Palácio do Eliseu, Paris
O presidente da França, Emmanuel Macron, senta ao lado do presidente da Rússia, Vladimir Putin, e do presidente da Ucrânia, Volodmir Zelenski, no Palácio do Eliseu, Paris  Foto: Christophe Petit Tesson/AP

A mudança também não deve ser subestimada. Na questão dos oblastos, a Rússia tentou construir uma espécie de tela legal, que depois foi abandonada. Muitas pessoas subestimaram a mudança que ocorreu entre fevereiro e abril de 2022. Em fevereiro, a Rússia ainda estava tentando formular uma narrativa que fosse compatível com o direito internacional, com essa ideia de uma “operação especial”. Agora, a própria Rússia usa a palavra “guerra” e reconhece o fato. Ela rompeu todas as estruturas e basicamente retornou a uma lógica de guerra total.

Desde 2022, a Rússia vem acrescentando cada vez mais uma ameaça nuclear explícita, às vezes desinibida, conforme expressado pelo próprio presidente Putin, e tem feito isso sistematicamente. Ela acrescentou o hibridismo, provocando e alimentando conflitos que às vezes estavam latentes em outras zonas. Acrescentou agressões e ameaças no espaço e no mar, e acrescentou ameaças e ataques cibernéticos e de informação em uma escala sem precedentes, que decidimos, juntamente com nossos parceiros europeus, revelar pela primeira vez.

Hoje, a Rússia se tornou uma potência superequipada que continua a investir maciçamente em armas de todos os tipos e que adotou uma postura de não conformidade com o direito internacional, de agressão territorial e de agressão em todos os domínios conhecidos de conflito. Atualmente, ela também é uma potência de desestabilização regional onde quer que esteja. Portanto, sim, a Rússia, por meio de seu comportamento e de suas escolhas, tornou-se uma ameaça à segurança dos europeus. Apesar de todos os esforços feitos pela França, mas também pela Alemanha e pelos Estados Unidos.

Qual é o prazo? O que acontecerá se a Rússia tentar atacar outro país que não seja membro da Otan? Nós, europeus, membros da Otan, reagiremos?

Cada vez temos que fazer isso de acordo com as circunstâncias. O caso surgiu na Ucrânia, um país que não é membro da Otan, mas está em solo europeu, a 1.500 quilômetros de nossas fronteiras. Em outra ação sem precedentes, os europeus reagiram em 24 horas, reunindo-se no mesmo dia da invasão. Na época, a França ocupava a presidência [do Conselho da UE]. Imediatamente impusemos sanções e decidimos o princípio de apoiar a Ucrânia.

Depois, no espaço de poucos meses, tomamos decisões cada vez mais duras. Primeiro, fornecemos tanques, depois mísseis de médio e longo alcance para proteger e atingir o território ucraniano ocupado pela Rússia, e também fornecemos equipamentos de defesa aérea. E decidimos abrir um caminho para a Ucrânia em direção à Otan e à União Europeia. Portanto, já fizemos um grande progresso, fornecendo assistência sem precedentes a um país que não é membro da Otan, porque está sendo atacado e porque nossa segurança está em jogo.

Somado a isso está o que decidimos em 26 de fevereiro com todos os chefes de Estado e de governo, os cerca de 20 que estavam aqui, europeus e não europeus, aqui em Paris, e que foi seguido por ações. Saúdo hoje o compromisso muito forte, em especial dos canadenses e americanos, juntamente com os britânicos e os membros da UE. Juntos, decidimos ir ainda mais longe, em outras palavras, fabricar na Ucrânia, treinar na Ucrânia, proteger melhor as fronteiras de Belarus e da Moldávia e também realizar a manutenção em solo ucraniano. Também criamos novas coalizões, como a de mísseis de médio alcance, que já produziu resultados iniciais com capacidades superiores, e as entregas que faremos até o verão. O que eu também queria reabrir em 26 de fevereiro era essa famosa ambiguidade estratégica, que deve convencer Putin de que estamos determinados e que ele terá de contar com nossa determinação.

O senhor mantém o que disse sobre a possibilidade de enviar tropas terrestres para a Ucrânia?

Com certeza. Como eu disse, não estou descartando nada, porque estamos enfrentando alguém que não está descartando nada. Sem dúvida, fomos muito hesitantes ao definir os limites de nossa ação para alguém que não tem mais nenhum e que é o agressor! Nossa capacidade é ter credibilidade, continuar a ajudar, dar à Ucrânia os meios para resistir. Mas nossa credibilidade também depende da capacidade de dissuadir, não dando visibilidade total ao que faremos ou não faremos.

O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, cumprimenta o presidente da França, Emmanuel Macron, em Roma, Itália
O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, cumprimenta o presidente da França, Emmanuel Macron, em Roma, Itália  Foto: Evan Vucci/AP

Caso contrário, nos enfraqueceremos, que é a estrutura na qual temos operado até agora. Na verdade, muitos países disseram, nas semanas seguintes, que entendiam nossa abordagem, que concordavam com nossa posição e que essa posição era positiva. Tenho um objetivo estratégico claro: A Rússia não pode vencer na Ucrânia. Se a Rússia vencer na Ucrânia, não haverá segurança na Europa. Quem pode imaginar que a Rússia vai parar por aí? Que segurança haverá para os outros países vizinhos, Moldávia, Romênia, Polônia, Lituânia e outros? E por trás disso, que credibilidade terão os europeus que gastaram bilhões, disseram que a sobrevivência do continente estava em jogo e não se deram os meios para deter a Rússia? Portanto, sim, não devemos descartar nada, porque nosso objetivo é que a Rússia nunca consiga vencer na Ucrânia.

O senhor acha que outros líderes acabarão tendo que compartilhar sua posição sobre esse assunto para que a Rússia seja finalmente dissuadida?

Você nunca deve se envolver em ficção política. Mas estou convencido de uma coisa: essa é a condição básica para a segurança europeia e a credibilidade militar. Portanto, se a Rússia decidir ir além, todos nós teremos que nos fazer essa pergunta. É por isso que eu queria esse alerta estratégico para meus colegas, mas também para nossas nações. A França é um país que realizou intervenções militares, inclusive nos últimos tempos. Enviamos vários milhares de soldados para o Sahel para combater o terrorismo, que poderia ter representado uma ameaça para nós. Fizemos isso a pedido de Estados soberanos.

Se os russos rompessem as linhas de frente, se houvesse uma solicitação ucraniana - o que não é o caso hoje -, teríamos legitimamente que nos fazer essa pergunta. Portanto, acho que descartar essa possibilidade a priori é não aprender as lições dos últimos dois anos. Na cúpula da Otan no verão de 2022, todos nós descartamos a entrega de tanques, mísseis de ataque profundo e aeronaves. Agora estamos todos no processo de fazer isso, então seria errado descartar o resto. Mas, acima de tudo, seria errado, em termos de credibilidade e dissuasão em relação aos russos, descartar essa possibilidade. A propósito, observo que a agressividade da resposta russa ao que eu disse mostrou que isso estava surtindo o efeito desejado, ou seja, dizendo: Não pense que vamos parar por aqui se você não parar.

Outros líderes europeus parecem ter perdido a compreensão da importância do hard power no mundo. Isso se deve à infantilização? Por terem terceirizado sua segurança para os americanos?

Ouça, acho que você sempre deve se lembrar de onde veio. Não estou dando lições a ninguém. A França foi libertada [durante a Segunda Guerra Mundial] com seus aliados e graças à sua resistência interna. Ela emergiu com a mesma coragem e generosidade internacional de nossos aliados, que poderiam ter nos deixado de lado. Estávamos muito enfraquecidos. A guerra nos colocou no centro do sistema internacional e nos ajudou a construir um exército forte. E a França se equipou com uma gramática estratégica e capacidades militares que são o produto dessa história. Adquirimos armas nucleares muito cedo, o que nos deu uma forma de maturidade estratégica. Nossos amigos britânicos também têm isso, com um relacionamento mais próximo com os Estados Unidos da América.

O secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, participa de uma reunião com o presidente da Ucrânia, Volodmir Zelenski, em Kiev, Ucrânia
O secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, participa de uma reunião com o presidente da Ucrânia, Volodmir Zelenski, em Kiev, Ucrânia  Foto: Escritório do presidente da Ucrânia/ AP

E quanto ao restante da Europa, quem pode julgar? Em um mundo que se move tão rapidamente, achamos que tudo é rápido. Temos uma Europa reunificada que é o produto dos últimos 35 anos, mas alguns de seus membros viveram sob o jugo soviético de 1947 a 1990 e sentem que foram abandonados pelo Ocidente. E desde 1990, essa Europa tem pensado em sua segurança essencialmente em termos do escudo americano e da Otan. Eu disse isso em suas colunas na entrevista de 2019 [a “morte cerebral” da Otan], e assumo total responsabilidade pelo que disse. Isso não permite que a Europa tenha uma estrutura de segurança comum, um conceito comum, porque nos coloca na posição de pensar sobre nossa segurança apenas por meio de um aliado que está sendo solicitado a pensar sobre isso, a carregar muito do fardo, os Estados Unidos da América. Acima de tudo, isso coloca a Europa em pé de igualdade com a Rússia, é claro, mesmo que estejamos de fato em pé de igualdade com a Rússia hoje por causa da guerra na Ucrânia.

Portanto, há de fato um despertar estratégico na Europa como resultado da agressão russa. Esse despertar está ocorrendo de várias maneiras. Estamos vendo isso hoje com a proposta de capacidade apresentada pelos alemães, o escudo europeu de defesa antimísseis. Ou com a Polônia, que diz estar pronta para receber armas nucleares da Otan. Acho que nós, europeus, precisamos nos sentar à mesa e criar uma estrutura coerente. É isso que venho dizendo desde 2017. Como europeus, precisamos descobrir como podemos defender nosso espaço com credibilidade e como, de maneira crível e sustentável, podemos construir uma garantia de segurança para cada um dos Estados-membros - como eu disse em Bratislava -, inclusive para os países do flanco leste da Europa. Mas essa estrutura é muito mais ampla do que o que está sendo feito atualmente na Otan. O que eu gostaria de ver é uma discussão dentro da estrutura da Comunidade Política Europeia. Os senhores têm em volta da mesa todos os países da Europa, no sentido mais amplo do termo, e temos uma base para a discussão com os acordos de cooperação existentes entre os estados-membros da UE, mas também com a cooperação bilateral. O mais estrutural para nós nesse aspecto é, sem dúvida, o que temos com o Reino Unido e os tratados de Lancaster House.

E com relação a essas questões, o que o senhor poderia construir concretamente em termos de defesa e segurança com os britânicos?

Eu disse já em 2019, quando os Estados Unidos, unilateralmente, se retiraram do tratado inf, declarando que os russos não o estavam mais respeitando. Temos riscos relacionados aos mísseis russos. Temos o risco nuclear russo. Agora temos um risco balístico, que pode atingir parte do nosso continente, e talvez o risco de proliferação no Irã e em outros países. Temos riscos no Mediterrâneo. Vamos recapitular os riscos que estamos enfrentando.

Depois, vamos analisar o conceito estratégico correto para lidar com eles juntos. Queremos ter capacidades equivalentes? Queremos ter limites defensivos? Queremos ter capacidades ofensivas equivalentes que nos permitam nos defender enquanto permanecemos em um espaço não balístico e não nuclear? Queremos também uma capacidade de dissuasão, com dois países que hoje a possuem, a saber, o Reino Unido e a França? E então, depois de definirmos esse conceito de segurança, que ainda precisa ser discutido, negociado e definido: o que fazemos com os sistemas de defesa aérea? Quais deles são úteis contra quais mísseis? Em que capacidade e para que finalidade? Que capacidades de disparo de médio e longo alcance queremos? Temos alguns dos melhores fabricantes para fazer isso. Que programa europeu vamos lançar? Há ainda a questão de como queremos usar nossa capacidade nuclear, sem perder nossa soberania. Tudo isso deve ser levado em conta.

Líderes do G-7 posam para foto durante a reunião da cúpula em Hiroshima, Japão
Líderes do G-7 posam para foto durante a reunião da cúpula em Hiroshima, Japão  Foto: Kenny Holston/NYT

Esse é um debate grande, belo e existencial que os europeus devem ter, e que não se reduz à União Europeia. É um debate que cada estado-membro deve ter, mantendo sua soberania em termos de suas próprias capacidades, mas também concordando em combinar essas soberanias para apresentar uma resposta conjunta em escala continental. E essa resposta conjunta terá de envolver vínculos de solidariedade, como os que já temos na estrutura da Otan, com o Artigo 5, e na estrutura do Tratado da União Europeia, com o Artigo 42-7. É também a única maneira de dissipar as ambiguidades existentes e aliviar o fardo americano. E é a única maneira de fazermos as escolhas industriais certas na Europa.

O senhor está dizendo que, com o Reino Unido, está pronto para ter uma discussão muito mais aprofundada, mesmo antes das eleições gerais no Reino Unido, sobre uma cooperação de segurança aprimorada para toda a Europa?

Antes de mais nada, temos uma cooperação bilateral. Ela é essencial e acho que faz do Reino Unido um parceiro privilegiado da França. Em segundo lugar, quero que aprofundemos essa parceria. Em terceiro lugar, essa parceria existe, está sobre a mesa. Mas acho que precisamos de uma discussão estratégica aprofundada com todos os europeus que estiverem preparados para isso.

Com o Reino Unido, a Noruega e outros países que não fazem parte da União Europeia, sobre segurança?

E sobre a dissuasão nuclear da França? O senhor está preparado para ter uma discussão agora com seus parceiros europeus sobre como estender a dissuasão francesa à Europa?

A dissuasão está no centro da soberania. Portanto, a dissuasão nuclear francesa, inclusive por meio de suas regras de engajamento, é a quintessência da soberania do povo francês, porque é o Presidente da República, como chefe das forças armadas, quem define o engajamento dessa força nuclear em todos os seus componentes e quem define os interesses vitais da França. Não se trata de mudar isso. Mas é uma questão de dizer, pela natureza de nossos interesses vitais e pelas escolhas que fazemos, nossa geografia, que estamos contribuindo para a credibilidade da defesa europeia. Portanto, temos uma estrutura estratégica. O Presidente Mitterrand foi o primeiro a indicar que a Europa era um de nossos interesses vitais.

Sem entrar em maiores detalhes, sem criar elementos de sistematicidade e de acordo com uma linha de raciocínio que também é conhecida por nossos parceiros e que cria limites para eles. Porque essa é precisamente uma escolha soberana feita pela França e seu presidente. Mas acho que se quisermos construir um conceito estratégico eficaz e confiável de defesa conjunta, que é o pré-requisito para uma estrutura de segurança conjunta para os europeus, as armas nucleares devem ser incluídas no debate, dentro dos limites conhecidos que regem seu uso e sem alterá-los. Portanto, proponho dizer que temos essa capacidade, ela existe e deve ser levada em conta e compreendida por nossos parceiros para evitar a duplicação e evitar a escalada, que seria inútil quando temos essas capacidades, mas sem compartilhá-las. Considerando as sensibilidades políticas de diferentes países e nossas próprias regras de engajamento.

Em termos práticos, como convencer os dois países da linha de frente, a Polônia, por exemplo, que pode duvidar da garantia americana e pensar que, em um mundo em que as armas nucleares estão se tornando mais comuns, em que a Coreia do Sul tem uma arma nuclear ou o Japão tem uma arma, como convencer a Polônia de que não precisa de uma arma nuclear própria e convencer a Rússia de que a garantia que você está oferecendo é confiável?

Essas são duas perguntas muito importantes. A primeira é sobre armas nucleares e proliferação. Acho que nós, europeus e americanos, precisamos fazer um novo esforço maciço, e espero trazer os chineses a bordo também. A China tem um interesse objetivo em fazer uma parceria conosco nessa questão. Precisamos retomar a luta contra a proliferação nuclear. Precisamos agora reconstruir uma estrutura para gerenciar a desestabilização regional, a atividade balística e o programa nuclear do Irã. Isso é absolutamente fundamental e precisamos voltar a exercer pressão para evitar a proliferação nuclear. O segundo ponto é que muitos dos países que você mencionou podem ter capacidade, mas não têm capacidade nuclear propriamente dita. Há países que podem ter bombas nucleares, mas sob a decisão e o guarda-chuva americanos, o que é muito diferente das capacidades britânicas ou francesas. Vocês [os britânicos] têm uma escolha soberana e, no caso da França, controle total sobre o processo e nenhuma dependência. É muito importante fazer a distinção entre os dois.

Líderes europeus participam de uma reunião da Cúpula da União Europeia, em Bruxelas, Bélgica
Líderes europeus participam de uma reunião da Cúpula da União Europeia, em Bruxelas, Bélgica  Foto: Geert Vanden Wijngaert/AP

Estou convencido e farei todos os esforços, pelo menos no que diz respeito à França, para discutir esse assunto com os americanos, os chineses e todos aqueles que estão dispostos a trabalhar para combater a proliferação. Porque um mundo em que cada vez mais Estados controlam capacidades nucleares e militares nucleares é um mundo de perigo e desordem. Então, temos interesse, no dia seguinte [à guerra da Rússia na Ucrânia], na estrutura de segurança conjunta que vamos elaborar para o continente. A Europa deve estar à mesa para negociá-la e discutir as garantias de segurança. Com relação às implantações balísticas, haverá elementos de limitação - em todo caso, essa é a gramática com a qual convivemos até agora - de armas nucleares, que certamente também devem envolver os americanos. E também haverá um diálogo sobre a natureza das parcerias que os europeus terão dentro da estrutura da Otan e da União Europeia, mas mais sólidas do que as que estabelecemos no passado. Mas isso será no dia seguinte.

Por último, estou convencido de que se os europeus aprenderem a coordenar melhor as suas capacidades, se continuarem a armar-se, se reforçarem a sua “intimidade estratégica”, graças à Otan, claro, mas indo mais longe do que o fazemos atualmente, seremos mais credíveis face à Rússia. Temos credibilidade porque temos duas potências nucleares europeias entre os países europeus que são atualmente membros da Otan. Para muitos outros, a garantia americana hoje, e espero que amanhã, de um quadro comum de segurança e de uma defesa comum credível, de um aggiornamento profundo, de uma força económica e de uma base industrial e tecnológica de defesa europeia maciça. É por isso que este é também um dos elementos mais importantes. Um dos pontos fortes da Rússia atual é o facto de poder investir muito e produzir muito, porque organizou a sua base. É um esforço a longo prazo que é insustentável em termos militares. Dedicar um terço do seu orçamento à defesa não é sustentável para um país cujo produto interno bruto é inferior ao da França, da Alemanha ou do Reino Unido. Se nos unirmos, somos capazes de o fazer, e é por isso que o famoso adágio é mais verdadeiro do que nunca: “a força está nos números”. É a força dos europeus.

Fonte:  https://www.estadao.com.br/internacional/a-europa-corre-um-risco-mortal-diz-emmanuel-macron-em-entrevista/